Vanessa

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

* Por Marcelo Moutinho *

As quatro batidas tímidas se alastraram em poucos segundos pelo vidro da porta, até virar silêncio. Na panela, o extrato de tomate borbulhava. As salsichas logo seriam despejadas ali, para depois se juntarem ao macarrão, que descansava no escorredor. Aurora cuidava de fatiar a cenoura. Gostava sempre de pôr um legume na comida. Melhora a pele, faz baixar o colesterol.

O almoço esperava Vanessa. Era comum a menina sair da escola e parar em algum canto para papear com as colegas de turma antes de subir a longa ladeira da Rua Maranhão. Estava naquela idade em que a adolescência, para além do corpo, começa a se insinuar em palavras novas.

“O Araketu / O Araketu / Quando toca / Deixa todo mundo / Pulando que nem pipoca”, o micro system da sala vibrava em alto volume, enquanto Aurora despejava as cenouras na panela, misturando ao molho. O cheiro já chegara à sala e ao solitário quarto da casa. Ela só pôde notar que havia alguém à porta porque o CD parou de girar. Novas batidas, dessa vez mais firmes. O vidro estremeceu.

Panela em fogo brando, pra não queimar o almoço, e um “já vai” precedeu a corrida até a entrada.

– Quem é? – perguntou, cautelosa.

– É a casa da Dona Aurora?

***

Vanessa nasceu há onze anos, quando o casamento de Aurora e Luís já contava três. Ele desejava um menino, para ensinar a assentar tijolo e torcer pro Flamengo. Aurora só pedia que viesse ao mundo com saúde.

Herança do avô, a casa da Rua Maranhão ganhara um pequeno berço lilás. Luís comprou o móvel de segunda mão e caprichou na pintura. Parecia novo.

De lá para cá, o tempo correu veloz. A bebê de músculos frágeis e choro fácil tornou-se uma estudante com uniforme e notas medianas. Vanessa sonha fazer a faculdade de Odontologia, abrir um consultório no Méier. A mãe costuma dizer que dentista ganha bem e é uma profissão bonita, que põe sorriso no rosto das pessoas. Para Luís, um curso técnico bastaria. Mas no íntimo ele se orgulha dos planos da filha. Passa os dias misturando cimento e levantando laje para fechar as contas da casa. Aos domingos, gasta uns trocados no bar de karaokê, que fica a duas quadras da casa. Queria, no fundo, ser cantor. Costuma apostar suas fichas em “Smell like teen spirit”, do Nirvana, embora não saiba quase nada de inglês. Se exagera na cerveja, encontra o quarto trancado. Aurora não perdoa. Luís protesta, grita, soca a porta. Acaba acordando Vanessa, que invariavelmente chora. O sofá da sala então se transforma em bom lugar para passar a noite.

***

– É sim. Quem deseja?

– Cabo Oliveira, do 3º Batalhão.

– O senhor quer falar com o meu marido?

– Posso entrar, por favor?

– Ele tá no trabalho. Uma obra no Engenho de Dentro. Volta lá pelas cinco.

***

O trajeto entre o Colégio Estadual Antonio Houaiss até a casa da família não chega a quinhentos metros. Desde o último aniversário, Vanessa vai e volta sozinha da escola. Às vezes, faz a caminhada ao lado do Lucas, que mora mais para o alto do morro e também está na sexta série.

Vanessa adora o piso de paralelepípedos e a visão que se descortina a partir da ladeira. Da porta de casa, de manhã cedinho, vislumbra o emaranhado de construções encravadas no mato, as paredes de tijolo sem pintura – ao fundo, os prédios avarandados do Lins de Vasconcellos. É como se ela morasse em outro bairro, um ponto ferrugem e verde isolado sob o céu da cidade. À medida que desce, as cores mudam.

A mãe não sabe, tampouco o pai, que Lucas acha Vanessa a garota mais incrível da Boca do Mato. Os cabelos crespos, quase sempre amarados no coque, a mania de falar “tipo assim” antes de todas as frases.

Vanessa o tem como amigo, nada além. Para ela, o garoto mais incrível da Boca do Mato é, tipo assim, o Beto, que já está no primeiro ano do Ensino Médio e compõe rap. Ela sabe que em breve ele vai acabar os estudos no colégio. Que ele vai fazer faculdade, trabalhar com o tio no comércio ou ficar rico com seu canal de música no YouTube.

Além de gostar do Beto, Vanessa gosta de ouvir a Anitta, de tomar sol e de comer pastel de carne – mas tem que ter ovo cozido no recheio.

***

– É com a senhora que preciso falar. Posso entrar?

Aurora assentiu, mostrou o sofá

– Obrigado. Não vou demorar nada.

– Então… O que o senhor deseja?

– A senhora é a mãe da Vanessa da Silva, correto?

– Sou, sim. Ela se meteu em problema?

– Não, senhora. É que houve uma troca de tiros e infelizmente

*

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista. É autor de Ferrugem, entre outros livros

_______

Este é um projeto cultural independente de valorização do livro e da leitura! Caso queira colaborar financeiramente para a sua manutenção, escreva um email para saopauloreview@gmail.com, com o subject “Quero colaborar”, e saiba das cotas de patrocínio. É fácil, rápido e custa pouco! 

Tags: