* Por Raimundo Neto * 

 O rumor das histórias penetrava meu corpo adormecido e impregnava a deriva lenta dos meus sonhos. De vez em quando, meu pensamento sonolento ainda me leva para o país das histórias”. Pág. 119

Numa guerra, as palavras existem como sobreviventes. Num massacre, se as palavras existem é para resistir ao assombro de um terror que acontece todos os dias na memória. Num genocídio, as palavras descarnam-se e restam as histórias que o pó dos ossos tem para contar.

Para um sobrevivente, narrar pode ser um caminho também para resgatar vínculos; catar dos vãos das lembranças o que restou da vida e dos afetos através da palavra cuidadosamente sentida.

Em A mulher de pés descalços, as palavras de Scholastique Mukasonga – autora de Ruanda, uma das atrações da Flip, que começa nesta quarta-feira, em Paraty – não tratam apenas de fantasmas e terrores do massacre que aconteceu em seu país, em 1994.

O livro apresenta, de modo breve no início, como um conflito étnico se inicia e como algo assim, trágico desde as diferenças ‘inventada’ entre tutsi e hutus, se torna um genocídio.

I – As histórias estão no corpo da palavra

Na longa estrada que Scholastique escreveu, Stefania, sua mãe, ensinava o passado aos filhos para que houvesse caminhos a seguir: os olhos aprenderam-se espelhos, para enxergar beleza, as mãos fizeram-se cuidados, e os pés construíram fugas. Existiam, diariamente, ensaios violentos que talvez já sinalizassem um massacre: militares hutus fiscalizavam, invadiam, saqueavam, feriam, violentavam uma minoria tutsi.

Em cada capítulo do livro (Salvar os filhos; As lágrimas da Lua; A casa de Stefania; O Sorgo; A medicina; O pão; A beleza e os casamentos; O casamento de Antoine; O país das histórias; História de mulheres), estão os espíritos vivos e ancestrais que emprestam sentidos, símbolos e milagre, às existências de todas as mulheres (e filhos e filhas) como Stefania.

A narradora, que se assume autobiográfica, narra para continuar viva e renascer em toda palavra que floresce nas mãos sobreviventes.

Contar-se é assumir identidade, refletiria Celso Gutfreind.

No livro A mulher de pés descalços, os nomes dos espíritos, dos rituais de cura e cuidado, os modos de armar esconderijos e fugas, os modos de a mãe Stefania, em liturgia e afeto, “enfrentar doenças e feridas”, o cultivo do Sorgo, a busca por uma morada ancestral, o Inzu, tudo tem nome para manter a raiz acesa nas profundas terras do afeto. Dar nome é assumir identidade.

É para sobreviver que Scholastique cobre-se com as lembranças da mãe, para restituir um grandioso feminino aprendido, um jeito de ser abrigo.

As palavras desenterradas de Scholastique lá estão, nos caminhos do livro, como cerimônia para iluminar os rituais, que mesmo sacrificados, mantiveram-se como talismã contra calamidades, como explica a narradora (pág. 43). É através das palavras que Scholastique desembainha trincheiras.

II – A memória da mãe acende a chama da proteção.

O livro inicia com uma cobrança materna, para explicar um ritual: as filhas tinham a obrigação de cobrir o corpo materno depois de sua morte, porque “Ninguém pode ver o cadáver de uma mãe”. A narradora e suas irmãs não cumpriram a tradição. Apenas uma sobreviveu. Mas não há culpa nos modos de contar a história. Não há culpa para quem vive as mortes de um massacre.

A voz suave de todas as palavras do livro conta, no início, a estratégia da mãe para salvar os filhos. A mãe precisava salvar, armar refúgio e escapes. À espreita, a mãe armava-se em alertas constantes, aguçava os sentidos, premonitória, assustada, camuflando fugas e chances. Era preciso salvar as filhas de um regime que invadia casas, destruía as permanências. Era preciso salvar os filhos da modernidade que avançava. Para além da maternidade, era preciso ser salvadora, ter partidas prontas para qualquer momento.

