* Por Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos *
Correspondente do grupo Bandeirantes em Paris, cidade em que vive desde 1978, onde também trabalhou para o jornal “Folha de S.Paulo”, a revista “Visão” e as rádios CBN, Eldorado e France Internationale, Milton Blay atuou ainda como presidente da Associação de Imprensa Latino-Americana. Mestre em Economia e doutor em Política pela Université de Paris 3. É autor dos livros “Direto de Paris”, “A Europa hipnotizada” e do recém-lançado “O vírus e a farsa populista”, bem como coautor de “O Brasil no contexto: 1987-2017”. Leia sua entrevista abaixo.
Após um ano e meio de convivência com a pandemia trazida pelo coronavírus, algum balanço a fazer? Como foi possível que um enfermeiro do Hospital La Pitié Salpêtrière, em plena Paris, a cidade mais rica do quinto país mais rico do mundo, tivesse que vestir um saco de lixo para se proteger? Como foi possível que os médicos tenham tido uma só máscara descartável para trabalhar 14 horas seguidas, quando o tempo de vida útil de proteção é de apenas quatro horas? Que os médicos não tivessem luvas no contato com os pacientes? Que não existissem leitos de terapia intensiva suficientes, nem respiradores, nem as moléculas necessárias para salvar vidas? Como foi possível, tantos e tantos “como foi possível”? A resposta que me vem à cabeça é que tudo, ou quase, estava errado, que construímos um mundo maluco, em que o supérfluo era mais importante que o vital. Um mundo louco, como loucos foram tantos os que elegeram alguns psicopatas que nos governam e que minimizaram o coronavírus, como se fosse uma simples gripezinha. O despreparo dos nossos sistemas de saúde, face ao ataque do vírus, mostrou que o estado providência, outrora tão criticado por economistas liberais, era uma falácia e que, na verdade, o homem não ocupava o lugar central que deveria ser o seu. Esta pandemia nos colocou diante de questões sociais e filosóficas relativas ao ser humano no ecossistema e ao modo de vida, sobre o tamanho do estado, por exemplo. Ficou provado que é o estado (e não o mercado), através das suas funções nas áreas da saúde, educação e seguridade social, que pode se ocupar do que nos é essencial. A ideologia do estado mínimo precisa ser enterrada o mais rapidamente possível. É hora de um novo pacto social. Sem a presença do estado, o número de mortos, inclusive por fome, teria sido muito maior. O neoliberalismo nos levou a pensar em termos de eficiência financeira e não em qualidade de vida. Os hospitais passaram a ser administrados por economistas ou engenheiros, não por médicos. O tal “mercado” só enche a barriga e a carteira daqueles que vivem de dividendos. Com a globalização, nos tornamos totalmente dependentes de outros em coisas essenciais, ao ponto absurdo de não termos máscaras, nem luvas, nem álcool, nem sequer paracetamol contra dores e febre. O mínimo do mínimo tornou-se raro e desencadeou verdadeiras “guerras” comerciais.
Muitos de nossos pseudolíderes usaram o descaso e a mentira como armas de combate ao Coronavírus. Brincaram de faz de conta, mas alguns, nem assim, perderam apoiadores. Como? A explicação deve ser buscada na psicologia social e na propaganda nazista. Populistas ultranacionalistas hastearam a bandeira do nós contra eles, incitando à guerra civil, em meio a uma crise pandêmica sem precedentes.
Que peso a pandemia vem tendo e terá na ordem democrática mundial? O historiador português Manuel Loff, autor de “O nosso século é fascista!” acredita que as democracias correm sério risco de saírem fragilizadas desta pandemia. Lembrou: “Durante a 2° Guerra Mundial, já se colocava a questão, mesmo nas democracias que se opunham ao nazismo, de saber se uma ditadura não seria muito mais eficaz na mobilização dos seus soldados. Em pleno século XXI, volta à superfície um saudosismo do autoritarismo, da tal ‘voz de comando’. Essa crítica nacional-populista ao funcionamento da democracia, que não dispensa uma retórica oportunista de mais participação popular, foi o que levou Bolsonaro ao poder e foi o que fortaleceu Orbán, na Hungria, como Putin, na Rússia”. Ao reavivar medos ancestrais, a covid-19 “reforçou discursos de natureza messiânica, que, perante um vírus que vem de fora, defendem o fechamento dos países sobre si mesmos.” Submersas pelo pânico social, as pessoas tornam-se permeáveis à erosão de seus direitos elementares. Os processos de secularização de áreas da nossa vida, coletiva e individual, como vivemos na pandemia, só têm sucesso quando a sociedade os entende como naturais, aceitando que as regras democráticas deixam de se aplicar temporariamente, porque o momento é de exceção. O problema, como nos ensina o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor de “Estado de exceção”, é que o mundo vive em permanente estado de exceção, desde que os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 serviram de álibi para a suspensão da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Na Hungria, Viktor Orbán aproveitou para impor um estado de emergência permanente, “politicamente perigoso e moralmente inaceitável” nas palavras de Donald Tusk, ex-presidente do Conselho Europeu. A lei aprovada por Budapeste prevê prisão de até cinco anos para quem divulgar informação que “dificulte o combate à pandemia do coronavírus”. O objetivo é claro: amordaçar os raros órgãos de imprensa que ainda ousam resistir ao governo autoritário. Na mesma noite da aprovação do estado de emergência, o governo encaminhou 15 decretos, nenhum relacionado ao coronavírus. Entre as normas baixadas, estava a que proibia a mudança de sexo e a que determina que a construção de museus ficará, doravante, às custas da municipalidade de Budapeste, derradeiro bastião da oposição. O Fidesz, partido de Orbán, está suspenso desde o ano passado do bloco de centro-direita do Parlamento Europeu, por criticar a existência da União Europeia e ameaçar a democracia. Para Orbán, como para os demais líderes da alt right mundial, o fato de terem sido eleitos, lhes dá o direito de colocar em prática a política que bem entendem, sem levar em consideração o outro componente fundamental da democracia que é o estado de direito, que inclui os direitos humanos, o respeito à constituição. “O populismo parece democrático ao defender a regra da maioria, mas é visceralmente contra a democracia, ao rejeitar todos os freios e contrapesos do estado de direito, que garante instituições independentes de proteção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a proteção das minorias. O discurso dos ultradireitistas é discriminatório e autoritário. Eles entram no jogo eleitoral para chegar ao poder e então destruir a democracia. De onde a conclusão de Cas Mudde, professor da University of Georgia, especialista em ideologias de extrema-direita contemporânea: “O populismo de extrema-direita será um dos inimigos (talvez o principal) a combater no pós-pandemia.”
