* Por Alexandre Brandão *

Com exceção da casa e de alguns móveis, sou mais velha que tudo e todos. Quando digo casa, quero dizer construção. Casa é habitar a construção, então a que estou só passou a existir depois que a ocupamos. Nesse sentido somos da mesma idade, pois nela nasci mais ou menos no mesmo dia em que meus pais para cá se mudaram. Pode-se dizer o mesmo dos móveis. O armário do quarto de hóspede foi comprado em um antiquário; a cômoda, certa hora jogada e esquecida no porão, veio como herança dos avós maternos. Apesar de antigos, eles só passaram a existir como móveis nesta casa quando aqui foram instalados. Mas tudo isso são ideias meio malucas, cultivadas para me distrair. Do quê? Acho que da velhice, da solidão.

Não posso reclamar da solidão, de jeito algum, até a desejo. Não a desejo, mas se houvesse menos gente na casa, se pelo menos fossem mais silenciosos. Nem bem afirmo, recuo. Sou arrastada para a solidão justamente pela balbúrdia. Nenhum dos que ocupam a casa me dá o mínimo de atenção. Estão muito preocupados com suas vidas. Ou com suas mortes. Ontem mesmo, meu pai, no alto de seus cento e vinte anos, cruzou a sala de um lado para o outro. Estava ansioso, visivelmente ansioso. Não puxo assunto com ele, a vida toda fomos distantes, ele fechado em sua braveza invulnerável. Mas, agora que está morto, ele não poderia sentar-se ao meu lado e conversar comigo, se abrir?

Nem um pio, só o movimento pendular. Meu pai é um relógio sem sentido, não marca o tempo, com o qual não lida mais. Quando eu poderia pensar que existiria algo parecido com ansiedade entre os mortos? Da morte, esperava o silêncio, a paz, os braços de Deus na vida eterna, e ali está meu pai, tique para cá, taque para lá. Morre, pai. Morre. Os vivos são piores, fazem barulho, movimentem-se ou não. Na cozinha, uma colher batuca a panela enquanto fazem o arroz ou fritam o bife; a geladeira de quando em quando estala; o radinho de pilha é um forte, canta, canta, e, se não está cantando, anuncia inutilidades à venda. Na morte há a ansiedade, misericórdia, mas em vida tenta-se fugir da morte. Barulho, romance, contemplar o pôr do sol, tudo não passa de estratagema para se distrair da morte. Vida besta. Morte besta.

Sou mais velha que tudo e todos, com exceção do armário agora no quarto de hóspedes. Zininha gosta dele, sempre que me visita, e me visita muito, com estadias rápidas, abre sua mala exagerada sobre a cama, tira tudo lá de dentro e ocupa o armário. Naquele armário estão guardados os ossos do general, deveria ser considerado um túmulo inviolável, mas Zininha não pensa assim e espalha suas roupas por lá. Será que suas calcinhas são largadas sobre o pequeno baú com o corpo preso do general? Nunca lhe perguntei, mas espero que ela não faça isso, seria um erotismo inútil. Se o intuito é reviver o passado — ela pensa que sou trouxa — , ela deveria saber que o olfato do general era péssimo, a mim ele nunca cheirou nem de cabo nem de rabo.

Até o general era mais novo que eu, e eu o matei um pouco por isso. Quando fui me dando conta de quão provecta estava me tornando, matei o general. Eu poderia ser mais velha que meio mundo, mas não mais que o homem que não me cheirava, que me fazia filhos, me fazia carinhos também, mas não me cheirava. Não sou de ironia, mas o general, hoje, não fede nem cheira. Zininha pode impregnar suas calcinhas do perfume mais sedutor do mundo, o general, em ossos, não perceberá.

Acho estranho que ele não transite pela casa. Quer dizer, não acho estranho exatamente ele não andar por aí, mas sim o fato de minha ideia tão sem sentido, trancar seus ossos no baú, ter funcionado. Eu deveria ir ao cemitério, trazer os ossos de papai aqui para a casa e igualmente trancá-lo numa caixinha? De repente, a contenção do general tenha mais a ver com medo. Ele deve me temer. Os mortos ficam ansiosos, aprendo com meu pai, portanto devem preservar seus medos e até ganhar novos. Medo de mim seria algo inusitado na vida do general. Já na morte…

