O passado em ruínas grita uma oração

matta

Por Raimundo Neto *

A fila de pessoas volteava a metade do quarteirão e amarrava a curiosidade de todas ao lado de fora, uma armação de corda-de-resgate que nos deixaria retornar ao que erámos antes de conhecer a experiência dentro do antigo Hospital-Matarazzo, fechado há vinte anos.

Não é mentira que a “invasão criativa” de cem artistas do mundo todo, dentre eles brasileiros, patrocinada por um empresário francês tem a intenção de simbolizar renascimento dentro da fundação que dará lugar a um shopping de luxo e a um hotel de muitas estrelas. Também não é mentira que os milhões investidos vendem a ideia de arte como comércio. A única grande verdade, no entanto, que posso sustentar é que o que mora ali, naquele espaço, jamais morrerá, graças ao presente da arte que não morre.

Gosto da ideia da arte como imortal. A ideia de eternidade em cores, linhas, efeitos simbólicos, o inconsciente borbulhando. Em cada espaço da mansão Matarazzo, chamada de Cidade, aconteceram intervenções artísticas elaboras com tinta, luzes, fumaça, rabiscos, palavras, sons do mundo, pedaços da casa, resquícios de tempos idos, poeira, projeções, uma dança guardada numa sala, água, passos. Em seus devidos muitos lugares, cada peça e espaço ocupava-se com a presença dos visitantes. Cada pessoa ocupada num espaço entendendo seus próprios significados.

A arte é uma oração e naqueles espaços ela aproximava luz e trevas. Em algumas instalações deus e o diabo de mãos dadas, a contragosto: o artista aceitou todas as sombras que nublam a realidade, e, perdoando todas as angústias, entendia-se com o divino. Pensar em todos os pecados (vivê-los a cada peça, a cada passo, a luz e as sombras animadas com a dança dos sentidos) foi uma benção.  A intenção nunca foi exorcizar qualquer demônio, e, sim, ajudar o espectador a construir seu próprio sentido. O diabo que perturba a calma do passado estava gemendo em todos os cantos da casa, e a luz que vibrava era o perdão.

Uma ladainha alucinada ecoava, vibrava, amém, bendito sejam os erros, bendito seja o que se perde antes do que se ganha, maldito seja o abandono, a ruína, os fragmentos, o pó. Enquanto a ladainha rasgava o ar eu rabiscava minha compreensão limitada do momento para depois concatenar tudo:

– O som do mundo

– Fantasmas elétricos, que dançam, Ou lembranças que desmoronam, Ou a memória dos que morreram, Ou o sonho dos que morreram, Ou todas as imagens refletem o que vive soterrado em nosso inconsciente, o abrigo escondido do que nunca poderemos entender.

– A fé colorida e felpuda percorre o interior da capela e ameniza a rigidez dos santos calados. O barulho do passado acordou nas mãos dos artistas todos.

Labirinto de sentidos encontrados, o esconderijo da vida que não termina.

– Todo passado é um fantasma.

– A ideia do sagrado e da ressurreição.

– O espaço, que agora é memória, abrigava a ciência que curava e deixava a vida surgir agora recebe o mistério.

 Questiono-me sempre, ao ver ruínas de construções onipotentes: Como se inicia uma desocupação? Como um hospital daquele tamanho, com uma história enraizada no centro de São Paulo, simplesmente deixar de acontecer? Tornou-se um monumento-fantasma: percorri o corpo de um fantasma. Tentei imaginar o momento exato em que o dono, a direção decretou o fim, e acabou o inevitável: Como terminou tudo aquilo? Não dá mais, falimos, quebramos, morremos, morreram todos. Ou fugiram. E se a maioria dos internos não estava curada, foram para onde? Em que lugar de São Paulo a doença de todos eles terminou de acabar? E os que tiveram o nascimento interrompido? Transferiram a cura para que espaço? E os funcionários desempregados? Quem morreu de chorar? Quem agradeceu pelo fim de tudo que não tem fim: a morte, a história, o amor?