Por que razão afirma em seu livro mais recente, “O vírus e a farsa populista” ser o coronavírus antidemocrático? O primeiro ensinamento é que a desigualdade mata. O coronavírus, ao contrário da mensagem veiculada por Madonna num vídeo em que tomava banho em uma banheira dourada, nada tem de democrático. Apesar da cantora platinada afirmar que estamos “todos no mesmo barco”, a verdade é que o barco de uns é um iate, enquanto o barco de outros é uma jangada. Uns viveram o isolamento em condomínios de luxo, cada qual no seu quarto, recebendo mantimentos em casa, enquanto outros apinharam-se em apartamentos minúsculos, outros ainda em um cômodo de terra batida e telhado de zinco, em favelas sem água nem esgoto. Espantoso é constatar que depois de tantas calamidades, estatísticas aterradoras e uma quantidade sem fim de promessas, ainda discutamos questões básicas. É no mínimo surreal para uma humanidade que se queria civilizada. Em países onde prevalece um ideal de sociedade baseado em valores individualistas, como Estados Unidos e Brasil, em que a saúde e a proteção da população se garantem com seguros privados, a covid-19 escancarou a necessidade de um estado social robusto e abrangente. O liberalismo econômico falhou, o mercado falhou, a acumulação capitalista e o consumo desenfreado falharam. A hora de redefinir prioridades soou. O coronavírus mostrou quão ridículo é passar a noite em uma fila quilométrica para ser um dos primeiros a comprar o último modelo do iPhone com mil e uma inovações tecnológicas inacessíveis ao homem mediano. Por outro lado, a atual crise evidenciou que a precariedade e exploração trabalhista, a instabilidade, insegurança e flexibilidade no mundo do trabalho são a norma e não a exceção como deveriam ser. No centro dessas questões está o eterno 1% contra 99%. E, no entanto, a ameaça da morte não poupou ninguém: ricos e pobres. Embora tenham morrido muito mais habitantes negros do Complexo do Alemão, que brancos com seguro médico e direito ao Albert Einstein e Sírio-Libanês. No entanto, não deixa de ser irônico ver o impacto que o vírus teve nos cruzeiros paradisíacos, nem que um dos primeiros casos de morte em Portugal tenha sido o do presidente de um dos maiores bancos do país. Nesses tempos de incredulidade e incerteza, sentimo-nos impotentes, como nunca. Mas, uma vez passada a crise, teremos a oportunidade única de questionar os resultados da arrogância, do cinismo e da ganância, de construir uma sociedade em que o homem esteja no centro das preocupações. Seremos capazes? Será que o vírus colocará de joelhos o atual modelo de negócios da globalização, do mesmo modo que a peste negra dizimou um quarto da população ocidental no século XIV e pôs fim ao dinamismo social da baixa Idade Média?
A pandemia nos obrigará a repensar o capitalismo? A crise orgânica do capitalismo neoliberal, que vivemos hoje, terá de ser transformada na crise final do capitalismo e isso não ocorrerá por omissão, somente por ação. Os importantes pacotes de estímulos e resgates financeiros irão fornecer o alívio necessário para evitar o colapso de algumas empresas e indústrias gravemente atingidas, a fim de para proteger os bilhões de trabalhadores que correm o risco de perder o emprego. No entanto, ao dar os primeiros passos para voltar ao normal, devemos garantir que reconstruímos uma economia mais resistente às pandemias, como a covid-19 e a outras ameaças, a começar pelas alterações climáticas, que batem às nossas portas. Como disse em artigo no jornal “Público”, João Camargo, estudioso das alterações climáticas, “com a crise do coronavírus, precipita-se outra fase da desglobalização e da crise orgânica do capitalismo neoliberal: a ascensão da imprescindibilidade dos serviços públicos, o resgate das economias inteiras, o colapso de boa parte da economia inútil, das rendas e dos juros, das transações financeiras, do turismo de massas, da importação e exportação sem outra orientação que a obtenção de lucros. Setores inteiros da economia capitalista não se levantarão na próxima década.” Para ele, a sociedade que virá basear-se-á na racionalidade ecológica, na propriedade coletiva dos meios de produção, no planejamento democrático da produção para a definição dos investimentos e dos objetivos produtivos, com vista à satisfação das verdadeiras necessidades da humanidade. A solução não é uma limitação “geral do consumo”, mas sim uma mudança do consumo, da ostentação, do desperdício, da alienação e da acumulação que prevalecem na ordem capitalista.
