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Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos *

Dramaturgo, ator e diretor, formado pela Escola de Teatro Martins Pena, do Rio de Janeiro, nos anos 80, Kiko Marques fundou, ao lado do diretor Marco Antonio Braz,  o grupo Círculo de Comediantes, com ele montando diversas peças de Nelson Rodrigues. Atualmente integra a Velha Companhia e sua peça Cais ou Da Indiferença das Embarcações recebeu os principais prêmios de teatro do país: Shell, APCA, Aplauso e Qualidade Brasil. No cinema, atuou em produções contemporâneas, como Carandiru e Cidade de Deus. Com sua direção, estreia ainda este mês, em São Paulo, Valéria e os Pássaros, do dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra.

Em que momento da vida você sentiu que atuar, dirigir e escrever para teatro era o caminho? Sempre sonhei em ser um homem de teatro como os de antigamente, capazes de estar em várias frentes ao mesmo tempo. Escrever, atuar, dirigir, produzir. Quando entrei para o teatro, comecei atuando por uma conjunção de fatores. Era o grupo de teatro da escola e todos faziam tudo, mas principalmente atuavam. Já era absolutamente apaixonado por teatro e não por alguma área em especial. Gostava do fato cênico. Poderia ter sido um tipo de arquiteto e vivido imensamente feliz, projetando teatros pelo mundo. Mas me pus na área da atuação e dediquei meus estudos a ela por onze anos, mais ou menos. Foi nessa época que começou minha inveja dos cantores de rock que compunham suas músicas e as executavam em shows conceituais, dirigidos por eles próprios. Comecei a achar que estávamos confinados a releituras de textos já escritos. Montava Nelson Rodrigues, nessa época. Textos geniais, montagens inesquecíveis. Mas de algum modo a voz ainda estava presa na garganta. Até que me convidaram a dirigir uma peça e eu retruquei o convite, dizendo: ‘Não tenho interesse em dirigir textos. Se vocês toparem, escrevo algo pra vocês e dirijo isso’. Eles toparam!

Alguma influência importante em sua formação teatral? Laurence Olivier, Rubens Corrêa, Henriette Morineau, Chaplin, Goscini e Uderzo (Asterix), Tarkovsky, Bergman, Fellini, Macunaíma (do Antunes), Kafka, Gabriel Garcia Marques, Ariane Mnouchkine, Ubu Rei (do Cacá Rosset). Todos os espetáculos que vi dos 13 aos 18 anos. Devo lembrar que uma vez, aos 15, abri o jornal e não havia peça para ver. Tinha visto tudo o que estava em cartaz. E ainda Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Chagall.

Nos anos 90, você fundou o grupo Círculo dos Comediantes. Quais experiências guarda daquele período? Um dos maiores parceiros que tive, o diretor Marco Antônio Braz. Nosso grupo montava essencialmente a obra de Nelson Rodrigues. Esse foi meu encontro com a essência do teatro brasileiro. Um ator inglês que não tenha enfrentado a tarefa de dizer, de viver um texto de Shakespeare, não deveria ser considerado como tal. Da mesma forma não concebo um ator brasileiro que desdenhe Nelson, que não o tenha estudado. Que não tenha se imposto à tarefa de dizê-lo. Nesse ponto, posso dizer que meu encontro com Nelson foi como meu encontro com Fernando Pessoa.  Topei com Fernando Pessoa, assim que me formei na escola de teatro e fui ao mercado de trabalho com a sensação clara de não saber falar em cena. Dei a sorte de começar aulas particulares de voz com uma pessoa que veio a se tornar minha grande e maior mestra. Ela me impunha poetas que eu deveria dizer como fosse os próprios. Quando topei com os heterônimos principais de Fernando Pessoa, notei que eles falavam algo muito próximo a mim e ao mesmo tempo eram universais. Senti que, se aprendesse a dizer aquilo, estaria ao mesmo tempo me comunicando com o mais profundo de minha história pessoal e com os arquétipos que nos irmanam e nos ultrapassam. A mesma coisa com o Nelson. Os anos ao lado do Nelson e do Braz me puseram em estado de completa comunhão com o público e com minha essência. Lapidei-me como diretor nas brilhantes encenações do Braz e como ator e dramaturgo nas palavras geniais do Nelson.

