* Por Tatiana D’Angieri *

A morte é o que há antes da vírgula? Após a virgula, a primeira palavra se instala na página e no mundo. Marcelo Ariel, na novela A vida de Clarice Lispector (Arte & Letra, 2023), nos leva ao território mais misterioso que será comum a todos os seres: ao do nascimento pouco antes da morte. Assim, o autor caminhou pela vida de Clarice – prestes a nascer de si mesma e à beira do último e glorioso suspiro. Na novela, acompanhamos uma reimaginação dos últimos pensamentos de Clarice tornada personagem – na cama de hospital em um estado de sonho e quase-corpo, tendo ao seu lado apenas uma rosa num copo, observa a rosa – como a única verdade que a alcança e cujo mundo é o copo.  A personagem Clarice atravessa transformações ao longo do texto, possibilitando que o que sabemos sobre a verdadeira Clarice também se transforme à medida em que avançamos para o final da leitura. A morte, núcleo vivo do que o autor se refere como “instante-verdade”, elabora revelações de um corpo desintegrando-se num mundo que também se desintegra.

Marcelo Ariel sugere que a posição de Clarice diante da própria incógnita da morte a leva a um estado de “quase-sair”. Logo após, o autor indaga: “De quem?”. Esse “de quem” é como um rosto que possui em si todos os rostos. Portando, nessa metamorfose que o texto propõe, resta somente o pertencimento final ao não-eu. Pois no instante derradeiro a dissolução do eu vislumbra um outro de si que o ajuda a morrer.

Para o autor, a graça concedida na morte é um sorriso absoluto. Num dado momento ele se refere às estátuas dos anjos que nunca sorriem sobre os túmulos (pág 43), mas os mortos sim sorriem eternamente. Ao longo do livro, percebemos que mesmo ao vaguear pelo labirinto neutro de si mesma, onde o pensamento acompanha o movimento vivo do raciocínio, para a personagem Clarice há ainda o vislumbre do Algo – intacto e inerte revelado pela iminência de sua morte. Pois o que será o Algo senão a anunciação abstrata da mão terrível estendida a todos? O Algo sem-nome, talvez a aura secreta do núcleo da vida.

A novela explora um denso diálogo de neblina entre o corpo e o não-corpo “num lugar quase fora da existência”, que também é paradoxalmente a percepção máxima da consciência onde Clarice pôde morrer. Sua morte é crua e seca, como tudo que tenta tatear os mistérios do indefinido. Marcelo Ariel escolheu penetrar no acontecimento sublime da morte como forma de penetrar na vida. E o fez: atravessou a fenda aberta pela morte e acessou o mistério de uma existência.

Para o autor, o êxtase que busca-se durante a vida somente nos é entregue na morte.

O livro abre com a frase: “Agora sou tudo”. Essa expansão de si como tentativa de não caber apenas dentro do próprio corpo, mas migrar ao êxtase da transfiguração como único modo de dar conta da morte – já que a morte é a expansão final ao desconhecido. Podemos ver esse movimento através da imagem da rosa no copo? Possuir uma sede não-humana é fundir-se ao desconhecido presente em todas as coisas para assim deparar-se mais corajosamente diante da finitude? Para mim, é raro que pessoas vivas habitem um corpo. Talvez só na doença ou em mutações da consciência aconteça essa percepção, ao mesmo tempo maravilhosa e agônica. Então, quando você diz “não caber dentro do próprio corpo”, parece haver uma confusão entre corpo e mundo, que me soa inapropriada. Deveria existir a palavra corpomundo. Para mim, é corpomundo e vidamorte. Não há dicotomia. A rosa no copo é uma imagem rilkeana e também uma citação do conto “A imitação da rosa”. No texto, há vários diálogos com o que ela escreveu. Não acho que a morte seja a expansão final, pois não sabemos nada sobre ela. Só a ficção pode dar conta da morte porque só a ficção pode dar conta da vida. Todos os dias nos deparamos com a finitude de modo distraído e impregnado de alheamento. Penso que é muito difícil para qualquer coisa viva aceitar a finitude: uma pessoa, um inseto, uma árvore ou uma galáxia. Aliás, a morte das galáxias é muito bonita, elas se fundem umas nas outras.