Como definir o que chama de “socialismo emergência” a partir do pensamento do filósofo esloveno Slavoj Zizek? Slavoj Žižek, autor de “Em defesa das causas perdidas” e do ensaio “Pandemic”, define a pandemia como um “golpe à la Kill Bill no capitalismo”. Para ele, o novo coronavírus sinaliza a necessidade de uma mudança radical, de uma reorganização da economia global, que não se submeta aos mecanismos do mercado, de um “socialismo de emergência”. Inspirado em Marx, Hegel e Lacan, o filósofo de Liubliana acredita que a emergência não trará novos totalitarismos e sim que os laços da comunidade serão fortalecidos, à condição que sejamos capazes de reconstruir a confiança nas instituições. “O que acontece mostra que cabe a nós, aos cidadãos, sujeitar a maior controle aqueles que nos governam e não o contrário.” Um novo senso de comunidade estaria emergindo dessa crise. Uma espécie de novo pensamento “comunista”, distante do comunismo histórico, segundo Žižek, para quem a banal descoberta de que coordenação e cooperação globais são necessárias para combater o vírus tem um viés revolucionário. “Estamos redescobrindo o quanto precisamos uns dos outros.” Em uma entrevista ao jornal romano La Repubblica, Slavoj Žižek explicou o que entende por um novo comunismo. Alguém disse que, no meio dessa crise, deveríamos nos preocupar apenas com a nossa salvação. Penso o contrário: não há momento mais político do que o atual. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade ao manter distância, ao não nos aproximarmos uns dos outros. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma mudança profunda de comportamento que, espero, sobreviverá à crise. O custo psicológico é e será tremendo. É claro que o isolamento cria novas formas de paranoia: demonstram isso as inúmeras teorias da conspiração nas redes sociais. Mas, repito, estaremos mais conscientes do que significa estar perto dos outros, para o melhor ou para o pior. Reencontrar-se plenamente será uma alegria. Mas seremos mais cuidadosos. Outra coisa: esta situação tornou bem visíveis as diferenças sociais. Penso no egoísmo dos super-ricos fechados em seus bunkers ou em seus iates. Os novos heróis são as pessoas comuns. Apesar das advertências dos cientistas, os governos se descobriram despreparados. Agora somos forçados a enfrentar o pior, não há mais espaço para o “America First” e slogans do gênero. Para sobreviver, os estados terão de lidar continuamente com o futuro. Precisamos de um novo sistema de saúde pública global e agências internacionais aptas a agir em ações acordadas. Precisamos de salários mínimos garantidos, pagos por todos. Minha ideia de comunismo não é o sonho de um intelectual. Estamos descobrindo na nossa própria pele por que certas medidas devem ser tomadas no interesse geral. Não subestimemos o impulso que o vírus está dando a novos sistemas de solidariedade em nível local e global.
Por que é questionável falar-se em “volta à normalidade”, quando a pandemia cessar? Voltar à normalidade é a cantilena do momento; está na boca de todos. Mas, voltar à que normalidade? À dos pequenos rituais cotidianos de sair pela manhã, ir à padaria comprar pão francês (que de francês nada tem) ou à que arruinou sistemas de saúde, de habitação, de segurança social e o meio-ambiente, ao colocar o lucro individual à frente do bem-estar das comunidades e do planeta? Vivemos tempos simultâneos. Por um lado, o da resposta imediata, o confinamento e a tragédia de famílias enlutadas que nem conseguiram velar e enterrar os seus mortos (fazer o luto tornou-se um luxo), de um número incalculável de pessoas que perderam o emprego. Por outro lado, é preciso refletir sobre o futuro de médio prazo e imaginar outros caminhos, para que não voltemos a repetir os erros que nos levaram a esta situação de impotência. A crise sanitária excepcional, resultante de uma pandemia que se deseja circunstancial, expôs insuficiências estruturais ao nível dos sistemas de saúde pública e terá consequências para o restante da nossa existência. Nesse sentido, voltar ao normal não é – ou pelo menos não deveria ser – uma opção. É preciso tirar as consequências das nossas falhas. As expectativas são de que, com a vacina, a pandemia acabará e poderemos jogar fora as máscaras e acabar com o distanciamento social, frequentando pubs, indo a jogos de futebol, dançando colados em megaconcertos. Na opinião do professor Yonatan Grad, de Doenças Infecciosas e Imunologia, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, “é improvável que a vacina funcione como um interruptor para desligar o vírus, um botão para voltarmos aos tempos pré-pandemia”. A imunidade pode ter uma duração curta ou ser parcial, exigindo repetidos reforços que sobrecarregam o fornecimento de vacinas ou obrigam a que as pessoas mantenham o distanciamento social e usem máscara, mesmo depois de terem se vacinado. Os especialistas em saúde pública temem que isso possa levar ao desapontamento e a desgastar uma confiança, essencial para que o esforço de vencer o vírus tenha sucesso. Hoje, o Brasil de Bolsonaro, o presidente genocida, se assemelha ao inferno da “Divina Comédia”. No momento em que o mundo começava a imunização e que para dar o exemplo três ex-presidentes dos Estados Unidos iam juntos à público para tomar a vacina, que os líderes europeus entravam na fila, aguardando o momento de se imunizar, o capitão dizia despudoradamente, num programa de grande audiência da televisão:
– Eu não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu. Conclusão: cresceu a parcela da população brasileira que não pretendia se imunizar, segundo pesquisa Datafolha. Mais pessoas morrerão, provavelmente para alegria do clã Bolsonaro. As novas variantes do coronavírus surgiram nos países que não adotaram as políticas sanitárias protagonizadas pela OMS: Índia, Reino Unido, África do Sul, Brasil e Estados Unidos. Segundo os cientistas da Duke University, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, outras cepas chegarão, provavelmente mais contagiosas e mortais, face à insistência de autoridades, como o presidente brasileiro, em deixar o vírus circular. E isso colocará em risco não apenas a população do país, mas o mundo inteiro. O momento que vivemos pode resultar em mais austeridade, autoritarismo e menos democracia (exemplos da China, dos EUA de Trump, Brasil, Rússia, Hungria, Índia, Filipinas) ou, ao contrário, na construção de um espaço onde a democracia será compatível com o máximo de equidade social, política, cultural e econômica. Precisamos de normalidade, sim, mas de uma outra normalidade. Há uma pequena possibilidade de que o pesadelo que vivemos nos leve a reencontrar o humanismo perdido no caminho. Para isso, precisamos estar mais atentos do que nunca face aos líderes arrogantes, boçais e patéticos como Bolsonaro, iliberais, como Orbán, despóticos, como Maduro, ou alheios ao valor da liberdade, como Xi Jinping. Nos próximos tempos, a Terra continuará a ser redonda e a girar em torno do Sol, queiramos ou não. O debate sobre a nova normalidade e o aumento do autoritarismo apenas começou. Temos que mantê-lo vivo para evitar o pior. Os futurólogos apostam que, no melhor dos casos, voltaremos a um semblant de normalidade dentro de dois anos. Só então, teremos alguma ideia de para onde iremos. De qualquer maneira, a futura “normalidade” não será a normalidade de antes da pandemia.
