* Por Marco Rigobelli *

Terceiro livro de Roberto Bolaño publicado postumamente, O espírito da ficção científica levantou uma discussão sobre a integridade de uma obra publicada após a morte de seu autor. O escritor chileno desejava que esse livro fosse publicado? Ele estava de fato terminado, como Bolaño gostaria que estivesse para chegar ao público? Como tomar esse tipo de decisão após a morte do autor? São questões que permeiam o livro recém-lançado pela Companhia das Letras, no Brasil.

O caso de Roberto Bolaño, que ainda em vida tornou-se um dos maiores nomes da literatura latino-americana e influenciou escritores no Brasil como Ricardo Lísias e Antônio Xerxenesky, é mais complicado: segundo sua família, os espólios contam com quase catorze mil páginas de manuscritos. A própria carreira dele coloca ainda mais camadas nessas dúvidas, já que começou a produzir com dezessete anos, mas só passou a publicar com quarenta e três – sete anos antes da morte repentina por causa de uma doença hepática.

Entre todos os manuscritos, O espírito da ficção científica destacou-se por estar inteiro, assinado, e com a data de 1984 marcando seu provável encerramento. Se há indícios de que a obra estaria terminada, por que há então tantas críticas à ela? Em parte por causa do processo nebuloso envolvendo sua publicação. Este é o primeiro livro de Bolaño em sua nova editora lá fora, a Alfaguara, e também porque o crítico literário Ignacio Echevarria – principal assessor dos espólios de Bolaño – se viu afastado de todo o processo que levou O espírito da ficção científica a ser publicado.

Além disso, em cartas que trocou com amigos, o escritor de Noturno do Chile mencionou como este livro o assombrava. A dificuldade que tinha em terminá-lo e a luta que escrevê-lo havia se tornado. Em nenhuma dessas correspondências ele falou sobre não conseguir dar um fim para à obra, gerando ainda mais desconfiança.

Escritores e seus espólios

Recentemente vimos uma situação parecida acontecer com o lançamento de Vá, coloque um vigia, o segundo romance de Harper Lee, escritora premiada com um Pulitzer por O céu é para todos. No caso, a autora ainda estava viva quando o livro chegou nas livrarias em 2015, mas seus biógrafos afirmavam na época que ela não tinha condições de consentir com a publicação. Lee vivia em uma clínica geriátrica e encontrava-se debilitada demais para decidir se uma nova obra poderia chegar ao público em seu nome. As suspeitas, no caso, recaem sobre a advogada da escritora. Tonja Carter era uma das únicas pessoas com acesso aos arquivos de Harper Lee, tendo contato com o que seria o manuscrito de Vá, coloque um vigia e aquele que poderá ser a terceira obra publicada da romancista, morta em fevereiro de 2016. O caso da Harper Lee tornou-se ainda mais sensível porque a própria escritora nunca quis publicar após seu romance de estreia, colocando em cheque a questão moral que foi o lançamento da continuação.

O caso de livros póstumos ou publicados sem autorização do artista ainda vivo são bastante comuns no meio literário. Os romances O processo e O castelo são considerados duas das principais obras de Franz Kafka, ainda que ambas só tenham sido lançadas após sua morte. Sem elas é possível que a produção artística do escritor tcheco tivesse permanecido incompleta, e nunca foi da intenção dele publicá-las. Ele, na verdade, tinha como último desejo queimar todos os manuscritos ainda não publicados por uma série de razões. Mas seu amigo pessoal, biógrafo e responsável pelo testamento Max Brod que preferiu não cumprir o pedido de Kafka e publicou os dois livros, sendo que O castelo sequer estava terminado. Brod se explicou dizendo que sempre havia deixado claro ao amigo que não seria capaz de incinerar as obras não publicadas, e disse que “Franz deveria ter nomeado outro executor se ele tivesse estado absolutamente e finalmente determinado que suas instruções deveriam ser cumpridas.”

O exemplo mais conhecido de autor com obras publicadas postumamente é, provavelmente, o britânico J. R. R. Tolkien. O linguista e escritor de O senhor dos anéis e O hobbit tem livros lançados com frequência desde sua morte em setembro de 1973. Além de contos e textos sobre a Terra Média reunidos pelo seu filho, há bastante material sobre tudo o que serviu de influência para Tolkien. São dezenas de livros sobre diversos assuntos que mantiveram seu nome fresco na memória dos fãs mesmo após a morte. Mesmo assim isso não acontece sem questionamentos, principalmente porque os materiais relacionados a O senhor dos anéis são em sua grande maioria compostos por textos inacabados (o que até nomeou uma das coletâneas, a Contos inacabados), fragmentos de coisas que Tolkien escrevia com a intenção de publicar, mas bem mais como maneira de dar forma às ideias que tinha para aquela ambientação. Tanto que muitos dos contos preenchendo esses livros foram escritos durante a produção tanto de O hobbit quanto de O senhor dos anéis.