Zininha é minha prima. Fomos desde sempre muito amigas, apesar de ela ser bem uns três ou quatro anos mais moça. Eu a pajeei, quer dizer, sob o olhar de algum adulto, eu brincava com ela como se fosse minha boneca. Depois, quando ela tinha seus cinco aninhos, nossa diferença de idade foi para o espaço, a gente passou a ficar grudada, mas grudada de um tal modo que sua mãe se assustou e reclamou com a minha. Depois, o susto passou, e eu e Zininha levamos nossas vidas. Quando eu tinha uns dezessete comecei a levá-la para passeios, festinhas. Daí vieram a intimidade, as confidências, um namoro meu, um dela, tudo escondido porque naquela época era assim. Quando chegou o general — ainda sem patente —, o tempo, feito um soldado, tomou sentido. Outro sentido. Sei lá como é isso. Me casei e Zininha passava dias conosco. Comigo e com ele. Com ele, despida; comigo, apesar de bem trajada, nua, transparente. Eu sempre soube e não me meti, achava cômodo. Ela que ficasse de delícias com um homem que não cheirava seu corpo, a mim bastava o fazedor de filhos, ah, sim, o carinhoso também.

Ontem, vi mamãe pendurada no lustre. Novo suicídio, de novo o suicídio. Quando fico muito emocionada com o quadro, me levanto, tiro-a da corda e limpo seu rosto suado. Os mortos ainda suam, apesar de perderem o peso. No momento em que estou próxima dela e empenhada em deixá-la magnífica —  papai a considerava assim —, olho bem no contorno de seu rosto e me pergunto: o que é uma mulher? Por que não me pergunto isso quando estou nua, no banho ou na hora em que me enfio na camisola, ou quando vejo Zininha, que dessa vez não vai passar mais que doze horas por aqui e, assim mesmo, desfará sua imensa mala e organizará tudo no armário? Nunca esperei para vê-la guardar as calcinhas, é preciso deixá-la à vontade com suas ilusões. O general não tinha olfato, ou, se o tinha, estava guardado para a guerra, guerra da qual nunca participou. Não sei, é possível que tenha dado cabo daqueles meninos questionadores, mas não era uma guerra, era um massacre. O que é uma mulher? Só quando tenho em meu colo mamãe, a suicida recorrente, é que penso nisso, nessa questão. Maria, ao limpar seu filho morto, terá pensado nisso? Toda mulher que dê colo a um morto pensará no que de fato é ser mulher?

A velhice não me ensinou nada. Sou mais velha que tudo e todos. Me confundo com esses jovens que sentam à mesa comigo e me beijam antes de sair. Devem ser meus netos; claro, são eles. Elza, a mais velha, Genaro, a criança mais enfezada do mundo, Joel, o desligado. Tem os outros, mas esses três não saem daqui e ocupam a casa como se só eles estivessem nela. Com música alta, bebedeiras que varam as madrugadas das sextas-feiras, telefonemas estranhos, cochichados, se apossaram do meu espaço. O que mais estranho, eu que estranho tudo, é não ver meus filhos pela casa. Aonde se meteram?

Minha filha Dulce fugiu de nós, saiu pela porta como se fosse à padaria. A padaria escolhida é distante toda vida, ela nunca volta. Pela sonoridade e pela demora em minha filha voltar, troquei as palavras. Dulce foi à pradaria, é o que digo. Os outros três ficaram aqui, cada um mais louco que o outro. Ah, se o general pudesse sentir o cheiro da contestação de seus filhos! Não foi a política que eles buscaram, o rumo deles foi a escuridão. Fizeram filhos, esses que movimentam a casa e outros que nem me visitam. Mas como fizeram esses filhos, onde estavam seus parceiros? Onde estão todos?

Procuro meus filhos entre os mortos. Por ali não andam. Dulce também não está, mas talvez seja a única, entre tudo e tantos, que ocupa minha memória. Não a vejo, mas adivinho sua matéria. Agora, à beira de seus cinquenta anos, deverá estar um pouco gorda, à moda da família do general, com aquelas olheiras profundas desenhadas em seu rosto quando acordava atrasada para a escola. Ela deve saber o que é ser mulher.

Zininha sentou-se à minha frente. Está com o prato na mão e come devagar aquele pouquinho de sempre. É um passarinho minha prima. Pena que não saiba cantar, ainda que eu desconfie que voe. Uma vez, num baile, eu a vi voando. Quando fomos para casa e comentei sobre aquilo, Zininha fechou os olhos e pediu para eu não tocar no assunto. Aproveitei e nunca mais toquei em assunto nenhum que a pudesse melindrar, o general, por exemplo. Mas está ali o passarinho mudo bicando seu alpiste. Não seria hora de perguntar sobre seus voos, sobre o general? Ela sabe de minha filha? Ela sabe o que se passou na cabeça de minha mãe? Ela sabe alguma coisa sobre o anseio dos mortos?

