A dam Gordon é um jovem poeta americano que graças a uma prestigiosa bolsa de estudo se muda para Madri, por um ano, com o objetivo oficial de completar um “projeto de pesquisa”. Adam é brilhante, mas altamente inconstante e atormentado por dúvidas profundas sobre si mesmo e sua posição em relação à Arte. Este é o personagem principal do romance Estação Atocha, de Ben Lerner, que a editora Rádio Londres acaba de lançar no País.

Viciado em cafeína e haxixe, inseguro com as mulheres e com uma forte tendência a se automedicar, a pesquisa de Adam vira uma reflexão sobre a questão da autenticidade que, página após página, alternando momentos hilários com ruminações existenciais, acaba por alimentar a sensação de distância entre o universo interior dele e o mundo externo, reforçando cada vez mais a suspeita de que suas relações, suas reações e até mesmo sua personalidade são fraudulentas, uma grande mentira, assim como os seus poemas.

“Um livro totalmente charmoso. Um herói ingênuo e genial, com baixa autoestima, mentiroso, automedicado. Trata-se de um personagem memorável, e sua voz tem uma cadência absolutamente característica e engraçada.” É assim que paul Auster resume o livro. Leia a seguir um trecho inédito da obra:

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A fase inicial do meu projeto de pesquisa envolvia acor- dar nos dias de semana num apartamento de sótão que mal tinha móveis – o primeiro que vira ao chegar em Madri – ou deixar  que o barulho proveniente da Plaza de Santa Ana me acordasse,  sem conseguir incorporá-lo completamente aos meus sonhos, depois colocar a cafeteira enferrujada no fogo e enrolar um baseado enquanto esperava o café. Assim que o café ficava pronto, abria a claraboia, que era grande o suficiente para  eu conseguir me enfiar nela depois de ter subido  na cama, e ia beber o café e fumar  no telhado  que dava para a praça onde os turistas,  armados com guias de viagem, sentavam às mesinhas metálicas e o tocador  de acordeão praticava seu ofício. Ao longe, o palácio  e os longos rastros  das nuvens.  Depois,  o projeto exigia que eu voltasse para dentro, descendo pela claraboia, cagasse, tomasse banho,  engolisse os comprimidos brancos  e me arrumasse. Então  encontrava minha  bolsa, que continha uma edição bilíngue da Antologia Poética de Lorca, dois cadernos, um dicionário de bolso, os Selected Poems de John Ashbery e remédios, e saía rumo ao Prado.

Do meu apartamento, pegava  a Calle de las Huertas, acenava para os garis de farda verde-limão, cruzava o Paseo del Prado,  entrava  no museu, que, graças à minha  carteirinha  de estudante, custava  apenas  dois euros, e ia direto para  a sala 58, onde ficava plantado diante  da Deposição da Cruz, de Rogier van der Weyden. Normalmente chegava à frente do quadro uns quarenta e cinco minutos depois de ter acordado, de modo que, enquanto observava as figuras de tamanho quase natural e esperava o equilíbrio  chegar, o haxixe, a cafeína e o sono ainda estavam competindo pelo controle  do meu organismo. Maria  se detém num desmaio que parece eterno; os tons de azul de sua túnica são únicos na pintura flamenga. Sua postura é um reflexo quase exato da de Jesus, cujo corpo  é segurado  por  Nicodemus e um ajudante, como  se não  pesasse nada.  C.1435; 220  x 262 cm. Óleo sobre painel de carvalho.

Um divisor  de águas  no  meu  projeto: certa  manhã, eu me aproximei do van der Weyden e logo percebi que alguém  tinha  tomado o meu lugar.  O sujeito  estava  no ponto  exato  em que eu sempre ficava e, por um instante, me vi atônito, como  se estivesse olhando um clone meu mais magro e mais escuro olhando  o quadro. Esperei que o homem prosseguisse, mas ele se deteve. Perguntei-me se ele tinha me observado  enquanto eu contemplava a Deposição e se agora  estava na frente  do quadro na expectativa de ver o que  quer  que  fosse que  eu devia  ter visto. Fiquei irritado e tentei encontrar outras  telas para  cumprir  meu ritual  matutino, mas estava  acostumado demais  com as proporções e os azuis do quadro para  me contentar com um substituto. Estava prestes a sair da sala 58 quando o homem  de repente  caiu  num  choro  convulso, acompanhado por violentos soluços. Será que ele estava encarando a parede  só para  esconder  o rosto  enquanto enfrentava a dor  que tinha  trazido  para  o museu, qualquer que ela fosse? Ou  talvez  estivesse passando por  uma  profunda experiência artística?

