Shoah, o novo filme de Claude Lanzmann

doisneau_damesme

Por Jacques Fux *

1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial. Até então o mundo não sabia ao certo o que de fato tinha acontecido. Notícias começam a circular por todos os cantos contando e, muitas vezes, mostrando as barbaridades dos Campos de Extermínio. O mundo ainda reluta em aceitar as barbaridades perpetradas que começam a se revelar.

Após o fim da guerra, os sobreviventes, quase praticamente afogados, buscam reconstruir ou, talvez, recriar uma nova vida. Muitos com tatuagens de números em seus antebraços começam a mostrar a cara absurda e terrível do inferno de Auschwitz. Porém, aterrorizados diante da mera possibilidade da existência de tamanhas barbaridades, o mundo recusa escutá-los. Até 1960 muitos dos sobreviventes se calaram: muitos não conseguiam de fato dizer qualquer coisa, limitados pelo trauma; já outros diziam, porém não eram ouvidos. Assim ambos se calaram durante algum tempo.

O Estado de Israel nasce em 1948, polemicamente, tentando mudar a concepção de fragilidade e falta de resistência que muitas vezes foram atribuídas aos judeus que pereceram durante a Shoah. Em 1961, com a prisão do banal burocrata que implementou de forma eficiente a Solução Final, Adolf Eichmann, o mundo finalmente se calou para ouvir os sobreviventes. A Era do Testemunho começava. Mais de cem vítimas são convidadas a contar suas terríveis histórias no Tribunal em Jerusalém. Os cidadãos de Israel, bem como a comunidade internacional, passaram a compreender que existiu (e sempre existirá) outra possibilidade além da resistência armada. O Levante do Gueto de Varsóvia ainda continuava sendo um símbolo de luta armada e resistência do povo judeu, mas Auschwitz passaria a ser um símbolo da resistência espiritual. Dessa resistência por meio da palavra, falada e escrita, agora viva nos testemunhos dos sobreviventes.

Assim surge o filme de Claude Lanzmann. Um filme de testemunhos da maior catástrofe sem nenhuma explicação e razão. Um filme que mostra a solução do problema judaico empregada pelos nazistas, a eficiência dos carrascos na construção da máquina da morte e a tentativa da representação do indizível.

Durante onze anos, Lanzmann colheu depoimentos. Depoimentos dos sobreviventes, dos perpetradores e da população civil que morava nas redondezas dos Campos de Extermínio. Lanzmann sabiamente recusa as imagens de arquivo. As imagens que nos afrontam constantemente ao se mostrar o extermínio em massa de pessoas. Essas imagens nos fazem criar e construir uma representação do que poderia ter sido Auschwitz. Porém, Auschwitz está muito além de qualquer tentativa de representação e entendimento. Desta forma, negando a obscenidade da imagem, o filme Shoah é concebido.

Shoah é lançado em 1985 e, desde então, vem causando grandes discussões e polêmicas. Polemiza a questão da imagem, a questão da interferência do diretor, a questão da tradução, entre muitas outras. Nas quase dez horas de duração do filme, lágrimas, risos incrédulos e dor permeiam essa obra de arte. Para o próprio diretor, a única forma de tentar pensar a Shoah só poderia ser através arte. A arte do cinema, do relato e da figura agora cultuada do testemunho.

Finalmente, quase trinta anos depois, o Brasil se insere oficialmente na arte de Shoah. O filme lançado pela parceria entre a Bretz Filmes e o Instituto Moreira Salles, a um preço bastante salgado, vai possibilitar acesso, também, à nova geração. Geração que podemos chamar do Pós-Testemunho, já que a figura física e viva dos sobreviventes vai se extinguindo lentamente.

Por isso, apesar de tardio, o momento do lançamento do Shoah no Brasil ainda é muito importante. Momento que surge outra onda antissemita, dessa vez disfarçada em antissionismo. Shoah mostra a resistência através do testemunho, da palavra escrita e oral, da resistência espiritual. Shoah revela, através da arte, que a resistência através das ideias também faz parte da cultura judaica e da existência do Estado Judeu. O filme desvela, para os mais sagazes, a grande parcela de judeus que almeja a convivência pacífica com seus vizinhos, embora mostre enfaticamente que esses vizinhos são muitas vezes os que não desejam a própria paz.

*

Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG

Tags: , ,