É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Noemi Jaffe *

Não sei para onde ir.

Ricocheteio, hesito, posso, não posso, avanço, recuo, penetro, retorno, apareço, explodo ou implodo, não sei. Às vezes penso que explodo e que meu movimento é centrípeto, destruindo tudo aquilo em que toco – eu toco, o verbo para mim é tocar? – e outras penso que implodo, que meu conteúdo brota de dentro para fora, consumindo-me enquanto consumo uma víscera, um órgão, um músculo, um coração.

Mas que diferença isso faria no saldo final? Muita sim, acreditem.

Entro dentro de um corpo antes intacto em sua jornada pelo tempo, seus fluxos, partes moles e duras, reentrâncias e saliências, seu envelhecimento, as células girando em degenerescência ondulante e pronto – acelero tudo, apresso os líquidos antes viajando na direção dos pulmões, do fígado, tudo indo para baixo, para cima, no milagre do coração e destroço as vísceras num rastilho de pólvora. E de dentro para fora, sim, assim mesmo. Quem explode é o corpo e dentro dele ainda eu, implodida e explodida, porque também eu me desfaço nesse processo, embora médicos me retirem inteira, acreditem, o melhor de mim se foi e com ele a integridade implodida de outro corpo.

Naquele dia entrei num cartucho, um tambor, uma culatra – (por que tantas palavras para designar o lugar onde me guardo? É porque quem me usa não são usuários de armas, mas, na verdade, adoradores de palavras) que, por sua vez, entrou dentro de um coldre (que palavra linda, macia) e dentro de uma pistola (pistola, apelido de pau, pinto, pênis) e dentro de um suporte de pistolas e dependurada num cinto, uma cinta, um colete, um uniforme.

Fui à rua dentro dessa envelopagem em muitas camadas, protegida por todas elas, subterrânea e deusa, eu, a bala, a última dos recursos, a primeira, a inteira, o coice em formação, a que ainda não veio, a que virá, a sanha do tempo, a possibilidade da morte, a trava da vida, a solução final, a invenção do humano, a evolução das espécies, a iminência. Eu, a bala, a química e a física, o imponderável do tempo, a velocidade inapreensível pelo olho humano, o irrefreável, o que não se pode capturar, a técnica, a arte e a tecnologia irmanadas, a massa maciça da verdade, a agregação final entre natureza e cultura.

Assentei-me dentro da pistola de, como ele chama?, Wanderlei, Gustavo, Paulo?, e esperei.

Quando chegou o momento aguardado do tiroteio – era em Duque de Caxias, eram bandidos e mocinhos, era a escória contra a justiça, era assim que eles diziam e eu militarmente acreditava, queria, precisava, eu era o bem, eu sou o bem, sou a bala do bem – eu me aprumei: é agora. Como semente prestes a fecundar, estirei-me, perfilada, pronta para a abalo. Saí!

Eis-me livre para o abate final, aérea, em trote reto para o furo.

Mas para onde? Meu deus, para onde? Estonteei-me desabalada, num infinitésimo de segundo, circulando em rotas espirais, sem localizar nada, perdida, sozinha, uma bala em fuga, em vias de cumprir seu destino sanador.

E fui. Fui na direção de Claudineia, grávida de Arthur, 39 semanas, ultrassom recentemente realizado, bebê normal, saudável, pai feliz, ela estava indo ao mercado.

É aqui mesmo, é para lá que devo ir. Perdida, encontrei-me, envelopada também lá, no ventre duplo de Claudineia, um novo coldre, novo bolsão, uma vida como eu ainda não nascida e para sempre interrompida, como a minha.

Sem lugar, eu, também a Arthur o tirei. Fui decidida, embora perdida, já que, perdida, precisava eu escolher um alvo. Gustavo, Walnderley, Paulo, Gastavo, Piulo, não sei, coitado, não sabia, não podia, não conseguia ele escolher.

Escolhi por ele.

Esses dias soube que Arthur, antes tetraplégico pelo efeito da bala (eu, a bala, a do jornal era eu!), morreu.

É estranho. Fiz o que devia, fui certo ao pote, dupliquei meu efeito, matei, vi meu nome nos jornais, fiz por Wanpauderley o que ele não pode fazer.

E sigo perdida.

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Noemi Jaffe é escritora, autora do recém-lançado Não está mais aqui quem falou, entre outros

 

 

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