Montaigne

Uma vez, em Bar-le-Duc, Montaigne viu um retrato que Renê, rei da Sicília, havia pintado de si mesmo, e perguntou: “Por que não é, de igual maneira, lícito, a qualquer um, retratar a si próprio com uma pena, tal como ele fez com um lápis?”. De imediato pode-se responder: Não apenas é lícito, mas nada poderia ser mais fácil. Outras pessoas podem nos escapar, mas nossos próprios traços são quase familiares demais. Comecemos, pois. E então, mal nos pomos à obra, a pena nos escapa dos dedos; trata-se de uma questão de uma dificuldade profunda, misteriosa e avassaladora.

Afinal, em toda a literatura, quantas pessoas conseguiram retratar a si mesmas utilizando a pena? Apenas Montaigne e Pepys e Rousseau, talvez. O livro Religio Medici é um vidro colorido através do qual vemos, obscuramente, estrelas cadentes e uma alma estranha e turbulenta. Um espelho brilhante e polido reflete o rosto de Boswell espiando por entre os ombros de outras pessoas na famosa biografia. Mas esse falar de si mesmo, seguindo as suas próprias veleidades, fornecendo o mapa inteiro, o peso, a cor e a circunstância da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição – essa arte pertenceu a um homem apenas: a Montaigne. À medida que os séculos passam, há sempre uma multidão diante desse quadro, contemplando suas profundidades, vendo nele seus próprios rostos refletidos, vendo mais coisas quanto maior for o tempo que olharem, nunca sendo capazes de dizer exatamente o que veem. Novas edições dão mostras de sua perene fascinação. Dizer a verdade sobre si mesmo, descobrir a si mesmo de tão perto, não é coisa fácil.

Não temos notícias senão de dois ou três dos antigos que trilharam esse caminho […]. Ninguém, desde então, seguiu as suas pegadas: É um empre- endimento espinhoso, e mais do que parece, esse de perseguir um passo tão caprichoso quanto o de nosso espírito; de penetrar as profundezas opacas de suas dobras internas; de selecionar e fixar tal quan- tidade dos mínimos aspectos de suas agitações. E é uma distração nova e extraordinária, que nos tira das ocupações ordinárias do mundo: sim, e das mais recomendáveis […] (II, 2).1

Há, em primeiro lugar, a dificuldade de expressão. Entregamo-nos, todos, ao estranho e agradável processo que chamamos “pensar”, mas quando se trata de dizer, mesmo a alguém que esteja à nossa frente, aquilo que pensamos, quão pouco, então, somos capazes de transmitir! O fantasma atravessa a mente e salta pela janela antes que tenhamos chance de tomar-lhe as rédeas, ou então afunda e regressa à profunda escuridão que, com luz bruxuleante, iluminou por um momento. Na fala, rosto, voz e dicção complementam nossas palavras e dão força à sua fragilidade. Mas a pena é um instrumento rígido; pode dizer muito pouco; tem todos os tipos de hábitos e cerimônias que lhe são muito próprios. É também ditatorial: está sempre transformando homens comuns em profetas, e transmutando o andar naturalmente indeciso da fala humana na marcha solene e majestosa das penas. É por essa razão que Montaigne destaca-se das legiões dos mortos com uma vivacidade tão irreprimível. Não podemos nunca ter dúvidas de que seu livro era ele próprio. Ele se recusou a dar aulas; ele se recusou a pregar; insistia em dizer que era exatamente como outras pessoas. Todo o seu esforço consistiu em escrever a si próprio, em comunicar, em dizer a verdade, e em afirmar que se trata de um “empreendimento espinhoso, e mais do que parece”.