O mundo vive os estertores do neoliberalismo? O dia depois de amanhã começa a ser construído hoje e pensar nele é uma exigência.
Nada ficará como antes no dia depois de amanhã. A esta crise sanitária segue uma crise econômica e, simultaneamente, queiramos ou não, uma crise de modelo de sociedade. Nas democracias, de esquerda como de direita, está claro que é preciso repensar a globalização, o livre comércio, o liberalismo, as desigualdades, os modos de consumo, o peso da demografia, as migrações e o equilíbrio necessário do planeta.
Numa recente entrevista ao jornal de esquerda “Libération”, um deputado francês de centro-direita, dizia que “não se pode evitar a interrogação sobre o liberalismo… a ideia de que o dinheiro seria a única escala de valor e que o Estado não tem mais nenhum papel a desempenhar.” Todos assistimos, surpresos, a caça às máscaras cirúrgicas, aos ventiladores e medicamentos produzidos em larga escala na China, cobiçados em tempo de penúria por governos e empresas de todo o mundo. Depois de amanhã, a dependência num setor tão sensível quanto a saúde não vai poder continuar. O secretário-geral da OCDE, Angel Gurria, evocou um “New Deal” planetário, à semelhança do que fez o presidente Roosevelt, nos Estados Unidos, para tirar o país da grande depressão, após o crash de 1929. É preciso notar, contudo, que o cenário internacional mudou e que as organizações internacionais viraram de cabeça para baixo. As Nações Unidas (ONU) tiveram um papel secundário, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) se constituiu como referência para a maior parte dos estados. Ao nível europeu, aconteceu algo semelhante: enquanto a resposta dos órgãos políticos da União Europeia (UE), a Comissão e o Conselho, foi insuficiente e controversa, a do Banco Central Europeu (BCE) foi de início deficiente, mas depois corrigida. Na Europa, multiplicam-se os apelos à criação de “um novo mecanismo de mutualização da dívida, à aquisição compartilhada de produtos sanitários de primeira necessidade à preparação de um grande plano de choque para que a recuperação do continente seja rápida e sólida”. Perante a avalanche da dívida que se avizinha em quase todos os países, há quem pretenda um regresso ao passado no mais breve tempo possível. Com os planos que estão a ser postos em prática para manter a economia, o endividamento dos estados será colossal e os credores, leia-se mercados financeiros, não estão dispostos a exigir o reembolso. Só que não será mais possível voltar ao passado sem levar em conta a urgência dos novos desafios. O que temos diante de nós é um campo em ruínas. Mesmo assim, existe a tentação para um regresso ao “back to business”, de preferência com uma forte taxa de crescimento. Na esquerda francesa, são muitos os que consideram que o que esta crise demonstra é a ruína do atual modelo e a grande maioria aponta o dedo em direção da globalização, do comércio mundial causador das mudanças climáticas e das alterações de inúmeros ecossistemas. Surge a reflexão da necessidade de se repensar tudo, até mesmo a ideia de crescimento, paradigma onde se inclui a possibilidade de um salário universal, impostos pesados sobre o capital, redução do tempo de trabalho, novas formas de consumo, anulação das dívidas financeiras dos países do sul, etc. O futuro tem nome: ecossocialismo, que surge como alternativa política, social e ecológica ao capitalismo. Como o próprio nome diz, o ecossocialismo é uma corrente de pensamento e de ação ecológica que empresta ao marxismo seus fundamentos, abandonando o produtivismo e o consumismo. Para os ecossocialistas, a lógica do mercado, hoje combalida pela pandemia, é incompatível com as exigências de salvaguarda do meio-ambiente. Ecologia e capitalismo seriam inconciliáveis, na medida em que a expansão do capital, através do aumento dos lucros, vai de encontro aos recursos limitados do planeta. Como escreveram Matthieu Le Quang e Tamia Vercoutère, em “Ecosocialismo y buen vivir, dialogos entre dos alternativas al capitalismo”, a promessa de justiça, baseada no crescimento e na acumulação infinita do capital, não resiste aos desastres sociais e ambientais. O ecossocialismo, que era até ontem “apenas” uma tentativa de resposta alternativa às soluções dominantes nos debates internacionais sobre o aquecimento climático, com a pandemia tornou-se uma porta de saída muito mais ampla para esta e outras crises futuras. O “capitalismo verde” não pode ser visto como uma alternativa, na medida em que não coloca em questão os modos de produção e de consumo, principais causas dos problemas climáticos. O capitalismo, mesmo de sensibilidade ecológica, seria, portanto altamente predador. Para nós, ecossocialistas, a crítica do modo de consumo deve acompanhar a da produção, sem se limitar à luta contra as desigualdades na divisão das riquezas (o que faz o socialismo). É preciso simultaneamente respeitar a natureza e os ciclos produtivos. Assim, a felicidade (ou o melhor sistema para o homem) responde à relação entre as necessidades e as condições que tornam possível sua satisfação. À satisfação das necessidades humanas deve corresponder o respeito dos recursos disponíveis. Temos hoje uma soma de crises que provocam o seu esgotamento: ambiental, pandêmica, energética, alimentar, climática, cultural, econômico-financeira, cultural, o que alguns estudiosos chamam de “ruptura civilizacional integral”. A humanidade vive atormentada por essas múltiplas crises, cujos fios condutores encontramos na força motriz da destruição social e ambiental: o capitalismo. O sistema se exauriu.