Minha prima comeu seu pouquinho ligeiramente. Foi à cozinha levar o prato. Voltou, sentou-se ao meu lado e alisou meus cabelos, mais que alisou, arrumou-os. Pisquei em agradecimento, pois não falo mais. Desde que matei o general, sou um túmulo. Ainda sei falar, e até falo em sonhos. Dia desses acordei sobressaltada e gritando a palavra vazio. Levantei-me, fui à cozinha, meu neto, o Joel, de tão desligado, não me viu. Ele, não é a primeira vez que presencio isso, estava com os olhos na janela aberta, chorava. É filho de Dulce. Sou mãe de Dulce. Meu neto e eu, dois vazios.

Nesse dia, meu pai estava com o corpo colado à pia e olhar perdido na direção da mesma janela. Mamãe passou com a corda, mas não se dependurou no lustre, não, ela simplesmente pegou a corda e colocou na cômoda herdada de sua mãe, aquele móvel que já não está mais na sala, mandei enfiá-lo no porão. Na verdade, não há efeito nenhum em tirar o móvel de lá, os mortos chegam aonde querem, quando querem. Mamãe, vez ou outra, se mata mais uma vez.

Zininha anuncia a partida. Vai arrumar a mala e sair em uma hora. Sentirá minha falta e não demorará muito a fazer nova visita. Eu encosto minha cabeça em seu ombro e, de forma pouco discreta, cheiro seu pescoço. Ela não se incomoda, não se excita, não retribui. Ela, sim, deveria ser a única mulher do general, não eu que sempre gostei de ser cheirada, no pescoço e nas minhas vergonhas. Começo a duvidar de que ela não sentiu coisa alguma com minha cheirada ao ouvi-la dizer Dulce. Endireito-me no sofá, firmo meus olhos no dela e faço um gesto com a cabeça, pedindo que fale. Ela repete: Dulce. Levanta-se, vai para o quarto e se tranca.

Genaro chega da rua, nem me cumprimenta. Na cozinha, grita o nome da irmã. Elza, cadê você? Elza não está, ela nunca está ou só está quando ninguém mais está. Ele volta à sala e fala para mim, quer dizer, ele fala, ele precisa falar, calha de eu ser a disponível. Dias difíceis virão. Sabe, vó, dias difíceis virão. Depois sai. Fico com a frase na cabeça e uma resposta a ela: qual não é?

Nutri a ilusão de que ao matar o general os dias não seriam mais difíceis. Mas depois de sua morte me dei conta de que Dulce não havia voltado da padaria, descobri então que ela fora à pradaria, exilou-se de mim e do pai e nos deixou seu filho ausente e isolado, mais um exilado. Foi depois de matar o general e guardá-lo à chave pequena no frágil baú que meus pais deram de transitar pela casa, papai ansioso, mamãe bisando seu último gesto. Foi depois de matar o general que a casa foi tomada por netos sem pais, ávidos por consumir a vida. Foi depois de matar o general que Zininha passou a vir amiúde apenas para distribuir suas roupas no armário em que está trancado o general e, é o que imagino, viver o luto ao lado do resto de seu amado. Ele anósmico, ela inodora; o sujo e o mal lavado, o infeliz e a infeliz: feitos um para o outro.

Sou mais velha que tudo e todos. Imagino ter dito que apenas a construção e dois móveis são mais velhos que eu. Mas não, nem a construção, antes de ser a casa, nem os móveis, antes de tomarem lugar na casa, são mais velhos que eu. No dia que matei o general envelheci. Sou mais velha que tudo. Mais velha que o tempo medido pelo relógio sem sentido que se tornou meu pai.

*

Alexandre Brandão, cujo primeiro livro, Contos de homem, completa em breve 30 anos, dedicou seus últimos 4 anos à poesia, tendo lançado, em 2020, Nenhuma literatura: uma antologia (Editora Patuá) e, em 2022, O sol pelo basculante (Editora Urutau). Novos livros de prosa no entanto (novelas, contos e minicontos) estão a caminho, o primeiro conterá a novela Zerinho ou um, que ganhou, em 2022, o 1° Prêmio Literário Flipoços para escritores independentes.

*

Foto: Robert Doisneau – “A balada de Pierrette d’Orient”, 1953

Tags: