Rara história de amor e revolução

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O amor heroico de Mujica por sua mulher como mais um reflexo do raro Capitalismo Humanista que o ex-presidente do Uruguai tanto lutou para implementar é o tema deste artigo de Ricardo Bellissimo.

Por Ricardo Bellissimo *

Quando o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica (2009-2015), foi preso por participar de ações guerrilheiras junto ao Movimento de Libertação Nacional (MLN), liderada pelo grupo de guerrilha urbana Tupamaros para combater a ditadura instaurada no país em junho de 1973, ele sequer poderia sonhar com uma dessas coincidências que parece existir apenas no universo dopante da ficção.

Poucos dias após a sua detenção, a advogada de Mujica estendeu-lhe uma folha de papel junto a uma caneta e tão logo lhe revelou: ela era casada, nada mais nada menos, com o advogado de Ana, a guerrilheira por quem Mujica, antes de ser preso, já vinha mantendo um intenso caso amoroso. Porém, nem a advogada nem o seu marido poderiam livrar os dois guerrilheiros do cárcere, já que absolvê-los em meio a uma ditadura sangrenta era algo impensável. Mas, conforme lhe prometeu, ela poderia, junto com o marido, encarnarem ao menos o papel de carteiros, comprometendo-se assim com o que lhes estivessem ao alcance para manter acesa, em meio a ratos doenças choques comidas apodrecidas e medonhas torturas, a chama pulsante desse amor que, não fosse tamanha bênção do destino, teria tudo para agonizar.

A vida clandestina de um guerrilheiro tupamaro impedia, em seu estatuto, que houvesse relações de amizade, sobretudo amorosa, com qualquer pessoa que não pertencesse a essa mesma organização. Ninguém deveria, inclusive, saber o verdadeiro nome da pessoa amada, pois esse seria o único modo de poupá-la de eventuais delações, entre outras tantas desgraças.

Assim que a primeira missiva lhe foi entregue, Mujica pôde ler a confissão de sua companheira de luta e afagos. Ana chamava-se na verdade Lucía Topolansky, estudava arquitetura, e seu maior sonho era um dia sair da prisão só para reencontrá-lo. Ao que ele, conhecido para ela até então apenas como Ulpiano, responde-lhe com igual anseio e paixão, revelando também o seu verdadeiro nome e outros tantos planos para o futuro, incluindo-se aí uma vida simples no campo onde poderiam plantar para a própria subsistência.

Após anos vivenciando esse distante e improvável conto de fadas, ambos finalmente deixariam a prisão com o término da ditadura, em 1985, quando então passam a viver juntos em uma modesta chácara localizada na periferia de Montevidéu, onde, fazendo juz às suas juras de amor, eles moram até hoje. Foi nesse rancho que Pepe e Lucía iniciaram a vida cultivando flores para depois vendê-las no mercado municipal.

No entanto, em nenhum momento eles se esqueceram de seus ideais políticos, latentes em suas almas sedentas de justiça desde os tempos estudantis, ao que Mujica acabaria por fim eleito deputado em 1995 e em 2000 já se tornava senador, ao passo que Lucía começava a vida política como deputada e, em 2005, ela também já se elegeria senadora. E somente trinta anos após o início dessa rara história de amor, e cinco anos antes de Pepe assumir a presidência, decidiram enfim formalizar o matrimônio.

Quem deseja se aprofundar mais nessa história de amor e luta, recomendo o livro Ana, La Guerrillera (existente, por ora, apenas em espanhol), escrito pelos jornalistas e historiadores uruguaios Alberto Silva e Nelson Caula (Ediciones B, Montevidéu, 2011).

Capitalismo Humanista

Quem afinal suportou tantas agruras e ainda assim manteve o fulgor de uma paixão como essa já mereceria, só por isso, todo o respeito e louvor. Mas parece que amor verdadeiro e política justa nunca andaram pacificamente de mão juntas aos olhos daqueles que talvez não acreditem, ou tampouco pratiquem, nem um nem outro.