Por muito  tempo,  eu convivera  com a preocupação de ser incapaz de passar por uma profunda experiência  artística e me custava  acreditar que alguém  mais fosse, pelo menos entre os meus conhecidos. Nutria profundo ceticismo a respeito  das pessoas  que alegavam  que um poema  ou uma música tinham “mudado a vida delas”, especialmente porque, observando-as antes  e depois  dessa experiência, não conseguia detectar a menor mudança. Embora quisesse dar uma de poeta e apesar de ter ganhado minha bolsa de estudos  na Espanha  graças ao meu suposto  talento  literário, eu só conseguia  apreciar  a beleza dos versos quando os encontrava citados  em trechos  de prosa,  nos ensaios que os professores da faculdade me mandavam ler, com as barras  substituindo as quebras  de linha,  de modo  que o que me impressionava não era um poema em particular, mas o eco de uma possibilidade poética.  O que realmente me interessava na arte  era a desconexão entre  a minha percepção das obras  de arte  físicas e as alegações  feitas em nome  delas. A sensação  mais próxima de uma  profunda experiência  artística  que eu tivera talvez tenha  sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência  da ausência de profundidade.

Assim que se acalmou, o que levou  pelo menos  dois minutos, o homem  secou o rosto  e assoou  o nariz  com um  lenço  que  depois  guardou no  bolso.  Ao entrar na sala 57, que estava  vazia a não  ser pela presença  de um guarda longilíneo, meio desengonçado e com ar sonolento, o sujeito caminhou diretamente até uma pequena  imagem votiva de Cristo  atribuída a São Leocádio:  túnica  verde, roupas vermelhas,  expressão de profunda dor.  Eu fingi que observava os outros  quadros, mas, de vez em quando, olhava  pelo canto  de olho  para  o homem  que fitava  as pequenas  telas. Por um minuto,  que pareceu  uma eternidade, ele permaneceu em silêncio e depois deixou escapar outro  soluço. Isso alarmou o guarda  e nossos  olhares  se cruzaram: o meu comunicando que a mesma coisa tinha acabado de acontecer  na outra  sala, o do guarda  evidenciando uma luta interior  para determinar se o homem era um louco – talvez o tipo de homem que poderia  danificar um quadro, cuspir nele, arrancá-lo da parede ou arranhá-lo com uma chave – ou se estava passando  por uma profunda experiência artística. De novo apareceu o lenço, e o sujeito dirigiu-se calmamente para  a sala 56, parou  na frente do Jardim das Delícias Terrenas, contemplou-o por um longo momento e então desabou por completo. Agora havia três guardas na sala: o desengonçado da 57, a mulher baixinha que  sempre  vigiava  a sala 56 e um guarda  mais  velho, de cabelão  esquisito  e prateado, que devia ter ouvido  os soluços do corredor. Os poucos visitantes presentes na sala 56 estavam tão absortos em seus audioguias que nem ao menos se deram  conta  da cena que se desenrolava diante do Bosch.

Qual é o papel de um guarda de museu? – pensei comigo mesmo.  O que é, de fato,  um guarda  de museu?  Por um lado, ele faz parte de uma força de segurança  encarregada de proteger objetos inestimáveis dos loucos, das crianças ou da lenta força corrosiva dos flashes das câmeras. Por outro, ele vive entre supostos triunfos do espírito humano, e talvez a única fonte de prestígio de sua posição seja justamente a convicção de que tais triunfos poderiam facilmente comover um homem  às lágrimas.  Havia  um certo  pathos  na indecisão dos guardas, guardas  que passam  a maior  parte  da própria vida na frente de quadros eternos,  mas a quem as pessoas apenas perguntam que horas são, quando o museu vai fechar e dónde está el baño.

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Estação Atocha, de Ben Lerner [219 págs, editora Rádio Londres]

Tradução de Gianluca Giurlando

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