Em que sentido a pandemia reforçou o pensamento dos extremistas de direita? Um dos pontos comuns a todos os movimentos nacional-populistas é a aversão ao outro, ao estrangeiro, ao migrante, visto como uma ameaça. Esse sentimento teve grande influência na ascensão dos neonazistas na Grécia, na Alemanha, na escalada de Marine Le Pen em direção do Eliseu, no crescimento da islamofobia e do antissemitismo na Europa. O ódio àquele que é diferente domina a narrativa.
Quem desembarcou em Budapeste, no início de 2020, deparou-se com enormes cartazes, em diversas línguas, com uma frase e a imagem de uma família composta do pai, da mãe e de três crianças: “Hungria, amiga da família”. Ao contrário do que poderíamos imaginar, não se tratava de uma promoção do turismo familiar e sim de uma declaração política da extrema direita que colocou, como objetivo, evitar a queda da natalidade no país. O mantra vai direto ao ponto: a Hungria precisa de “procriação, não de imigração”. Para tanto, o estado mostrou-se criativo: comprou as maiores clínicas de fertilização do país e, dessa forma, pretende facilitar o tratamento dos casais que sofrem de infertilidade, húngaros e só húngaros, claro. Trata-se de uma prática inédita: a estatização da fertilização in vitro. A taxa de natalidade é de 1,48 criança por cada mulher húngara, 50% menos que em 1950. Sem mudança, a atual população de 9,8 milhões de pessoas cairá para 8,3 milhões em 2050. Diante dessa perspectiva, o governo ultranacionalista deixou claro que não aceitará que a falta de mão-de-obra seja preenchida por imigrantes. Por isso, ao mesmo tempo que erguia muros, atacava refugiados sírios e denunciava uma suposta operação do islã para invadir a Europa, o governo adotou uma série de incentivos para que as famílias húngaras tivessem ao menos três filhos, como a redução de impostos para a compra de carros e casa própria. Programas especiais foram criados para famílias que opta- rem por ter mais de três filhos. As mulheres com mais de quatro estarão isentas de todos os impostos para o resto da vida. A resposta de Budapeste à questão demográfica coincide com a dos partidos da extrema direita europeia: Rassemblement National, na França, AfD na Alemanha, Partido da Liberdade, na Holanda, Lega, na Itália, Ukip, na Inglaterra, Vlaams Belang, na Bélgica flamenca, que têm a política anti-imigração como principal bandeira. Eles veem um risco real de que a população branca e cristã da Europa seja, nas próximas décadas, substituída por pessoas não europeias, não brancas e não cristãs. O que vimos foi essa internacional populista aproveitar o clima de medo da pandemia para ganhar espaço político, jogando nos ombros do estrangeiro a responsabilidade da circulação do vírus. A pandemia tem servido para justificar e legitimar medidas de controle e de regulação das populações até então impensáveis, inclusive nas sociedades democráticas ocidentais. A tentação do autoritarismo foi muito forte e onipresente nesse ano e meio. A pandemia serviu para justificar e legitimar medidas de controle e de regulação das populações até então impensáveis, inclusive nas sociedades democráticas ocidentais. A tentação do autoritarismo foi muito forte e onipresente. Não surpreende o fato da China utilizar maciçamente as novas tecnologias para fins de controle social, por considerá-las o meio mais eficaz para enfrentar a crise sanitária e não se preocupar com a questão das liberdades individuais. Muitos pensam que a pandemia favorecerá, naturalmente, os regimes autoritários e o capitalismo de estado, com mecanismos de vigilância e controle dos indivíduos e da sociedade como um todo, tomando por exemplo a China. Ao contrário daqueles que imaginavam que o capitalismo acabaria libertando as amarras políticas, Pequim vive um momento de personalização do poder como nunca, desde Mao Zedong. A ditadura nunca foi tão firme. Nunca houve tanta concentração do poder e um tal nível de controle do povo. Todo cidadão, em cada ato de sua vida, recebe uma nota do poder central, conforme o seu comportamento. O resultado determina os seus direitos e obrigações. Xi Jinping é secretário geral do Partido Comunista e presidente da Comissão Militar Central, desde novembro de 2012, presidente da República Popular da China, desde 14 de março de 2013, reeleito em 2018. Graças à mudança da constituição, poderá permanecer na presidência até morrer. O desafio que se coloca ao ocidente consiste em demonstrar que o sucesso de Pequim no combate à pandemia pode ser obtido de maneira transparente e democrática. “A China, escreve o sociólogo Benjamin Bratton, implementou medidas de vigilância que os europeus e americanos provavelmente não tolerariam.”
