Resenha: Corpo de festim

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Por Pedro Taam *

Li Corpo de festim (Confraria do Vento, 2015) do poeta, historiador da arte e escritor carioca Alexandre Guarnieri. O título sugestivo é uma introdução à obra em si. É, antes de título, uma epígrafe.

Pois bem. Antes de debater o que seria um corpo de festim, vou fazer uma digressão.

Em música, frequentemente nos deparamos com indicações de andamento como “Andante espressivo”. Assim mesmo, em italiano, como é o costume. Se você olhar pelo viés exato da coisa, “Andante” é algo, me informa o meu metrônomo, cujo andamento se situa entre 76 e 108 unidades de tempo por minuto. Ou seja: em um minuto, há entre 76 e 108 batidas, tempos.

Sobrou o “espressivo”. E aí não dá pra lidar com ele de forma exata, logo, não dá pra lidar assim com toda a indicação do andamento. Porque o que acontece é que a indicação do andamento não é só a indicação do andamento. Ela introduz, primeiro de tudo, o caráter da obra. Tem que ser debatida mentalmente por um longo tempo, até que se chegue em uma síntese.

No fim desse processo, frequentemente o andamento vai estar fora do que o metrônomo diz. E a conclusão importante é a seguinte: não existe uma forma exata, certa e rígida de interpretar um andamento.

Nem um título.

Isso deixa uma porta aberta. É um embate, uma discussão, um diálogo que começa e nunca termina. E é pra ser assim mesmo. Corpo de festim é a primeira tensão que o livro nos apresenta, assim, mesmo antes de abri-lo.

Em Casa das máquinas (Editora da Palavra, 2011), Guarnieri se utiliza de seus poemas para descrever o funcionamento das máquinas. Os poemas são um interstício na poesia em si. A poesia acontece antes e depois deles. Assim como a máquina é um interstício entre o operador e a obra, o poema – a obra de arte – não é um fim em si, é algo que se interpõe entre o autor e o fruidor.

Não é receptáculo, redoma, reservatório. É duto, canal, meio.

Em Corpo de festim, Guarnieri trata o corpo como tratou suas máquinas. Quase jornalisticamente, sua poesia descreve o funcionamento, a organização e os eventuais defeitos do corpo humano da mesma forma que descreveu suas máquinas. A poesia nasce depois, da ressonância da obra com a bagagem do leitor. E das imagens belíssimas, assim, meio como quem não quer nada, no meio do texto.

Esse é o Festim.

E agora o Corpo. Porque o livro podia muito bem se chamar de ‘Corpo e festim’.

O corpo (o corpo humano, o corpo que é sempre humano) não admite a prisão do festim. Porque, aqui, o corpo é a imaterialidade e o festim é a materialidade que o contém. Só que não é o próprio corpo. Por isso é festim, de mentirinha.

O livro é dividido em três capítulos, “Darwin não joga dados, Mallarmé sim”, “Corpo-só-órgãos” e “Vigiar e punir”. E o primeiro capítulo é o “Capítulo Hum”. De “hum mil reais.”

Há uma linha narrativa bem clara através de seus três capítulos. No princípio, eram os átomos de carbono, que se organizam e se tornam seres:

o átomo de carbono (iv)

 

resfriados na água pelo gládio glacial, ácidos, esporos

 e átomos rearrumaram a forma, nadaram para fora

 e já longe das margens (de charles darwin a Richard

 dawkins), fabricaram nova roupagem, asas, caudas,

quatro patas, penas, pelos, couros secos, ou em pé sobre

 as duas pernas ()

Há, portanto, o ser físico, material. Uma máquina, constituída de órgãos que têm funções bem específicas e se organizam de determinada forma. A narrativa prossegue, descrevendo-os:

<<no coração>>

<< átrio e ventrículo direitos

 

apenas sugerida, em abstrato diagrama pseudo

 mecanicístico, toda a compleição cardíaca mostrada

 em perspectiva explodida ( a hidrografia da fúria) contida

 pela escala humana, aprisionada a um contorno

 reconhecível, contínua ilha viva, o império regulatório

 cuja sede é este autônomo castelo, palácio da polaridade

()

 

átrio e ventrículo esquerdos>>

 

são pistões massacrando o plasma a certo compasso,

a pressão sanguínea grita, há um ritmo escondido sob

a exata frequência enaltecida, muito embora se admita,

vez por outra, desligado o velocímetro, ou ainda,

porque deslocado o grau, verificar nova condição

marcada acima (retumba ( bate ( pula ( pulsa);

()

Repare que os sinais, de pontuação ou não, não servem pra isso. Não mesmo. São ilustrações inseridas no texto. E, repare, o livro está diante de você. Mas não é para você se ver nele. “( ) o olho direito”. “o olho esquerdo ( ).”