Pois, para além da dificuldade de comunicar aquilo que se é, há a suprema dificuldade de ser aquilo que se é. Esta alma, ou a vida dentro de nós, não combina absolutamente com a vida fora de nós. Se temos a coragem de perguntar-lhe o que ela pensa, ela está sempre dizendo o oposto do que outras pessoas dizem. Outras pessoas, por exemplo, há muito tempo decidiram que cavalheiros de idade de aspecto enfermiço devem ficar em casa e edificar os restantes com o espetáculo de sua fidelidade conjugal. A alma de Montaigne dizia, ao contrário, que é na velhice que se deve viajar, e o casamento que, sem dúvida, raramente se baseia no amor, está sujeito  a se tornar, no fim da vida, um laço formal que é preferível desfazer. Igualmente, na política, os estadistas estão sempre louvando a grandeza do Império e pregando o dever moral de civilizar o selvagem. Mas vejam os espanhóis no México, exclamou Montaigne num acesso de cólera. “Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, […] e a parte mais rica e bela do mundo revirada pelo comércio da pérola e da pimenta: Vis vitórias.” [III, 6]. E, depois, quando os camponeses chegaram e lhe disseram que tinham encontrado um homem morrendo por causa de ferimentos e o tinham abandonado com medo de que a justiça pudesse incriminá-los, Montaigne perguntou:

Que lhes poderia ter dito? É certo que esse dever de humanidade lhes teria causado problemas. […] Não há nada tão profundamente, tão extensamente imperfeito quanto as leis: nem tão frequentemente (III, 13).

Aqui, a alma, tornando-se inquieta, fustiga as formas mais palpáveis dos grandes pesadelos de Montaigne, a convenção e a cerimônia. Mas observem-na enquanto ela cisma, junto à lareira, no aposento interior daquela torre que, embora separada do edifício principal, tem uma ampla vista de toda a propriedade. Realmente, ela é a criatura mais estranha do mundo; nada heroica, ela é instável como galo de catavento. Pois Montaigne vê a si mesmo como “acanhado, insolente, casto, luxurioso, falador, taciturno, laborioso, delicado, engenhoso, estúpido, melancólico, bonachão, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, e liberal e avaro e pródigo” (II, 1). Em suma, ela é tão complexa, tão indefinida, correspondendo tão pouco à versão que a representa em público, que um homem pode passar a sua vida simplesmente tentando localizá-la. O prazer da perseguição é mais do que suficiente para nos recompensar por qualquer dano que possa ser causado a nossas esperanças mundanas. O homem que está consciente de si mesmo é, a partir daí, independente; e nunca está entediado, e a vida é apenas curta demais, e ele está impregnado de uma ponta a outra de uma profunda – ainda que comedida – felicidade. Ele, sozinho, vive, enquanto outras pessoas, escravas da cerimônia, deixam a vida passar por elas numa espécie de sonho. Conforme-se uma vez, faça uma vez o que outras pessoas fazem porque elas o fazem, e uma letargia toma conta, lentamente, de todos os nervos e todas as capacidades mais delicadas da alma. Ela se torna toda espetáculo e vazio exterior; embotada, insensível e indiferente.

Se pedirmos, pois, a esse grande mestre da arte da vida para nos contar seu segredo, ele certamente nos aconselhará a nos recolher para o aposento interior de nossa torre e ali folhear  as páginas dos livros, perseguir fantasia após fantasia enquanto elas dão caça umas às outras chaminé acima, e deixar o governo do mundo para outros. Retiro e contemplação – esses devem ser os principais elementos de sua receita. Mas não; Montaigne não é, de maneira alguma, explícito. É impossível extrair uma resposta simples desse homem sutil, entre sorridente e melancólico, de olhos pesadamente cerrados e de expressão sonhadora, brincalhona. A verdade é que a vida no interior, com seus livros e seus vegetais e suas flores, é, muitas vezes, extremamente tediosa. Ele nunca poderia verificar que suas ervilhas verdes eram muito melhores que a dos outros. Paris era o lugar de que ele mais gostava no mundo inteiro – “até mesmo as suas verrugas e as suas manchas” (III, 9). Quanto à leitura, ele raramente podia ler qualquer livro por mais de uma hora seguida, e sua memória era tão ruim que esquecia o que estava na sua mente enquanto ia de um quarto para o outro. O conhecimento livresco não é nada de que alguém possa se orgulhar, e quanto aos feitos da ciência, a que se reduzem eles? Ele tinha sempre se dado bem com homens inteligentes, e seu pai tinha verdadeira veneração por eles, mas ele observara que, embora eles tivessem seus bons momentos, suas rapsódias, suas visões, os mais inteligentes dentre eles tremem, chegando às raias da loucura.  Observe a si próprio: num momento, você está todo animado; no seguinte, um copo quebrado deixa-o à beira de um ataque de nervos. Todos os extremos são perigosos. É melhor ficar no meio da estrada, nas trilhas costumeiras, por mais lamacentas que sejam. Ao escrever, escolha as palavras comuns; evite a rapsódia e a eloquência – mas, é verdade, a poesia é deliciosa; a melhor prosa é aquela que está mais plena de poesia.