A que atribuir os pensamentos negacionistas em plena era tecnológica? Questionado sobre “Os Pássaros”, Alfred Hitchcok declarou que o tema do filme era o excesso de autossatisfação que se observava no mundo: “as pessoas não têm consciência das catástrofes que nos ameaçam”; disse. Dessa maneira, já nos anos 1960, ele chamava nossa atenção para o descaso da sociedade em relação à natureza, aos desastres provocados por nós mesmos, seres humanos. Os pássaros, como o coronavírus, se protegem dos homens com o comportamento próprio de suas espécies, provocando pânico e apontando nossos erros. Embora sejamos racionais, ao contrário do que se poderia esperar, a luta contra a pandemia não teve como corolário uma trégua nos conflitos, armados como político-ideológicos. A ameaça existencial da extrema-direita foi mais do que atuante nesse período de quarentena, instigando a violação das liberdades, a negação da ciência, introduzindo a doença do hipernacionalismo e da xenofobia, o ódio do “outro”, o complotismo. Tudo alimentado por uma dose cavalar de medo do presente e, talvez, ainda mais do futuro, projetado nas previsões de recessão, jogando uma parcela considerável da população na miséria. A pandemia de coronavírus, tal qual os corvos do cineasta, aguçou os instintos de morte dos populistas da direita mundial. No combate à covid, os governos tentaram canalizar o medo como puderam, impondo medidas de emergência sanitária e econômica e apelando para a solidariedade e a união. Medidas para garantir os salários, renda mínima para os informais, para os sem teto e para salvar pequenas e médias empresas foram adotadas. Foi propagando o medo que renasceu, neste século 21, a extrema-direita europeia. Medo dos muçulmanos e refugiados, do terrorismo, da guerra de civilizações, do pobre, daquele que é diferente. A crise foi usada por líderes políticos e seus apoiadores no Brasil, nos EUA, na Europa, na Ásia, como instrumento de ataque a alguns dos alvos prediletos dos hiperconservadores: globalismo, imigração, liberdade de circulação, ideologia de gênero. Essa extrema-direita populista, neofascista, sem nenhum escrúpulo nem vergonha, tentou transformar a luta contra a pandemia numa cruzada discriminatória. Matteo Salvini, líder da Liga, na Itália, afirmou que o vírus tinha sido introduzido pelos migrantes africanos. Trump, nos Estados Unidos, e o clã Bolsonaro, no Brasil, acusaram um laboratório chinês, outros denunciaram um complô judaico. Numa ação inusitada, os líderes populistas abraçaram a teoria segundo a qual a doença era parte de uma conspiração mundial das elites, em conluio com multinacionais do setor farmacêutico. Os dirigentes dessa extrema-direita mundial, que formam o que denomino a Internacional da Ignorância, não esperaram para dar o bote. Após terem exacerbado o discurso securitário, passaram a disseminar a ideia de que só a limitação das liberdades protege os cidadãos. Apostam que o medo, uma vez mais, será seu principal aliado. Os extremistas aproveitaram a crise para avançar seus peões: em primeiro lugar a China, que impôs as medidas de controle individual já citadas, através dos telefones celulares, e multiplicou as câmeras de reconhecimento facial, vigiando cada deslocamento de seus cidadãos e permitindo, assim, ao Partido Comunista, controlar como nunca a sua população. Andrzej Duda, na Polônia, e Victor Orbán, na Hungria, não ficaram muito atrás. Trump e Bolsonaro negaram a evidência científica. Em declarações e atitudes criminosas, ambos minimizaram a pandemia e o número de mortos para salvar as bolsas de valores, os interesses de seus clãs e, uma vez mais, desconstruir. As plataformas Twiter, Facebook e Instagram suspenderam posts dos presidentes dos Estados Unidos e Brasil por violarem as regras de conduta em período de pandemia. Bolsonaro chegou a ser condenado pela justiça por desobedecer o confinamento, mas não se emendou. Não deu a menor atenção à decisão judicial. A justiça, cega, fingiu-se impotente. Ambos agiram para piorar a situação, pensando na reeleição. Trump perdeu. Ambos foram acusados pela comunidade científica internacional de terem sido responsáveis pela morte de dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas, vítimas da covid, que menosprezaram. A questão democrática, antes onipresente, desapareceu do horizonte. À crise sanitária somou-se a crise política, num milk-shake autocrático. E verdadeiros genocídios foram cometidos. O populismo e o hipernacionalismo não apenas fracassaram no tratamento da covid 19, como acabaram agravando a situação. Sem citar nomes, esse foi o recado da ONU durante a sua Assembleia Geral, àqueles que se negaram a seguir as orientações da ciência. Na França, a líder neofascista Marine Le Pen aproveitou para bater na tecla do fechamento das fronteiras aos estrangeiros.