Império regulatório – todas as regulações vão no imperativo. Chegamos ao “Vigiar e punir”:

cotidianometria

 

fitter, healthier and more productive/

 a pig in a cage on antibiotics

Radiohead (OK Computer, 1997)

 

suje as digitais de tinta /

não sorria na fotografia / cabelo cortado

apare quaisquer outros pêlos/

dentifrício, desodorante / é necessário o asseio

remova óculos ou lentes / renove o ânimo

mantenha a cabeça a um determinado ângulo

sopre o bafômetro / prenda o fôlego

língua para fora, barriga para dentro

inspire, expire / (sexo oral a la marilyn manson)

nunca deixe para amanhã, faça hoje mesmo

submeta-se ao exame / não perca mais tempo

preencha corretamente os dados /

sempre recadastre-se no prazo

silicone nos seios / correção de septo

as quatro cópias no cartório / melhor prevenir

que remediar / beba mais água, evite o álcool

livre-se da gordura hidrogenada

(opte pela salada crua) / não esqueça a data

se confesse com marccello rosso,

ao som do padre flávio de mello

guarde-se para o rapaz certo / sexo

só depois do casamento / não gaste água,

mas escove os dentes sempre

mocinhas vestem-se com decência

respeite a fila / pague em dia

seja condescendente diante da ignorância alheia

tome o remédio / tudo no horário

vá ao cinema (assista a um filme inédito)

em caso de vida ou morte : aperte o botão vermelho

 Nessa narrativa da construção do ser, desde os princípios de sua materialidade e que culmina nos conflitos entre o ser e aquilo que o contém (o corpo e o festim), o clímax está na obliteração, na destruição do indivíduo e do próprio ser. “mandala de houdin” é o último poema do livro.

 Houdini fascinava plateias vendendo a ilusão verbalizada na última frase do livro:

D E S A P A R E C E R  D E  V E Z .

TRECHOS:

A título de epílogo desta resenha, seleciono dois trechos.

Uma das imagens belíssimas:

(( ( útero ~ incubadora ) ))

( hábitos aquáticos no estágio embrionário ( ~ mar ~
matre ~ mater ~ ) a placenta atravessada a nado por
alguma criatura inicial ( ~ girino ~ feto ~ enguia ~ ) cujo
único exercício preparatório é o respiro amniótico nesta
antessala líquida do mundo ( a câmara salina na bolha viva
da barriga ) | o que da ova retida leva o solitário
ovócito confortado, do óvulo revelado eva
adentro, é toda fértil a terra materna |
o filho, no início, bicho tão mínimo, indis
tinguível de qualquer outro seixo mode
lado sob o rio sanguíneo ( do íntimo nilo
ao assomo do amazonas ), grão humano
aguardando subir tantos degraus quanto
necessário para tornar-se um corpo ()

E a descrição da labirintite:

labirintite

 

labirintites simétricas, hélices ou asas-delta, o corpo entregue

 à gravidade zero, planando sob a garagem hermética

 da atmosfera, até que sobrevenha da queda, num átimo,

 decerto a consciência da doença, de que jamais se poderá

confiar nas próprias pernas; segue-se a consulta médica,

 a escolha da droga, a hora do remédio, estima-se o efeito,

 o tempo de administração do medicamento; mais tarde,

 recobra-se o centro de gravidade, todos são bem-vindos

 ao refúgio do produto químico, injusto, sempre sujeito ao

 abuso: ridículo à primeira vista, dicloridrato de flunarizina

 (vertiz ou vertizine, nomes fantasia, ajustam o labirinto)

 o que está aqui, admita-se: é equilíbrio convertido em pílula.

capa

Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2015) – prelo. Lançamento em breve. 

Avaliação: bom

*

Pedro Taam é pianista, crítico literário e tradutor