Parece, pois, que devemos ter em mira uma simplicidade democrática. Podemos desfrutar de nosso aposento na torre, com as paredes pintadas e as espaçosas estantes de livros, mas lá embaixo, no jardim, cavando, está um homem que enterrou o pai esta manhã, e é ele e os de sua estirpe que vivem a vida real e falam a língua real. Existe certamente um elemento de verdade nisso. As coisas são ditas com muita precisão na ponta mais baixa da mesa. Há, talvez, mais das qualidades que importam entre os ignorantes do que entre os estudados. Mas, de novo, que coisa vil é a turba! “Mãe da ignorância, da injustiça e da inconstância. É razoável que a vida de um sábio dependa do julgamento dos tolos?” (II, 16). Suas mentes são débeis, moles e sem poder de resistência. É preciso dizer-lhes o que é conveniente que saibam. Não lhes cabe enfrentar os fatos tais como são. A verdade só pode ser conhecida pela alma bem-nascida – “l’âme bien née”. Quais são, pois, essas almas bem-nascidas que devemos imitar? Quem dera Montaigne nos iluminasse mais precisamente.

Mas não. “Não ensino; conto” (III, 2). Afinal, como poderia ele explicar as almas de outras pessoas quando não podia dizer nada “de maneira completa, simples e sólida, sem confusão e sem embaralhamento, nem numa única palavra” (II, 1) sobre a sua própria alma, quando, na verdade, ela se tornava a cada dia cada vez mais obscura para ele? Há, talvez, uma única qualidade ou princípio – não se deve estabelecer regras. As almas às quais desejaríamos nos assemelhar, como Etienne de La Boétie, por exemplo, são sempre as mais flexíveis. “Trata-se de existir, mas manter-se preso e obrigado por necessidade a uma única trilha não é viver” (III, 3). As leis não passam de meras convenções, absolutamente incapazes de dar conta da vasta variedade e desordem dos impulsos humanos; hábitos e costumes constituem uma conveniência inventada para servir de apoio a naturezas tímidas que não ousam dar livre curso a suas almas. Mas nós, que temos uma vida própria e a consideramos infinitamente como a mais cara de nossas posses, suspeitamos sobretudo de qualquer tipo de afetação. Assim que começamos a discursar, a agir com afetação, a ditar leis, nós perecemos. Vivemos, então, para outros, não para nós mesmos. Devemos respeitar aqueles que se sacrificam ao serviço público, enchê-los de honrarias e ter pena deles por permitirem, como devem, o inevitável compromisso; mas, para nós mesmos, deixemos ir embora a fama, as honrarias e todos os cargos que nos deixam em obrigação para com os outros. Deixemo-nos fervilhar sobre nosso incalculável caldeirão, nossa enfeitiçadora confusão, nossa miscelânea de impulsos, nosso perpétuo milagre – pois a alma vomita maravilhas a cada segundo. Movimento e mudança são a essência de nosso ser; a rigidez é morte; o conformismo é morte: vamos dizer o que nos vem à cabeça, vamos nos repetir, nos contradizer, deitar fora o mais insensato dos absurdos, e seguir as mais fantásticas fantasias sem nos importarmos com o que o mundo faz ou pensa ou diz. Pois nada importa a não ser a vida; e, naturalmente, a ordem.

