Por Luís Henrique Pellanda *

No ônibus, na volta da escola, era proibido conversar. Meninos e meninas não podiam dividir o mesmo banco. Comer também não era permitido: nada de frutas, doces ou salgadinhos. A turma sonhava com a possibilidade de uma bala de goma, a glória de um pão d’água. Mas tudo era desejo e veneno, só isso. Se a monitora nos visse movendo as mandíbulas, já vinha pra cima. Arrancava o chiclete da nossa boca e o atirava pela janela. E elas estavam sempre abertas, as janelas. Uma precaução contra a meningite.

Sim, tudo lá era desejo, veneno e demora. Só que, pra mim, problema maior era o tempo. O ônibus rodava duas horas e meia antes de me deixar em casa. Eu era o último a descer. Morar longe dava nisso, duas horas e meia sem poder ir ao banheiro. Eu me contorcia de cólica, a barriga estufada, os gases inviabilizando a janta de logo mais. E as crianças todas comigo, naquele mesmo barco. Com dor, com fome, com raiva. Mas em silêncio.

Havia tempo de sobra pra ler, é verdade. Mas ler também era proibido. Ler nos faria vomitar, era o que diziam. Ler dá ânsia de vômito, e ninguém queria saber de crianças vomitando na condução. Por isso não se lia. E quando o motorista fechava as portas do ônibus, pouco depois das cinco da tarde, e dava a partida, a ordem era clara: tínhamos de fechar, simultaneamente, nossos bicos e gibis.

Fechávamos. E mesmo assim a criançada vomitava. Todo dia alguém vomitava, e quase sempre em cima de um colega, nunca na janela aberta, como éramos instruídos a fazer. Quando isso acontecia, o motorista era obrigado a parar. Vinha pelo corredor com uma cara péssima, mais um atraso em sua vida, e trazia na mão o saquinho de serragem. Ia lançando aquelas lascas de madeira pelo chão, cobrindo o vômito com elas, e o ônibus ficava parecendo um curral sobre rodas.

Eu nunca vomitei. E lia todo dia, escondido da monitora e dos outros. Sempre sentava lá no fundo, calado, nunca chamei a atenção de ninguém. Aquele ônibus foi o meu laboratório de discrição, um verdadeiro curso de translucidez. Eu me enfiava entre os estudantes que desciam primeiro, os que moravam perto do Centro. Isso era tido como esnobismo pelos meus companheiros de periferia, mas era só uma estratégia. Eu precisava estar sozinho, queria ler e não confiava em ninguém. As crianças, quase todas, tinham uma alma delatora. Se vissem alguém com uma bolacha recheada, uma revista da Mônica, ou dando um gole numa térmica, num refri contrabandeado, já chamavam a tia. Eu precisava me precaver. E entre o pessoal da região nobre, eu sabia que, depois de uma hora de viagem, os bancos ao meu redor já estariam vazios.

Era legal. Eu não tinha nem dez anos, me sentia um clandestino. E não sei bem por quê, nunca fui de ler livro infantil. Eu era leitor do Verissimo, não perguntem o motivo. No começo, eu não sabia nada sobre ele. Nem sobre crônicas ou literatura. Mas eu gostava dos livros dele, tinha três ou quatro, se não me engano, e acho que na época faziam sucesso. Li cada um deles dezenas de vezes, e até hoje me lembro de cada frase, e da sensação, boa ou ruim, que me causavam.

Ter lido literatura na infância, meio que por acaso, foi um golpe de sorte. Era o momento em que eu fazia as perguntas corretas. E acho que há certa sabedoria na implicância, não sei. Numa das crônicas que li e reli no ônibus, por exemplo, o Verissimo dizia ter inveja das preguiças, bichos que passavam a vida pendurados pelo rabo, dedicados à contemplação do universo. E eu encasquetei com aquilo. O rabo da preguiça, afinal, não é preênsil. Ela mal tem um rabo, tem um toco de cauda. E se eu sabia disso, como um escritor não sabia?