O direito moral

Curiosamente, em sua última entrevista – concedida à revista Playboy mexicana – Bolaño disse que, para ele, a palavra “póstumo” “soa como o nome de um gladiador romano. Um gladiador invicto. Ou ao menos assim quer crer o pobre Póstumo, para dar-se o valor”. As publicações póstumas são até certo ponto livres de falhas, não há tanta responsabilidade no material entregue porque, bem, nunca foram terminadas. E daí vem a dúvida que assombra O espírito da ficção científica e outros livros mencionados anteriormente: cabe a quem decidir se um livro deve ser publicado sob o nome de alguém que já morreu sem deixar qualquer instrução sobre isso? Ou, quando há instrução, mas ela não é cumprida por aqueles responsáveis pelo legado. Como decidir o que fazer com o chamado direito moral de uma obra?

Em The soul of ceativity: forging a moral rights law for the United States a professora Roberta Kwall argumenta que “O trabalho externo de uma autora incorpora seu significado pessoal e mensagem intencional, dessa forma refletindo seu processo criativo individual e intrínseco. Ninguém, nem mesmo os filhos e cônjuge da autora podem substituir seus julgamentos pessoais a respeito da substância do significado e da mensagem da autora em seu trabalho”. Dessa forma ela defende que não seria possível julgar qual seria a intenção de um autor em relação a sua obra postumamente. Deixando em aberto casos como o do Tolkien e do próprio Bolaño.

Isso acontece porque em muitos casos é extremamente difícil discernir qual seria o pensamento do autor em relação a suas obras póstumas. Mesmo que seja possível analisar aquilo que já foi publicado, correspondências pessoas e declarações atrás de respostas, é muito fácil interpretar mal a intenção autoral quando essa pessoa não é mais capaz de defender suas ideias. O caso de Vitor Hugo é um dos mais interessantes. O escritor francês manteve diários e trocou correspondências durante toda a vida, isso foi largamente documentado. O tataraneto de Vitor Hugo usou esses documentos para entrar na justiça contra duas continuações de Os miseráveis que foram publicadas pela editora francesa Plon. No processo, o tataraneto alega que o direito moral de integridade de Vitor Hugo estaria sendo infringido pelas continuações tanto porque os livros foram escritos em um contexto totalmente diferente do original e por causa de mudanças feitas em personagens, como o caso de Javert que no livro de 1862 claramente se suicida, mas aparece vivo nas duas sequências, recriado como um personagem benevolente bastante diferente do perseguidor implacável de Jean Valjean na obra original.

A editora ganhou a causa com base em dois argumentos: o primeiro é que no momento em que publica, o autor deixa de ter controle criativo sobre a obra, que ganha vida própria e cresce em ramos com novos significados e interpretações que não cabem mais à vontade do autor. O segundo vem de um dos diários de Vitor Hugo, escrito em 1870, no qual ele escreve que “as pessoas pararam de pedir permissão para usar minhas palavras nos teatros. Em todas as partes as pessoas falam minhas palavras sem pedir permissão. Essas pessoas estão certas. Aquilo que eu escrevo não me pertence. Eu sou uma entidade pública.”

Pierre Hugo, o tataraneto, usou por sua vez uma declaração do escritor na qual ele diz: “uma vez o livro é publicado, uma vez que o sexo do livro, seja ele masculino ou não, foi identificado e proclamado, uma vez que a criança tenha soltado seu primeiro choro [deve ser deixado para] viver ou morrer como é.” Os argumentos se arrastaram por anos, com decisões sendo tomadas em 2004, até que uma nova corte foi aberta em 2008 e finalmente concluiu que não seria possível supor o desejo de Vitor Hugo em relação às continuações de seu livro, já que nunca houve uma declaração precisa por parte dele.

E isso é algo a se pensar. São poucos os casos de autores que tiveram suas intenções em relação à própria obra tão claras a ponto de não causar imbróglios parecidos no futuro. Tomemos J.D. Salinger como exemplo. Morto em 2010, o escritor sempre deixou claro seu desejo de nunca ter sua obra seminal, O apanhador no campo de centeio, adaptada para o cinema. De forma que até seus espólios têm mecanismos proibindo a venda dos direitos de adaptação. Mas o que impediria os donos do legado de aceitarem o negócio, considerando o interesse que um filme baseado nesse livro teria? Apenas a intenção de uma pessoa já morta seria o bastante para impedir isso de acontecer?

São questões que brotam de todos os lados quando pensamos em publicações póstumas, mas todas convergem para uma mesma pergunta: onde fica o limite para que um livro publicado após a morte do autor, sem sua anuência, não acabe prejudicando o legado de sua obra?

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Marco Rigobelli tem 28 anos e é paulistano. Publicou contos de ficção especulativa pelas editoras Jambô, Draco e na revista online Trasgo. Mantém um projeto com histórias de ficção científica e da relação entre sociedade

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