Essa liberdade, pois, que é a essência de nosso ser, tem que ser controlada. Mas é difícil ver que poder devemos invocar para nos ajudar, uma vez que toda restrição à opinião própria ou à lei pública é ridicularizada, e Montaigne nunca para de lançar desprezo sobre a desgraça, a fraqueza, a vacuidade da natureza humana. Seria talvez desejável, então, nos voltarmos para a religião para nos guiar? “Talvez” é uma de suas expressões favoritas; “talvez” e “eu acho” e todas aquelas palavras que atenuam as precipitadas suposições da ignorância humana. Essas palavras nos ajudam a amortecer opiniões que seriam muito pouco oportunas para serem pronunciadas claramente. Pois não dizemos tudo; há algumas coisas que, no momento, é aconselhável apenas sugerir. Escrevemos para umas pouquíssimas pessoas, que compreendem. Certamente, busquem a orientação divina, não tenham dúvidas, mas existe, entretanto, para aqueles que vivem uma vida própria, um outro monitor, um censor invisível no interior, “um chefe dentro de nós” (III, 2), cuja censura deve ser mais temida que a de qualquer outro, porque ele sabe a verdade; da mesma forma, não existe nada mais agradável do que o sinal de sua aprovação. Esse é o juiz ao qual devemos nos submeter; esse é o censor que nos ajudará a atingir aquela ordem que é a benção de uma alma bem-nascida. Pois “é uma vida especial aquela que se mantém em ordem mesmo a sós” (III, 2). Mas ele agirá sob sua própria luz; por algum equilíbrio interno atingirá aquela estabilidade precária e sempre mutante que, embora controle, de forma alguma trava a liberdade da alma para explorar e experimentar. Sem outro guia, e sem precedentes, é sem dúvida muito mais difícil viver bem a vida privada do que a pública. É uma arte que cada um deve aprender sozinho, embora haja, talvez, dois ou três homens, como Homero, Alexandre o Grande, Epaminondas, entre os antigos, e Etienne de La Boétie, entre os modernos, cujo exemplo pode nos ajudar. Mas é uma arte; e o próprio material sobre o qual ela trabalha é variável e complexo e infinitamente misterioso – a natureza humana. Devemos nos manter próximos da natureza humana. “É preciso viver entre os vivos” (III, 8). Devemos recear qualquer excentricidade ou refinamento que nos separe de nossos semelhantes. Abençoados são aqueles que conversam facilmente com seus vizinhos sobre o seu esporte ou as suas construções ou as suas brigas e honestamente apreciam a conversa de carpinteiros e jardineiros. Comunicar é a nossa principal tarefa; a associação e a amizade são nossos principais prazeres; e ler, não para adquirir conhecimento, não para ganhar a vida, mas para ampliar nossa interação para além de nossa época e de nossa província. Há tantas maravilhas no mundo; alcíones e terras não descobertas, homens com cabeça de cachorro e olhos no peito, e leis e costumes, é bem possível, muito superiores aos nossos. É possível que estejamos adormecidos neste mundo; é possível que haja algum outro que é visível a seres com um sentido que agora nos falta.

Eis aqui, então, apesar de todas as contradições e de todas as qualificações, algo definido. Esses ensaios são uma tentativa para fazer uma alma entrar em comunicação. Sobre esse ponto, ao menos, ele é explícito. Não é fama que ele quer; não é que os homens o citem pelos séculos  afora; ele não está erigindo nenhuma estátua no meio da praça; ele quer apenas que sua alma entre em comunicação. Comunicação é saúde; comunicação é verdade; comunicação é felicidade. Compartilhar é nosso dever; mergulhar energicamente e trazer à luz aqueles pensamentos ocultos que são os mais mórbidos; não esconder nada; não fingir nada; se somos ignorantes, dizê-lo; se gostamos de nossos amigos, fazer com que o saibam.