Por isso, foi com ainda mais indignação que acompanhei, em vários sites e blogs, dezenas de comentários desrespeitosos maldizendo Pepe Mujica, assim que ele deixou a presidência, em fevereiro de 2015. De um “já vai tarde, seu comunista gagá” a “velho pobre que anda de fusca é uma vergonha para qualquer país”, entre outras tantas mesquinharias e difamações.

As críticas também iam assumindo o mesmo tom pejorativo do grupo que, por igual ignorância, pregaria a volta da ditadura nas últimas manifestações de rua ocorridas pelo Brasil. Esse é o tipo mais abominável de preconceito, posto que limitado a um maniqueísmo reducionista e obtusamente intolerante.

Comportamentos dessa natureza nos faz inclusive indagar como são cada vez mais raras, a exemplo da história de amor vivenciada por Pepe e Lucía, pessoas que também mantêm um mínimo de coerência entre o que fala e o que faz. Mesmo quem não concorde com seus ideais políticos, este é mais um motivo para um sujeito como Mujica merecer a mais zelosa reverência. Um presidente que, ademais, optou por viver distante dos valores ditados por sociedades exageradamente consumistas como a que vivemos, e que insistem ver seus sonhos tão artificialmente enlatados quanto as infindáveis porcarias que todos os dias nos são ofertadas. E que, após abertas, logo estão com a validade vencida pelo fastio, restando-nos apenas ansiar por novos produtos, muitos decerto desnecessários, só para preencher o poço sombrio e sem fundo de outros tantos vazios existenciais.

Ao se alijar desse esquema humanisticamente falido, Mujica também configurou-se como o exemplo mais recente de alguém que redefiniu a credibilidade na esquerda, hoje tão ultrajada e prostituída por tantos acordos espúrios que costurou só para se manter no poder. Da mesma forma, Pepe jamais estabeleceu acordos oportunistas com a ala mais conservadora da sociedade, nem enganou o povo para conquistar votos.

Como, portanto, macular a imagem de um homem que ocupou o cargo máximo da República oferecendo ainda a residência oficial para abrigar moradores de rua, durante o inverno, caso faltassem vagas em abrigos oficiais? E que doou 90% de seu salário a fim de redistribuí-lo entre ONGs que trabalham para fomentar a habitação popular, e saiu do poder com as mesmas posses que possuía de quando ali entrou? E ainda vendeu a casa de veraneio presidencial, revertendo todo o montante à construção de um espaço cultural, além de financiar escolas agrárias onde jovens de baixa renda podem ter acesso a cursos gratuitos de qualidade?

Mujica, antes de ser um exemplo de dignidade humana e social, deve, por outros tantos feitos, ser rememorado como um dos maiores heróis de nosso continente, tão estigmatizado por escândalos ininterruptos de corrupção.

Suas conquistas hoje permitem, inclusive, pensar mais seriamente em uma mudança brusca em paradigmas educacionais. Pais, governos e escolas têm, por isso, papel fundamental nessa tarefa, desde o “pequeno” exemplo em ensinar noções menos consumistas às crianças até estimular, com isso, trabalhos manuais conjuntos que possam assim valorizar o outro desde muito cedo. Um passo vital para disseminarmos hábitos menos egoístas ao mesmo tempo em que são abertos novas possibilidades para se cultivar mais respeito e tolerância.

Não louvar um homem que soube amar como um herói e ainda agiu na vida pública com a sabedoria inata de um camponês, tampouco querer enxergar vícios insistentes que nos afogam cada vez mais num pântano de violência e corrupção, é persistir na construção de sociedades em que um cidadão continuará eternamente indignado com a opção sexual de seu vizinho, recorrendo antes à Bíblia para aplacar seus falsos moralismos ao invés de procurar o quanto antes a ajuda de um analista.

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Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador; é autor de Sufoco e Negro Amor, entre outros