Numa das maiores salas, que talvez fosse o refeitório do passado do hospital, o mar se agitava em projeção. Difícil resistir. O mar encobria todos os outros sons da casa, agora distantes; o som do mar cobria todos os sentidos, abafava o som dos passos pensados dos visitantes, o mesmo mar que tentava fugir pelas janelas era o mar que trazia a paz dos mortos, a irresistível paz dos mortos. Em outro espaço, que também parecia refeitório, uma chuva artificial lavava o impossível, a imundice degradada e sem fim.

Desde os corredores até os espaços abertos, fora da mansão, palavras soltas começavam a fazer sentido, escritas, pintadas, coladas com impressões particulares de ponta a ponta; uma construção antiga dentro de palavras novas, ou talvez fosse o contrário. A palavra ganhava vida no corpo das pessoas. (Quando o prédio fechar, e depois cair, e todas aquelas palavras não forem mais lidas por ninguém, o que acontecerá? O que acontece com uma palavra guardada no escuro se não há ninguém para entendê-la? E depois que todos aqueles sentidos forem demolidos: o que acontece com um significado que se esconde dentro dos escombros? Ele morre ou continua vivo em que o levou consigo?).

Algumas imagens tentavam escapar, uma fuga que nunca tinha fim, até o mar tentava escapar pela janela.

O corpo em dança de uma mulher, que se rendeu às ruínas da casa, aos pedaços da própria vida, vibrava pra lá e pra cá, numa dança melancólica, forte, resistente, levantava poeira, descascava paredes, arrancava lembranças de debaixo dos resquícios de tudo: da pedra, das sombras, santos, pinturas, linhas traçadas em espaços impossíveis, água inundando abundantemente o abandono: a mulher e a memória da casa acordavam os próximos passos, o ritmo. A desconstrução da dança, de trás para frente, fazia cada instante ter mais sentido. A imagem, a mulher que dançava pelas salas, que talvez fossem enfermarias. O corpo sujo da mulher que dançava pelo abandono, sozinha. (Quantos abandonos cabem no fim?) A dança é renascimento, mas não tem força para a ressurreição. E ao sair da sala de projeção, a dança, o fantasma da dança, o som que rasgou a presença do fantasma, acompanhava o espectador. A presença da mulher que dançava sozinha apresentou-me a intimidade do abandono. Que dança é mais apropriada para recomeçar? E quando se morre, que música embala o corpo que não existe? Que fundação abrigará o movimento do devir?

E se a casa for demolida (segundo alguns boatos [não sei se é verdade], tudo será demolido, e apenas a fachada do prédio será preservada), a exposição salvará a intenção dos mortos: que cada um carregue consigo o que fomos, que cada um carregue de nós aquilo que nunca morre. No lugar brotará, de acordo com os boatos, um “shopping, centro cultural e um hotel de luxo”, uma nova cidade de luxo nas mãos de um Senhor da França.

A cidade que envelheceu, e de últimos suspiros fez seu próprio mar, uma chuva que não lava nada, deixou algumas lembranças dançando entre escombros e fios soltos, viu homens, mulheres, crianças e idosos percorrerem as entranhas gastas de seu corpo doente; a cidade que será desossada em breve terá esqueleto de ferro, ou aço, seja lá que substância terá a nova fundação moderna sem alma que ali nascerá.

Escrevi com verbos passados, sobre o passado: porque foi ontem, anteontem, porque foi há vinte anos. Escrevo no passado, mas poderia ser presente, pois nenhuma de todas as impressões causadas morrerá. E no futuro, tudo virará poeira, e o que será erguido reluzirá um brilho absurdo, um luxo delirante, aí sim entenderei que o que deveria viver está morto e enterrado.

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Raimundo Neto publicou contos na extinta Revista Malagueta, no site da revista Bravo e venceu um concurso literário (Contos de Teresina). Escreve coluna no site O Pensador Selvagem. É colaborador da São Paulo Review