Coisas duradouras em um mundo perecível

eve

Por Bruno Simões *

Já quase na primeira metade do filme “Amantes eternos” de Jim Jarmusch, em cartaz em São Paulo, o solícito fornecedor de guitarras antigas, o zumbi Ian (Anton Yelchin) – que é como os vampiros se referem aos humanos em geral – pede a Adam (Tom Hiddleston) para usar o banheiro de sua casa, por sinal, um tanto abandonada, típica dos filmes de terror, mas também dos que apenas buscam algum isolamento. Adam responde de modo polido que infelizmente isso não será possível devido a problemas no encanamento, mas que, se quiser, ele pode ficar a vontade para mijar no jardim (“please feel free to piss in the garden“). Algumas sequências depois, quando a vampira Eve (Tilda Swinton), mulher de Adam, chega de Tanger para consolar seu consorte em Detroit, acometido de uma profunda letargia artística e depressão existencial, Adam põe na vitrola um vinil com uma folk song bem antiga e desconhecida do público em geral. Eles começam a apreciar a canção quando algum problema na eletricidade da casa interrompe a audição. O casal desce até o jardim da casa para consertar um mirabolante gerador de luz, que produz corrente elétrica a partir da captação sem fios de energia escalar segundo a teoria do engenheiro croata Nikola Tesla. Enquanto Adam arruma a engenhoca, eis que Eve com sua lanterna atenta para algo que lhe causa certa perplexidade: no meio do mato crescido, nasceu um tipo muito específico de cogumelos, citado em latim conforme sua designação científica, ao que consta, completamente fora do seu ciclo natural. Possivelmente um sinal, no entender enciclopédico dos vampiros, de que o mundo não vai nada bem…

Não é possível inferir que a anomalia dos cogumelos fora de época tenha sido causada necessariamente pela urina do zumbi – mesmo porque Jarmusch dispensa o espectador, ao longo do filme como um todo, de sequências lógico-causais que, talvez de maneira enfadonha, reconstituiriam uma possível verossimilhança de uma história bem amarrada. Trata-se, para bom entendedor, sobretudo de uma alegoria dos nossos dias. A bem dizer, “Amantes eternos” exibe-se despojado de quaisquer ações engenhosas desempenhadas por personagens realmente vivos com vistas a um resultado edificante ou pretensão que o valha. Tudo que restou, para os que ainda circulam nesse mundo degradado, é mera deformação, sempre em busca de algo mais emocionante, de fontes culturais de qualidade que, embora possam ser “acessadas” no Youtube, já não podem ser mais criadas e verdadeiramente apreciadas.

Numa desolada Detroit, a ficção parece condensar e retratar a realidade atual com mais precisão do que faria qualquer documentário honesto que estivesse voltado para as sequelas sociais da bolha financeira pós-crise hipotecária de 2008. O outrora grande teatro no centro da cidade, onde Henry Ford teria fabricado o primeiro carro da história, assinala o apogeu da indústria automobilística, que hoje se tornou num mero estacionamento vazio. E é nessa toada que o casal de vampiros perambula de carro pelas ruas da cidade, evidentemente à noite, não em busca de entretenimentos, descobertas eletrizantes ou diversões fugazes, mas simplesmente para olhar o que restou. Ao longo desses passeios, intercalam-se conversas sobre poesia e música, considerações astronômicas sobre estrelas de diamante que emitem vibrações permanentes, lembranças de sonhos recentes que evocam personagens de uma Inglaterra vitoriana esquecida, enfim, sem motivo algum para se preocupar com o presente, haja vista o cenário atual e a eternidade do casal. O próprio andamento largo do filme explana que o estado de tédio constante e aparentemente incontornável de Adam não é mais que retrato da saturação e do cansaço que, por assim dizer, a história da humanidade foi trilhando até aqui.

Restam a eles, com bastante ironia, alguns momentos de maior intensidade, conseguindo encontrar alento na erudição das grandes obras literárias, das peças e instrumentos musicais de época dignos de um exímio colecionador. Por sinal, um dos momentos do filme que deixa extravasar um pouco dessa emoção é quando Eve, ao tentar aplacar a melancolia de Adam, coloca outro vinil com uma canção soul, adquirindo contornos quase místicos e ressaltando a ideia de que, se não há muito que fazer, se pode ao menos dançar. O tom cômico que perpassa a listagem desse repertório culto sugere que, seja em Shakespeare ou em Schubert, as passagens mais decisivas das obras artísticas eternizadas teriam sido compostas, na verdade, por vampiros que, desgostosos com a incontornável gana predadora dos zumbis, preferiram se preservar em seu anonimato. Não à toa, quando por fim decidem se recolher no mundo à parte – e talvez não de todo contaminado pela imbecilidade reinante – no exotismo da cidade de Tanger, Eve vai em busca de um instrumento de cordas antigo para consolar seu parceiro, que teve de abandonar em Detroit toda sua inestimável coleção de guitarras, violinos e discos. Pede, então, a Adam que não saia de uma esquina qualquer, enquanto ela se retira da cena brevemente. A câmera se dirige aos poucos para entrada de um bar logo ao lado de onde Adam está parado, esperando: a cena adentra o bar, onde uma exuberante cantora, Yasmine Handam, entoa uma espécie de lamento acompanhado por músicos da região. Talvez seja a única experiência em que Adam tenha vivido algo de mais intenso nas últimas décadas ou quem sabe séculos… Mas o maravilhamento de Adam com o que acabara de presenciar é logo tolhido por Eve que retorna com um belo instrumento de cordas em mãos: é muito provável, diz Eve, que dentro em pouco essa cantora venha a fazer muito sucesso por conta de toda aquela intensidade musical – prenúncio esse que Adam, pensando na avassaladora indústria cultural, mais uma vez deplora com profundo pesar. Entre o ideal vampiresco de seres polidos, cultos e civilizados, que bebem sangue em pequenos cálices de cristal, e a pasmaceira entumecida de zumbis sobre os quais não há muito que dizer – o mundo detonado parece falar por si – a lacuna é intransponível.

Vale notar que a feliz parceria entre o alaudista Josef Van Wissem e o também guitarrista Jim Jarmusch demarca o andamento das cenas de modo extremamente sofisticado. Remetendo a um gênero musical melancólico do fim do renascimento inglês, como nas peças do compositor para alaúde do século dezesseis John Dowland, e distorcendo as cordas sob as intervenções da guitarra elétrica, a trilha sonora apresenta resultados incomparáveis – ainda que também não deixe dúvidas de que, se ainda resta música de muito boa qualidade, há cada vez menos condições para apreciá-la.

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Bruno Simões é Doutor em Filosofia FFLCH-USP e professor de Pensamento Crítico e Ética do Insper