Pois, como sei por bem sólida experiência, não existe melhor consolo, quando da perda de nossos amigos, do que o que nos é dado pela consciência de que nada deixamos de lhes dizer, e de ter tido com eles uma perfeita e franca comunicação de amigo (II, 8).

Há pessoas que, quando viajam, se fecham em si mesmas, “protegendo-se do contágio de um ambiente desconhecido” (III, 9), em silêncio e desconfiança. Quando comem precisam ter o mesmo tipo de comida que têm em casa. Qualquer visão e costume é ruim a não ser que se assemelhe aos de seu próprio vilarejo. Viajam apenas para voltar. É a maneira mais errada de abordagem. Devemos começar sem nenhuma ideia fixa sobre onde vamos passar a noite, ou quando pretendemos voltar; o caminho é tudo. Mais necessário que tudo, mas sorte das mais raras, devemos tentar encontrar, antes de partir, algum homem de nossa própria classe que vá conosco e a quem podemos dizer a primeira coisa que nos vem à cabeça. Pois o prazer não tem nenhuma graça a menos que o partilhemos. Quanto aos riscos – que possamos apanhar um resfriado ou ter uma dor de cabeça – sempre vale a pena arriscar uma doença passageira em nome do prazer. “O prazer é uma das principais espécies de proveito” (III, 13). Além disso, se fizermos o que gostamos, sempre faremos o que é bom para nós. Médicos e sábios podem ter as suas objeções, mas deixemos os médicos e os sábios com sua própria e triste filosofia. Quanto a nós, que somos homens e mulheres comuns, vamos dar graças à Natureza por sua generosidade, usando cada um dos sentidos que ela nos deu; variar o nosso estado tanto quanto possível; voltar ora este lado, ora aquele, para o calor, e saborear ao máximo, antes que o sol se ponha, os beijos da juventude e os ecos de uma bela voz cantando Catulo. Todas as estações são desfrutáveis, e dias úmidos e dias lindos, vinho tinto e vinho branco, companhia e estar só. Mesmo o sono, essa deplorável redução do prazer da vida, pode ser pleno de sonhos; e as ações mais comuns – uma caminhada, uma conver- sa, ficar só no seu próprio pomar – podem ser intensificadas e iluminadas pela associação da mente. A beleza está por toda parte, e a beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade. Assim, em nome da saúde e da sanidade, não descansemos no fim da jornada. Que a morte nos surpreenda plantando nossas couves, ou no lombo de um cavalo, ou nos permita escapulir para alguma casinha no interior onde estranhos possam fechar os nossos olhos, pois um criado soluçando ou o toque de uma mão nos  deixariam arrasados. Melhor ainda, que a morte nos encontre em nossas ocupações normais, entre moças e bons camaradas que não façam nenhuma declaração ou lamento; que ela nos encontre “entre os jogos, os festins, as brincadeiras comuns e populares, e a música, e versos de amor” (III, 9). Mas chega de morte; é a vida que importa.

É a vida que emerge cada vez mais claramente à medida que esses ensaios alcançam  não seu final, mas sua suspensão, a toda velocidade. É a vida que absorve cada vez mais, à medida que a morte se aproxima, o seu eu, a sua alma, cada fato da existência: veste simples meias de seda tanto no verão quanto no inverno; põe água no vinho; não consegue cortar o cabelo após ter almoçado; tem um copo especial para tomar água; nunca usou lentes; tem uma voz forte; carrega uma vareta na mão; tende a morder a língua; não consegue deixar de remexer impacientemente os pés; tem vontade de coçar as orelhas; gosta de carne fétida; limpa os dentes com um guardanapo (graças a Deus, eles estão bons!); não dorme sem cortinas na cama; e, o que é muito curioso, começa por gostar de rabanetes, depois não gosta mais, e então gosta de novo. Nenhum fato é demasiado insignificante para que o deixe escorregar pelos dedos, e além do interesse dos fatos em si há o estranho poder que possui de mudá-los pela força da imaginação. Observem como a alma está sempre projetando suas próprias luzes e suas próprias sombras; como torna oco o substancial e substancial o frágil; enche a plena luz do dia com sonhos; é tão animada por fantasmas quanto pela realidade; e, no momento da morte, diverte-se com uma bobagem qualquer. Observem, também, sua duplicidade, sua complexi- dade. Fica sabendo da perda de um amigo e se solidariza, mas tem um malicioso e agridoce prazer nas desgraças de outros. Ela crê; ao mesmo tempo, não crê. Observem sua extraordinária suscetibilidade a impressões, especialmente na juventude. Um homem rico rouba porque lhe davam pouco dinheiro quando criança. Levanta-se uma parede para si porque o pai gostava de construção.