Sabemos que teatro é uma arte de equipe, de partilha e isso nem sempre ocorre harmoniosamente. Quais os maiores desafios no processo de criação que envolve um grande elenco, num meio onde as suscetibilidades, vaidades e egos são muitas vezes exacerbados? Realmente acho que a arte é o lugar propício para proliferação dos vírus do ego e da vaidade. É preciso estar atento a eles. Tenho alguns princípios que me norteiam. O primeiro deles é partir sempre da ideia de que todos devem estar felizes no trabalho. Como quase nunca pagamos bem, porque vivemos com orçamentos apertados e muita gente junta, procuro dar ao artista algo que ele reconheça como importante de fato. Isso é um pouco impossível, mas sempre tentamos ao máximo. Não há protagonistas para todos, mas nem todos querem protagonistas o tempo todo. Os atores querem dar o melhor de si. Querem fazer boas peças, que toquem o público e querem ter participações fundamentais nessas peças. Jamais coloco alguém em cena para entregar um jornal. Não creio nesse teatro. Esse é o teatro da hierarquia, onde eu me confiro tamanha importância a ponto de ter um serviçal, alguém que vai ali como qualquer outro só para cumprir uma função banal. Não há funções banais no teatro que faço. Reescrevo papéis para que eles se tornem um desafio. Se não são, dobro atores em papéis. Não suporto ver alguém subaproveitado. Quantas e quantas peças que assisti com uma infinidade de talentos perdidos, olhos mortos. Trabalho sempre para que os olhos brilhem. Por fim, temos um clima muito familiar no trabalho e o cultivamos sempre. Preocupamo-nos e cuidamos uns dos outros, na medida do possível. Isso inibe um pouco as manifestações negativas e elas acabam nos seus devidos lugares, ou seja, recalcadas.

As leis de incentivo ao teatro não dificultam sua produção pelo excesso de burocracia que criam? Não sou a melhor pessoa pra responder isso. Como escrevo e dirijo, minhas parceiras Virginia Buckowski e Alejandra Sampaio acabam resolvendo  a produção. Mas sei o quanto a burocracia emperra nosso desenvolvimento em todos os âmbitos e é uma grande ferramenta de corrupção.

Em Cais ou Da indiferença das Embarcações, a narrativa é de encontros e desencontros, tendo a memória como referencial. Como foi escrever a peça que acabaria significando sua consagração como dramaturgo? Não conheço bem o limite entre a arte e a medicina. Escrevo porque os fantasmas o exigem. E para nos curar ou simplesmente aliviar de certas doenças. Assim foi com Cais. Toda a minha história está lá. A que vivi e a que sonhei. Sempre navego por esses mares. Em Cais tudo é verdade e ao mesmo tempo nada é verdade. Nem eu mesmo sei o limite entre o que vivi e o que sonhei ou ouvi contar. Não sei o que pertence a uma história ou a outra. Apenas segui as necessidades do mito que surgia. Nesse lugar, o dramaturgo é capaz de escrever o que nunca poderia saber. O que não viveu nem soube, mas que sempre esteve ali. Por isso, não me sinto de fato dono daquelas memórias. Tive a sorte de conseguir um patrocínio na época, o que me possibilitou poder parar para pesquisar e escrever. E tive a também sorte de não ter conseguido montar a peça por seis anos, por ser uma produção muito pouco atraente. Durante esse tempo fiz e refiz o texto por várias vezes, trocando atores de papéis, convocando novos atores. Isso me fazia rever as embocaduras dos personagens, o desenvolvimento das tramas, etc. Quando partimos para encená-la, ela já tinha pelo menos seis anos de vida. Um pouco dessa repercussão do espetáculo vem daí. Obviamente do meu encontro pessoal com esses fantasmas, mas muito da mistura disso com esses profissionais que estiveram por tanto tempo envolvidos e que continuam, ainda hoje, no terceiro ano de temporadas.