Criticou o presidente com veemência: “Uma das primeiras maneiras de frear a epidemia é evidentemente efetuar o controle das fronteiras, o que Emmanuel Macron se recusou a fazer por razões quase religiosas”, cobrou Le Pen, que, ao que tudo indica, deverá enfrentar o atual presidente francês na próxima eleição, em 2022. Se, por um lado, acredita que as populações vão exigir de seus governos que se empenhem tanto no combate às alterações climáticas como se empenharam na resposta ao novo coronavírus, o próprio Macron admitiu a possibilidade de que o discurso populista e nacionalista saia reforçado da pandemia. Os populistas aproveitaram as leis de exceção em tempos de crise para agravar a erosão da democracia, reforçar a autocratização e perpetuar-se no poder. Além de deixar sequelas tóxicas que perdurarão para além de seus mandatos, sob a forma de desacreditação da ciência e da verdade.
Como analisar a ascensão política de uma figura execrável, sob todos os aspectos, tal qual Bolsonaro? Bolsonaro diz muito sobre o que somos. Começamos a elegê-lo no dia em que aceitamos passivamente que um terrorista abandonasse a farda com uma promoção para ingressar na política. Ao invés de ir para a cadeia, foi para o Congresso Nacional. Nada fizemos, tampouco quando esta figura, execrável como você diz, mostrou ser xenófobo, homofóbico, misógino, racista, mal educado, preconceituoso, desequilibrado, corrupto, violento, criminoso, defensor da tortura, próximo do nazifascismo. A impunidade se paga e o preço é altíssimo. Hoje temos aí um genocida, cujo sonho é virar ditador.
Diante do quadro geopolítico mundial, alguma certeza? Como me disse o francês Edgar Morin, precisamos aceitar que a ciência não é indiscutível e que devemos aprender a viver na incerteza. Precisamos recuperar o humanismo. A globalização fracassou. Temos de nos livrar do neoliberalismo; devemos estar preparados para outras catástrofes. Vivre, c’est naviguer dans une mer d’incertitudes, à travers des îlots et des archipels de certitudes sur lesquels on se ravitaille…(” Viver é navegar num mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos servimos). Embora nossa civilização nos tenha inculcado a necessidade de certezas sobre o futuro, desde que o coronavírus se instalou, temos de lidar com as incertezas humanas. Isso é o mais difícil, pois queremos prazos, respostas imediatas, queremos voltar a fazer planos. Aprender a aceitar e conviver com as incertezas é uma carta fora do baralho. Temos que ensinar também as crianças e os jovens a enfrentar as incertezas.
O mais extraordinário, na visão de Morin, é que ele admite de forma tranquila que ainda sabemos pouco obre o vírus e muito menos ainda sobre as consequências da pandemia. “A crise do coronavírus deveria incitar nossa imaginação criadora, nos tirar das nossas bolhas em busca de um “New Deal” capaz de nos livrar do neoliberalismo em todos os níveis. O importante é que possamos superar os erros cometidos.” Nosso sistema, fundamentado na competitividade e rentabilidade, teve graves consequências sobre as condições de trabalho. A prática maciça do teletrabalho poderá contribuir a mudar o funcionamento das empresas, hoje ainda excessivamente hierarquizadas e autoritárias. A pandemia poderá vir a acelerar o retorno à produção local (indispensável) e ao comércio de proximidade. Tomara. Do ponto de vista alimentar, temos uma ocasião única de nos desfazermos da cultura industrial, cujos vícios conhecemos, e nos desintoxicar. “A crise comprovou os limites da globalização. O coronavírus mostrou de forma irrefutável que se a globalização econômica e tecnológica criou interdependências múltiplas entre nações e pessoas, ela foi incapaz de criar solidariedade. Quando o vírus chegou, a primeira reação foi fechar as fronteiras. Hoje é preciso combinar globalização e ‘desmundialização’.” Infelizmente, prossegue Edgar Morin, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. Da Nigéria à Nova Zelândia, estivemos todos confinados, devíamos, portanto, nos dar conta de que nossos destinos estão ligados, queiramos ou não. Só quando nos conscientizarmos de que a humanidade tem uma comunidade de destino, poderemos pressionar os governos a agir de forma novadora. Enquanto isso, diz o filósofo francês, o momento exige a recuperação das verdades humanas reprimidas; “o que faz a qualidade de vida é o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade.” “A solidariedade global e a cooperação são o único caminho racional e até egoísta a seguir”; Slavoj Zizek.