Noutra crônica, o Verissimo dizia não saber o plural de louva-a-deus, e afirmava que nunca ninguém tinha visto dois desses insetos juntos. Ora, eu já tinha visto. E mais adiante, em outra passagem, o autor ainda chamava o hipopótamo de anfíbio, classificação que, aos olhos de um estudante de oito ou nove anos, beirava o absurdo. Era como se o cara estivesse falando de uma espécie gigantesca de sapo.

Mas serei justo. Esse desconhecimento das coisas que eu julgava banais não era exclusividade do Verissimo. Mais ou menos naqueles anos li Fernando Sabino, e me chocou saber que o cronista não fazia ideia de quantas pernas tinha uma salamandra: quatro ou seis? E o que dizer de Paulo Mendes Campos, que não sabia que o rabo de uma lagartixa, uma vez cortado, tem o poder de se regenerar? Pois na criança suburbana que eu era, desde cedo se firmou a impressão de que os escritores não eram seres infalíveis. Longe disso. Aprendi a lê-los com prazer e desconfiança, e a duvidar da noção de autoridade.

Mas preciso voltar ao ônibus da escola, a história é curta, ainda bem. Certa noite, fui, enfim, denunciado. Jamais esqueci o menino que me entregou. Guardei seu nome e seu rosto, até hoje sei quem ele é e como ganha a vida, mas não vejo por que revelar aqui a sua identidade. Ele teve quase quarenta anos pra pensar no assunto e se redimir de alguma forma.

Fato é que o cara me entregou, e talvez tivesse suas razões. Isso, a culpa, é lá com ele. Comigo, aqui, foram as desculpas. Furiosa, a monitora veio me tomar o livro, decerto temendo alguma crise vomitória, mas, ao ver o exemplar em minhas mãos, hesitou. Leu o título, A grande mulher nua, que pouca vergonha é essa, piá? Recitei um texto didático sobre o Verissimo. Eu havia decorado sua biografia, prevendo um aperto como aquele. Quem era o homem, quem foi seu pai, onde nasceu, quais suas obras mais relevantes. A monitora ficou confusa, perguntou se minha mãe sabia que eu estava lendo aquele tipo de livro. Eu disse que sim, e ela preferiu deixar quieto.

Anos mais tarde, a situação era bem outra. Eu voltava pra casa de madrugueiro, dia sim, dia não, mais ou menos bêbado, em meio à zoeira dos passageiros notívagos. Meu ônibus era um pandemônio, e a PM tinha o hábito de pará-lo na metade do seu trajeto. Não era raro acontecer. Os policiais subiam e escolhiam, entre nós, dois ou três sortudos, forçados a descer pra uma averiguação de rotina. Nem sempre os eleitos subiam de volta.

Fui escolhido algumas vezes, e não sinto saudade daquelas batidas. Demorei um pouco pra fazer a relação, mas notei que, sempre que eu carregava um livro, os PMs me deixavam em paz, e eu podia seguir viagem tranquilamente. Até que numa madrugada, um soldado me olhou duas, três vezes, checou o livro no meu colo e veio pro meu lado. Rindo, me cumprimentou, admirado por eu continuar lendo no ônibus, você por aqui, colega, quem diria, ainda fã do Verissimo?

Era o meu antigo delator, claro. Apertamos as mãos, e a do PM me pareceu uma salamandra de cinco pernas. Ele me desejou felicidades e foi embora. Não lembro o que desejei a ele. Era o dono do sorriso mais ambíguo que já vi, impossível dizer se era ou não sincero. Quando o ônibus partiu, com dois de nós a menos, senti uma ponta de náusea. Eu estava envenenado. Mas não vomitei.

*

Luís Henrique Pellanda é escritor, autor de Asa de Sereia [Arquipélago], entre outros

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