Já entrou em crise e pensou em desistir durante o processo de escrita ou encenação de uma peça? Algumas vezes por dia. Funciono nas crises. Sou um artista que chafurda na angústia. Uma vez, uma atriz me disse que estava insegura, porque eu parecia deprimido durante o ensaio. Outro ator, que me conhecia de outros trabalhos, se meteu na conversa: ‘Quando o vejo assim, sei que irá chegar no outro dia sem ter dormido, mas com uma solução para esse problema que está acontecendo agora’. Essa solução surge sempre de uma angústia muito grande e de uma sequência de desistências, que até hoje nunca vingaram.

O que exige e instiga mais: escrever, atuar ou dirigir? Hoje em dia escrever. Não há prazer maior na vida do que atuar bem. Quando se atua, a energia que o público nos dá de volta alimenta como ar, água, carne. Dirigir bem um espetáculo nos coloca muito próximos da ideia de divindade. Como se uma comunidade entregasse seus destinos em nossas mãos. Tomar decisões acertadas nesse campo é uma realização pessoal e arquetípica muito poderosa. Já escrever é uma viagem para dentro de si sem precedentes. As três atividades me comovem, me instigam de forma particular e poderosa. O fato é que tenho uma estrutura profundamente subjetiva. Tive uma juventude calada. O silêncio e o pensamento sensível são meus maiores companheiros. Não por escolha. Por isso, penso que na escrita me comunico com meus semelhantes mais plenamente do que de qualquer outra forma.

Na peça Ay Carmela, de José Sanchis Sinisterra, em que você atuou como ator, temos um texto comprometido com a história mundial recente e suas questões sociais. Qual o papel do ator e do teatro na sociedade? Somos porta-vozes. Somos profetas. O fato de Fernanda Montenegro começar uma novela trocando um beijo homossexual com Nathalia Timberg tem uma dimensão política que ultrapassa em muito a nossa capacidade momentânea de entendimento.

Como vê o momento atual do teatro no Brasil e a concentração de espetáculos no eixo Rio – SP? Algo a fazer para difundir nacionalmente o teatro, levando-o para os mais distantes cantos do país? Acho normal que o teatro se concentre nesse eixo. Eu vim aqui por isso. Porque São Paulo era a capital brasileira do teatro que eu pretendia fazer. Acho que as coisas funcionam um pouco assim. Uma grande faculdade atrai estudantes do mundo todo e não acho que isso seja um problema. Pelo contrário. Estamos próximos. Nos vendo. Nos superando. O trabalho a se fazer é de inclusão do teatro que se faz em outros lugares, porque teatro bom se faz em qualquer lugar onde haja gente. E também o de difundir o teatro que se faz por aqui. O intercâmbio. Estamos nesse momento levando o Cais ao interior de São Paulo.

Novos projetos para 2015? Pode nos contar um pouco sobre eles? Sínthia, meu novo texto que a companhia pretende montar no final do ano, com minha direção. Criado com apoio do Fomento à Cidade de São Paulo, convidamos a Denise Weinberg para trabalhar com a gente desde os primeiros momentos de improvisação. Hoje estamos com o texto praticamente pronto, em fase de levantamento de produção. Esperamos que não leve os seis anos de Cais. O texto conta a história de um músico clássico, filho caçula de uma família ligada ao golpe militar de 64, que aos 50 anos assume-se como transgênero. Talvez minha obra mais política até agora. Um poema sobre a compaixão. O outro é Valéria e os Pássaros, com direção minha e texto de José Sanshis Sinisterra, que estamos montando. Estreia dia 27 de abril próximo, na Oficina Oswald de Andrade. Também pelo Fomento, é uma obra sobre o analfabeto político e o amor em sua força transformadora ou paralisante. Originalmente um monólogo, o transformamos num espetáculo para onze atores. Além dos atores de nossa companhia, teremos o Walter Portella e o Carlos Careqa, que além de atuar assina a trilha sonora.

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Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universida- de de São Paulo (USP). Itamar Santos é mestrando em Literaturas Comparadas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP)

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