Carolina

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Ricardo Ramos Filho *

A menina Carolina gosta de contar a vida no caderno. Anota no diário o cotidiano de tantas Marias como ela, Carolina Maria também. Mas sente cada dia descrito nas palavras desenhadas com capricho nas pautas paralelas do papel. Cada um deles é seu particular. Igual, mas diferente do de todo mundo, que é ela quem observa os perigos das ruelas escuras onde vive. Preserva-se. Ela não tem amor profundo nem deixa ninguém escravizá-la. Vive assim meio bicho gato. Gata. Carolina Maria já não é de Jesus. Ele partiu dali quando partiram todos os santos comandando a retirada, no dia em que a favela virou comunidade, os quartos de despejo agora de alvenaria. Carolina Maria de Ninguém.

Quando o sol desliza-se para o poente e a noitinha cobre de cinza o passeio, a menina que é também Carolina, Carolina Maria de Ninguém, esgueira-se rápido no caminho de volta. Segue em frente detestando as gracinhas que ouve:

– Oh, Carol, quero seu amor!

Os rapazes assanhados com as curvas que prometem, embora sejam ainda apenas sugestões de carnes futuras. Vivemos em um mundo de colheitas antecipadas. Difícil alguma coisa amadurecer. Sem seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina, favela-comunidade. Escapa dos desejos antecipados. Alva ao lírio, o medo cobrindo de cal o rosto da menina.

Em casa, barraco úmido e abafado, ela escreve no diário. Fala de quem, como ela, entrega a vida aos cuidados da vida. Tem época que é o sol que predomina. Tem época que é o frio. Agora é a vez da chuva. O trovão apavora. Um tiro mais grosso, demorado, retumbante. Não os estalos secos trocados entre rivais do tráfico, verdadeiros traques. Foge da goteira que pinga em suas palavras. Gotas indesejadas de realidade. Nua, crua, a solidão sem poder buscar quem mora longe. Carolina Maria de Ninguém é mesmo de ninguém. Vive sozinha ainda menina. Ela e o diário com quem conversa. Os dois amigos. Se vive ali e não gosta, precisa sonhar que vive em outro canto. Um lugar mais residível.

E então estia, os barulhos da natureza acabam, ela quase se tranquiliza. Quando vai para o leito recolher-se, contudo, o sono custa a chegar. Olhos arregalados, Carolina Maria de Ninguém não conta carneiros. Por uma fresta da janela improvisada consegue perceber os clarões dos tiros de metralhadora. Lindos! Riscos pontilhados no céu. Uma rajada, duas rajadas, três… Adormece sonhando com bife, batata frita e salada. Feliz. Melhor ter apenas ar no estômago que uma bala perdida.*

Ricardo Ramos Filho é escritor, autor de vários livros

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