Para alcançar a perplexidade iluminadora de estar vivo é preciso se esquecer? Diante do esquecimento há o êxtase do susto: a surpresa se instala quando se esquece. Portanto, é preciso esquecer-se para que, no livro, Clarice, penetrasse na experiência do mundo? Quando, diante da pintura de Michel Seuphor, surge a ela a revelação de que o além-corpo também é o mundo. “Quando se é o mundo perde-se o ser? E quanto mais ser menos o mundo é?”(Pág.48). Trata-se da relação entre a exterioridade do eu encontrando a interioridade do mundo? Talvez somente seja possível fundir o eu ao mundo quando o eu atinge o lado de fora, e o mundo, o lado de dentro? Para então haver um encontro de linhas, como nos traços do quadro de Michel Seuphor? No livro, o estranhamento aparece como a sensação-vertigem de que o mundo se revela diante do esquecimento. Sendo assim, a iluminação genuína está na perplexidade? Nirvana é uma palavra em sânscrito que pode ser interpretada como extinção ou sopro. Mas eu gosto de pensar o significado de nirvana como esquecimento. O esquecimento patológico do Alzheimer talvez seja uma “forma de extinção”, embora a pessoa ainda esteja lá dentro: algo foi extinto através do esquecimento. Há um mito, senão me engano, tibetano, no qual a morte não tem memória; ela se alimenta da nossa memória, vai se transformando em nós, e nós deixamos de ser nós mesmos, morremos ocos. Segundo esse mito, cada coisa que esquecemos foi na verdade roubada pela morte. Na novela, imagino uma espécie de luta com esse ser – a morte – uma luta para não esquecer. Aliás, título de um dos de Clarice. É como se existissem vários êxtases que compõem o viver e nós, assim como a personagem do livro, precisássemos por extrema necessidade, travar uma luta incessante contra o êxtase do esquecimento. O encontro de Clarice com o quadro de Michel Seuphour, na minha visão, foi decisivo para o surgimento do texto que ela considerava central em sua obra, “O ovo e a galinha”. É como se a arte fosse capaz de instaurar em nós a lembrança absoluta de coisas sobre todos os outros êxtases que compõem o viver; coisas que nós nem percebemos que esquecemos. Quem não conhece o quadro, não vai compreender o que eu estou querendo dizer, nem o que você está querendo dizer com a pergunta. Trata-se de uma transfiguração geométrica do mundo como um ovo. Na qual, as linhas que compõem o mundo-ovo são também as linhas que compõem o ser. Ou seja, é tudo sobre a imanência. A novela que compõe o livro “Escudos. Cinco  R.A.P.s e um samba escritos com Cruz e Souza”, seguido de “A vida de Clarice Lispector, uma novela breve”. Esse “breve” substitui a palavra imanência. Ela ia se chamar uma novela sobre a imanência.
É impossível fundir o eu ao mundo. A natureza da palavra “eu” é refratária à ideia de fusão. Mas também é impossível separar o ser do mundo. Nem a morte consegue isso. Para mim, a iluminação genuína está na infância reencontrada. Isso é um fato tanto para Clarice quanto para Proust. Talvez possamos criar um anagrama. Vida-breve-novelo-da-imanência.

No livro, a infância é tratada como um estado de “selvageria da lucidez”. Neste sentido, é necessário resgatar a infância para que se possa experimentar o instante? Sim, houve dentro de cada um de nós um sequestro da infância. Mas talvez ela seja o ovo do mundo. Talvez a infância seja mesmo um território bárbaro e encantatório, um jardim fechado para os que vivem a vida social dos adultos, eis um paradoxo: será que é possível entrar de novo nesse jardim?

Você se refere a morte como um incêndio sereno. Há maravilhamento em tudo que é terrível? Fale um pouco do título do livro. A palavra “vida” no título, e irônico, já que o centro da narrativa é a morte? Há uma novela do quadrinista Neil Gaiman que eu acho maravilhosa, chamada  ‘ Morte : o grande momento da vida’ Eu acho que a personagem Morte, de Neil Gaiman, é clariceana. Acho que  o uso do  adjetivo clariceano é tão pertinente quanto o  usso do adjetivo kafkiano, quando se trata de abordar o viver. Eu tentei fundir esses dois adjetivos na novela. O clariceano e o kafkiano. Por isso no livro o viver é abordado a partir de seu oposto, como recomenda Montaigne. Suas perguntas realmente destoam do comum. Penso que essa palavra maravilhamento é terrível porque ela pode ser aplicada ao horror e ao sublime ao mesmo tempo.

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Tatiana D’Angieri é escritora, tradutora e psicóloga. Graduada em Psicologia com ênfase em Psicanálise. Desde 2020 estuda as relações entre Psicanálise e escrita. Publicou  textos na Revista Mallarmargens, Quimera Real entre outras. É autora do romance Luz Selvagem (no prelo pela Editora Reformatório).

 

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