Em suma, a alma está toda ornada de nervos e simpatias que afetam cada uma de suas ações, e contudo, mesmo agora, em 1580, ninguém tem nenhum conhecimento cristalino – covardes que somos, amantes que somos das fáceis maneiras convencionais – de como ela funciona ou o que ela é, exceto que, entre todas as coisas, ela é a mais misteriosa, e o nosso eu o maior dos monstros e o maior dos milagres do mundo. “[…] quanto mais me percorro e me conheço, mais minha deformidade me surpreende, menos compreendo a mim mesmo.” (III, 11). Observe, observe perpetuamente e, enquanto houver tinta e papel, “sem cessar e sem fadiga” (III, 9), Montaigne escreverá.

Mas resta uma questão final que, se pudermos fazer com que tire os olhos de sua absorvente ocupação, gostaríamos de fazer a esse grande mestre da arte da vida. Nesses extraordinários volumes de sentenças breves e interrompidas, longas e sábias, lógicas e contraditórias, ouvimos o próprio pulso e ritmo da alma, batendo dia após dia, ano após ano, através de uma veia que, à medida que o tempo passa, se afina quase até a transparência. Eis aqui alguém que se saiu bem na arriscada empresa de viver; que serviu o seu país e viveu retirado; foi senhor de terras, marido, pai; entreteve reis, amou mulheres, e meditou por horas, sozinho, em cima de livros antigos. Por meio da experimentação e da observação contínuas do que existe de mais sutil conseguiu, finalmente, um miraculoso ajuste de todas aquelas caprichosas partes que constituem a alma humana. Ele agarrou a beleza do mundo com todos os dedos. Ele atingiu a felicidade. Se tivesse que viver de novo, disse ele, ele teria vivido a mesma vida outra vez. Mas, quando observamos com intenso interesse o absorvente espetáculo de uma alma vivendo abertamente diante dos nossos olhos, uma questão se impõe: É o prazer o fim de tudo? De onde vem esse avassalador interesse pela natureza da alma? Por que esse desejo avassalador para se comunicar com os outros? É a beleza do mundo suficiente ou existe, em algum outro lugar, alguma explicação desse mistério? A isso que resposta pode haver? Nenhuma. Apenas mais uma questão: “Que sçay-je?” [“Que sei eu?”].

 

  1. 1. As referências remetem às seções e aos capítulos do livro Ensaios, de Michel de Montaigne, com traduções feitas dire- tamente do francês pelo tradutor da presente coletânea.

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O texto acima é de Virginia Woolf e integra o livro O sol e o peixe (editora autêntica), coletânea na qual se reúnem nove de suas prosas mais poéticas. Nelas, Virginia contrasta a visão de um eclipse total do sol com a dos peixes num aquário de Londres; fala sobre a paixão da leitura; relembra, em traços delicados e comoventes, a convivência com o pai; teoriza sobre a nascente arte do cinema e sobre as relações entre a literatura e a pintura; enaltece as paradoxais vantagens de se ficar doente; celebra as belezas naturais de Sussex e as delícias urbanas de uma caminhada fortuita por Londres.

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O sol e o peixe (editora autêntica, 112 págs., R$ 37,90), de Virginia Woolf

Seleção e tradução: Tomaz Tadeu

 

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