A luz do lampião treme. O querosene está acabando e ele ainda não voltou para casa. A madrugada avança, hora mais escura. As almas espreitam e ela se mantém acordada, junto ao menino inerte. A febre não cansa de açoitar. Sova o corpo da criança e ela reza, mãos juntas, dedos entrelaçados, os nós brancos de força e fervor. Nossa Senhora proteja o meu filho! A santa, impávida, parece não escutar. Traz de volta o meu marido! Traz ele de volta com o remédio! Mas o homem é tinhoso, amante da cachaça. O dinheiro passa na sua mão feito vento, não sobra nada, vai tudo embora com bebida.

O menino geme, pede água. Ela busca a moringa, verte o pouco que resta. Deve buscar mais na cacimba, mas desconfia que seja essa água turva e esbranquiçada que faz mal, a única de que dispõem. Tem que caminhar léguas para colher e ainda disputa com os vizinhos. A criança bebe, sorri e o sol desponta dentro da casinha, mesmo que lá fora continue escuro.

Escuta passos, é o homem chegando. Traz querosene, pão, leite e um remédio, o farmacêutico disse que é bom. Dá ao filho, deita-se de lado, aconchega-o junto de si. Parece que agora vai sossegar, não mais o sono inquieto e febril. Sente o quanto está cansada. O pescoço dói, os olhos ardem, mas se mantém desperta, precisa vigiar o menino. Vem o marido, deita junto, forte odor de álcool, respiração pesada, passa a mão em seu quadril. Ela sabe que não tem escolha. Baixa as calças, espera que acabe rápido. Uma última estocada e ele brada, cai de barriga pra cima. A luz se extingue devagar. Dali a pouco ela se levanta, abastece com querosene o lampião, verifica a temperatura do menino. Serenou. Olha em direção a Nossa Senhora, faz uma prece muda, de agradecimento. Precisa descansar.

O vestido branco que ela mesma teceu, comprido, tem a barra molhada na água doce do Capibaribe, que vem acariciar-lhe os pés. Uma rendeira solitária, frente a sua almofada de bilros, tece um lindo desenho de estrelas e flores, alheia ao sol que lhe queima a pele e os cabelos grisalhos. Ela se aproxima, observa o trabalho, toca delicadamente os pontos a fim de apreender seu segredo. A mulher termina e oferece a ela a renda, para que a ponha sobre a cabeça, véu de noiva.

O despertador avisa: hora de levantar. As pálpebras pesam como duas mãos impedindo-a de acordar. Veste o uniforme puído, lenço na cabeça, a trouxa com a marmita preparada na véspera. Sai, não sem antes passar a mão na testa do menino. Está normal, graças a Nossa Senhora. Sai da casinha, encontra os vizinhos, andam juntos em silêncio. É longo o caminho até a estrada. Arrastam-se mal dormidos, mal comidos. Vem o caminhão, sobem todos. Ela dorme no trajeto, boca aberta, cabeça caída para trás. Um solavanco diz que chegaram. A sirene toca, os portões se abrem, caminham juntos, massa humana amorfa. Sentam-se em frente às máquinas, começa o dia. Recebe o algodão que seus pais e irmãos plantaram. Arruma os fios nas agulhas, manipula os teares, vai saindo o tecido.

Branco como o do vestido à beira do Capibaribe.

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Valéria Martins é jornalista formada pela Puc-Rio. Trabalhou para diversas revistas das editoras Bloch, Globo e Abril, e para os jornais O Dia e Valor Econômico. Em 2004 migrou para o mercado editorial, atuando nas editoras Elsevier e Grupo Editorial Record. Em 2008 fundou a agência literária Oasys Cultural – www.oasyscultural.com.br Autora de livros de ficção e não-ficção. “O lugar das palavras” (Ed. 7Letras) é seu primeiro livro de ficção. O conto acima faz parte de tal livro.

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