‘Vizinhos’, de Jacques Fux

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Por Jacques Fux *

Em 2001, uma das mais terríveis histórias de genocídio cometidas durante a Segunda Guerra Mundial veio a tona com a publicação do livro de Vizinhos, de Jan Gross. O professor e pesquisador da prestigiosa Universidade de Princeton narra três terríveis pogroms que aconteceram em 1941 nas cidades polonesas de Radzilow, Wasosz, Jedwabne. Nesta última, metade da população (cerca de 1600 pessoas) matou com crueldade a outra metade da população que era judia. Apesar da ocupação nazista e da existência de Campos de Concentração, não houve surpreendentemente a participação nazista nesse assassinato em massa. Apenas os vizinhos dos judeus resolveram, com suas próprias mãos, e motivados pelas perseguições, assassinatos e desparecimentos em toda Europa, dar fim a essa inconveniente presença.

Talvez esse tenebroso ato dos vizinhos seja muito bem descrito por Paul Valéry ao argumentar sobre a inutilidade contemporânea da própria figura do demônio: “Mefisto: No final das contas, pode ser que não sirva mais para nada. Eu fui construído sobre uma ideia errada (…), segundo a qual as pessoas não são malvadas o suficiente para se perderem sozinhas, com seus próprios meios.”

Quem eram essas pessoas que em 1941 se perderam sozinhas e mataram seus vizinhos? Pessoas normais que o fizeram com a ajuda dos seus próprios filhos e amigos usando ferramentas rudimentares como enxadas, pás e fogo. Infelizmente a realidade é mais cruel, como escreveu William Vollman: “como seria conveniente saber que os cidadãos do Terceiro Reich eram, de alguma forma, extremamente maus por natureza, demônios condenados – em outras palavras, diferente de nós. O caso atual, naturalmente, é muito mais terrível.”

A História e relação entre a Polônia e os judeus é uma das mais interessantes e controversas questões. Desde a criação desse país no século X, aproximadamente em 966, já encontramos relatos de viajantes e geógrafos atestando a existência de comunidades judaicas naquela região.

Ao longo desses muitos anos, os judeus foram algumas vezes convidados para integrar as comunidades da Polônia e outras vezes encontraram refúgio neste país, quando perseguidos. O fato é que os judeus sempre exerceram grande influência na cultura e na construção desse Estado.

Durante a Shoah, a quase totalidade dos judeus que viviam na Polônia foi levada para Auschwitz. Neste período aparece a figura importante e memorável dos The Righteous Among the Nations (Justos entre as nações). Segundo o site do Yad Vashem, a população que mais salvou judeus foi a população polonesa[1].

A Polônia, no entanto, mesmo após a Shoah, ainda produziu progroms. Os judeus sobreviventes que tentaram voltar à suas casas ainda foram perseguidos e mortos. Injustamente condenados por um assassinato ritual em 4 de julho de 1946, na cidade de Kielce, quarenta e dois judeus sobreviventes da Shoah foram mortos e mais de oitenta foram feridos.

Devido à importância judaica historicamente na Polônia, o governo atual polonês, por iniciativa própria, começou a construir símbolos e instalações com o intuito, talvez, de prestar homenagem ou atrair e incentivar o turismo judaico na região. Há um projeto, por exemplo, para a construção do Museu de História Judaica em Varsóvia.

Ainda hoje, na Polônia, muitos afirmam que não sabiam de nada que acontecia durante a remoção e o desaparecimento dos judeus. Existe, entretanto, uma rádio na Polônia – conhecida por Radio Maria – que ainda tem uma programação explicitamente antissemita. Por outro lado, o teatro iídiche de Varsóvia vive lotado. Os atores, não judeus, atuam para uma audiência que acompanha o texto graças a uma tradução. Há ainda o festival anual de música judaica klezmer, na Cracóvia, com a presença de milhares de jovens.

A publicação do livro Vizinhos rendeu inúmeros artigos, críticas e releituras. Apesar de polêmica, a discussão deve continuar. Deve-se buscar, vasculhar e desvelar o que de fato aconteceu, quando trabalhamos com assassinatos, genocídios e crimes contra a humanidade.

Devemos resgatar a memória perdida, para que os mortos não sejam esquecidos, como escreveu Walter Benjamim: “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

[1] Segundo o site, existem 6339 Justos entre as Nações na Polônia.

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Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG

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