Algo a fazer para que o mundo não repita tragédias sem precedentes como a 2ª Guerra Mundial, ainda tão próxima cronologicamente de nós? A primeira coisa a fazer é se ocupar da questão das desigualdades. Vários estudos foram realizados e os indicadores apontam nessa direção: os menos privilegiados ficaram mais expostos ao vírus. Isso sem falar da situação financeira pós-pandêmica, que penaliza os mais pobres e agrava o nível de desigualdade antes existente. A crise sanitária favoreceu os abastados, que conseguiram a mágica de multiplicar suas fortunas em pleno confinamento, enquanto outros só sobreviveram graças aos auxílios emergenciais. A pandemia abalou mercados no mundo todo e gerou dificuldades para muitas empresas. Mas também gerou riqueza para algumas companhias e seus acionistas. São empresas focadas em tecnologia, cujos serviços se tornaram mais importantes em um contexto de isolamento social. A valorização dessas firmas, em dólar, acrescentou alguns zeros aos bilhões dos já multimilionários. Foi o caso, por exemplo, de Eric Yuan, CEO da plataforma de teleconferência Zoom, cuja ação subiu 145% na bolsa de valores Nasdaq, nos cinco primeiros meses de 2020. Outro bilionário que ganhou muito dinheiro nesse período foi o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg. Até junho ele ganhou 9,7 bilhões com a valorização do Facebook e chegou ao terceiro lugar no ranking da Bloomberg, com uma fortuna maior que a do megainvestidor Warren Buffett. Ou ainda Goh Cheng Liang, de Singapura, fundador da Wuthelam Holdings, fabricante de tintas e revestimentos, Jeff Bezos, fundador da Amazon, MacKenzie Bezos, sua ex-mulher e uma das maiores acionistas da Amazon, Colin Huan, CEO da Pinduoduo, empresa de e-comerce da China, Elon Musk, fundador da Tesla e da Space X. Um estudo realizado nos Estados Unidos, pelo Centro Furman, da Universidade de Nova Iorque, contabilizou o número de casos de covid-19 em cada um dos bairros de Nova Iorque e chegou à seguinte conclusão: os bairros com maior porcentagem de casos foram aqueles em que a renda média era mais baixa, onde a maioria da população é negra e hispânica, onde os residentes têm menos possibilidade de trabalhar a partir de casa e de ter um bom acesso internet, dependendo mais dos transportes públicos para se deslocar. Em contrapartida, nas regiões mais ricas, como Manhattan, o número de casos foi bem menor e o de mortes quase inexistente. No Reino Unido, economistas também analisaram a distribuição geográfica das mortes relacionadas com o coronavírus e chegaram à conclusão semelhante. Em Portugal idem, um estudo realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública concluiu que as cidades com maiores taxas de desemprego e desigualdades de renda foram as que tiveram mais casos de covid-19. Além da maior exposição à doença, está claro que as populações mais pobres são as mais penalizadas pela crise econômica, associada à crise sanitária. Esta, aliás, é uma característica que se registrou também em pandemias passadas. O óbvio se repete. Três economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) estudaram os efeitos das pandemias das últimas duas décadas e chegaram à conclusão de que as pessoas com rendimentos mais baixos foram as mais atingidas, o que provocou um agravamento da desigualdade durante os cinco anos seguintes. Agora, embora ainda estejamos vivendo as consequências da pandemia de covid-19, há sinais claros de que o mesmo esteja ocorrendo. De acordo com a quarta edição do Atlas do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, publicado em setembro de 2020, o Brasil é o segundo país com maior desigualdade de renda do mundo, atrás apenas de Botsuana. Em 2017, os 10% mais ricos no Brasil tinham uma renda per capita 17 vezes maior do que os 40% mais pobres. O que levou Betina Barbosa, economista do PNUD, a comentar: “O perfil da desigualdade brasileira é de uma sociedade que se formou na escravidão.” Os dados mostram também a disparidade salarial entre homens e mulheres. Embora 16% das mulheres tenham ensino superior e os homens sejam 12%, em média elas ganham 15% menos. Nos estados do sul e sudeste a desigualdade é ainda maior. Em relação à cor da pele, as diferenças são mais expressivas: 6% dos brancos são analfabetos, enquanto entre os negros, quase o dobro: 11%. Os rendimentos médios dos negros são 42% menores que dos brancos. “A pandemia não criou a desigualdade socioeconômica, a desigualdade educacional, nem nenhuma de nossas mazelas, mas ela está aprofundando a grande maioria dos desequilíbrios ou, senão, todos eles”, disse a deputada federal Tabata Amaral, do PDT, que não pode ser acusada de esquerdismo.
Nesta crise, a questão das desigualdades é ainda mais relevante que na anterior, de 2013, quando o setor informal serviu de válvula de escape. Hoje, com o aumento brutal do número de trabalhadores informais pré-pandemia, o setor bloqueou. Daí a necessidade de se multiplicar medidas emergenciais e, paralelamente, se pensar nas reformas estruturais necessárias para um processo de “recuperação inclusiva”. As crises devem ser um incentivo para a realização das reformas tantas vezes adiadas em nome do neoliberalismo cego. A conclusão a que se chega é que a desigualdade aumenta no pós-pandemia, com os ricos ainda mais ricos e com os pobres virando miseráveis. De acordo com o Banco Mundial, o coronavírus jogou, em 2020, 60 milhões de pessoas na situação de pobreza extrema (menos de um dólar por dia de rendimento), invertendo a tendência de diminuição da miséria nas últimas décadas. Frente a essa situação, os economistas Emmanuel Saez, Camille Landais e Gabriel Zucman lançaram uma proposta de criação, em escala europeia e em caráter temporário, de um imposto sobre a fortuna dos 1% mais ricos. Os autores estimam que esta parte da população detém 22,5% do total da riqueza europeia e que a cobrança, durante dez anos, de uma pequena taxa adicional, seria suficiente para financiar um plano de recuperação econômica equivalente a 10% do PIB europeu. Isto é, mais do dobro do plano de 750 bilhões de euros propostos pela Alemanha e França. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty, numa crônica publicada no jornal Le Monde, considerou que a urgência é criar uma fiscalidade justa, com o aumento da contribuição dos mais ricos e das grandes empresas, tanto quanto for necessário. Num trabalho conjunto, Joseph Stiglitz e Piketty defenderam a criação de um imposto mundial sobre as empresas, taxas progressivas sobre os serviços digitais, transparência da riqueza offshore. Acreditam que assim ea pandemia poderá ajudar, como outras no passado, a reduzir as desigualdades. Há espaço para otimismo? Piketty responde: “A pandemia nos ajuda a compreender que precisamos de um sistema econômico mais equilibrado, justo e sustentável… Creio que estejamos em um momento de bifurcação.”
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Na foto, Bolsonaro e sua comitiva comem pizza numa calçada de Nova York. Foto: Money Times
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Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.