A mãe, Stefania, pretendia fazer renascer, no exílio, a casa perdida, o lar afastado; renascer a casa é proteger a eternidade do passado, é proteger os filhos, manter o Inzu arredondado e harmônico, para além das invasões dos brancos. É assim que a memória da mãe acende a chama da proteção. Se uma mulher que conservava o fogo era toda como boa dona de casa, Stefania mantia a casa aquecida para evitar o pior, para proteger os filhos.

Ao longo do livro, a criança Scholastique caminha pelo massacre que exterminou oitocentas mil pessoas, em cem dias, em Ruanda. E apresenta com cada ritual foi assassinado com uma benção da igreja dos brancos, pelas orações da liturgia da modernidade; como cada espírito vivo se tornava um pobre diabo, a cada violência que demorava no corpo das mulheres.

Mas ainda moram feridas no lar ancestral da narradora. E contar o que houve, a partir da experiência do outro, pelas vias do afeto materno, é um jeito de tecer “a mortalha do seu corpo ausente”. Pág. 7

III – Cada palavra é um caminho para o fim

Eu queria tanto que isso que escrevo nesta página fosse uma trilha que me levasse até a casa de Stefania”. Pág. 32

 Scholastique apresenta uma Ruanda em transição. As mulheres que traçavam gentis caminhos e modos de cuidar, apesar da resistência, também desistiram (e foram forçadas a) de manter certas tradições: os cabelos tornavam-se lisos, como os das brancas, talvez as belgas e americanas. Os rituais sagrados (os de cuidar, curar e comer) foram dizimados (dízimos e hóstias talvez) pelas orações da igreja dos brancos.

É assim que Scholastique mantém um outro ritual: contar para existir: Escrever, um ritual para manter a tradição acesa, na memória.

As palavras de Scholastique são uma cerimônia para as lembranças, a potência de suas palavras tecem sensíveis rituais de reconstrução de memórias, resgate de afetos, como também faz-se o tecido que cobre todas as mortes, todos os corpos enterrados sob a memória da casa ancestral.

Os rituais enraízam afeto e descendência, e são apresentados pela narradora como resistência. Tudo que é da terra é para proteger e cuidar, tudo que é raiz e tradição, protege a infância e a memória da mãe. As feridas são curadas, na infância da narradora, pelas tradições; chagas abertas são preenchidas com o tutano amadurecido do corpo das plantas, com o traçado das histórias.

Os relatos escritos de Scholastique apresentam a Ruanda ancestral e viva transicionando para a modernidade morta e massacrada. Os modos de socializar e cuidar de um tipo aldeia soterrados pelos costumes também dos brancos.

Os costumes, que embelezavam as mulheres e encantavam os olhos que enxergavam presente e saídas, naquela Ruanda, são, aos poucos, substituídos por modos de ser tão diversos, mas que apontavam uma abertura para o moderno, “os monstros famintos de seus próprios pesadelos”.

A mulher de pés descalços vai para além do testemunho: costura raízes e rituais às memórias difíceis de serem ditas. A escrita de Scholastique acontece em todas as linhas para desenterrar a dor nos ossos passados. Sua palavra para reconstituir, para dar renascimento ao lugar do passado que não para de acontecer em Ruanda. Para desenterrar a memória da raiz dos cabelos à fratura dos ossos.

É assim que a narradora conta o passado para sepultar os mortos e cobrir de lirismo os corpos, as lembranças, para proteger os afetos. As mãos de Scholastique aprenderam a enxergar no escuro, e, agora, elas escrevem muitos caminhos. É assim que sua missão mantém os rituais vivos, mantém a memória acesa, fertiliza as raízes do passado e da poesia, e narra para continuar viva.

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A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga (editora Nós)

Avaliação: _avaliação_pena_avaliação_pena_avaliação_pena (ótimo)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

 

 

 

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