* Por Matheus Arcaro *

Sempre que vou ministrar uma nova oficina de escrita, faço-me essa pergunta. A questão não é ensinar qualquer texto, mas literatura. Arte, portanto.  A ideia de instruir de que modo fazer uma redação para vestibular (com introdução, argumentos e conclusão) ou como escrever um release jornalístico (com chamada, linha fina e serviço) é perfeitamente cabível, já que se trata de técnica.

Mas, Matheus, não há técnica para escrever um conto, por exemplo? Sem dúvida! É nesse pedacinho de madeira que me apego para não afundar na hipocrisia.

O conto tem uma estrutura (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho) que pode ser explorada e praticada. Pode, inclusive, ser subvertida. É legítimo explicar e exercitar, por exemplo, os elementos da narrativa como narrador, enredo, personagem, espaço e tempo. Tudo bem, mas mesmo assim não me convenço. Falar de técnica em literatura soa como aproximar arte e razão instrumental, conceito de Max Horkheimer. O autor assevera que a racionalidade contemporânea teria se transformado em mero cálculo; uma ferramenta usada para ajustar meios e fins, sem questionar esses fins.

Por outro lado, se não dermos atenção à técnica e à prática pode parecer que, em determinado momento, uma entidade metafísica se apodera do escritor que seria uma espécie de médium entre as musas inspiradoras e a folha em branco. Algo que, convenhamos, não é plausível depois do Romantismo.

Nesta linha de pensamento, cabe uma pergunta derivada da primeira: conhecimento conceitual e teórico são importantes para apreciar uma obra de arte?

Bom, alguns pensadores defendem que sim. Para o psicanalista francês da contemporaneidade, Christophe Dejours, por exemplo, se alguém escutar uma música de Bach ou contemplar uma escultura cubista com base apenas em sua sensibilidade espontânea, talvez não consiga desfrutar de tudo o que estas obras podem oferecer. Em outras palavras, quanto mais conhecimento o sujeito tiver, mais profunda é sua sensibilidade.

Immanuel Kant tem um ponto em comum com Dejours, pois defendeu que a sensibilidade pode ser cultivada. Contudo, não concordaria que esse cultivo dar-se-ia por meio do conceito, do conhecimento teórico.

Segundo Kant, a pessoa educada pelas artes é capaz de um gosto mais sofisticado. Todavia, como moralidade, conhecimento teórico e julgamento estético estão em esferas distintas não é pela teoria que o ser humano chega à contemplação artística. Na verdade, para Kant, a estética seria uma espécie de ponte entre a teoria e a prática. A imaginação, isto é, a capacidade de produzir imagens, é o ponto de mediação entre a razão teórica (entendimento) e a razão prática (moral).

Faz sentido acatarmos a noção de Dejours se pensarmos na arte de vanguarda. Ilustremos com Marcel Duchamp e Piet Mondrian.

As figuras geométricas com contornos pretos pintadas com cores primárias de Mondrian podem parecer simplórias a olhos leigos. Observando-as, é comum emergirem frases como “até meu filho de cinco anos faria esse quadro”. A obra mais conhecida de Marcel Duchamp é a Fonte, de 1917: o artista foi a uma loja de construção, comprou um mictório, assinou R. Mutt e enviou a um Salão Independente de Arte, do qual ele mesmo era um dos jurados.

Obviamente é preciso conhecer, primeiro, o contexto de criação e, segundo, a linguagem do artista para apreciar devidamente estas obras.

Faz-se necessário conhecer minimante a história da arte para saber que, com o advento da fotografia, a pintura se alforria em relação à representação. Daí surge o movimento impressionista no final do século XIX e, nesse trilho, vem Piet Mondrian. O pintor começa descontruindo as imagens “reais” até chegar à completa abstração. Trata-se, portanto, de um processo de libertação imagética. O mesmo raciocínio vale para “Isto não é um cachimbo”, de René Magritte: não é um cachimbo porque é um quadro, é tinta sobre tecido.

E Duchamp, o que queria com seu urinol? Queria mostrar que a arte está além das plataformas, materiais e, principalmente, desprende-se da representação para virar pensamento. A Fonte é um objeto manufaturado que, pela escolha do artista, foi promovido à dignidade de arte. Aliás, o próprio ato de provocação ocupa o lugar da obra.

Mas proponho um aprofundamento na questão feita por Dejours, levando seu argumento às últimas consequências. Ao aceitarmos que o conhecimento teórico é fundamental para a contemplação artística não corremos o risco de apartar teoria e sensibilidade a ponto de voltarmos a uma visão cartesiana? Dou um exemplo: um sujeito joga meia dúzia de latinhas amassadas no meio do museu e, ao lado, fixa um longuíssimo texto explicando que aquelas latinhas são a representação da sociedade industrial que massacra os indivíduos e os formata a ponto de deformá-los; que o alumínio significa X, as cores das latinhas significam Y. Desta visão de arte, emergem inclusive anedotas como a do indivíduo que esqueceu seus óculos no canto de uma sala do museu e muitos começaram a contemplá-los como se fosse uma obra de arte. Ou do visitante que comeu a banana que estava fixada na parede com fita adesiva (essa sim, uma obra de arte). Enfim, a arte a serviço do pensamento. Ou, como escreveu Hegel, a filosofia dialeticamente superando a arte.

Porém, talvez seja possível um equilíbrio entre as visões propostas. Talvez a arte não seja um sentir ingênuo, tampouco puro raciocínio. Talvez Friedrich Schiller, poeta e filósofo do século XVIII, esteja correto. Em suas “Cartas sobre a educação estética do homem”, Schiller parte de uma crítica a René Descartes (que dividiu o ser humano em corpo e mente, com prevalência da segunda) e assevera que é preciso recuperar a harmonia entre estas esferas. É a arte que teria a função de educar uma nova humanidade. Escreve o filósofo: “Somente através da beleza é possível penetrar a terra do conhecimento.” Por meio da estética, o ser humano pode ser “conduzido” à maturidade da razão: em uma época em que todos possuem as ferramentas para o esclarecimento, o homem deve fincar seus pés no “solo” de uma “ilusão”, o solo da arte, dessa maravilhosa mentira, o instrumento único e primordial do renascimento do homem, de sua reconciliação com a unidade de sua própria natureza.

Depois de tudo isso, voltemos à pergunta que intitula esse texto, mas reformulada: “É possível ensinar alguém a sentir e a pensar?” Não, não é. Mas talvez seja possível capinar o mato alto para deixarmos as veredas à mostra. Veredas, no plural. Porque a arte é múltipla: grande sertão.

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Matheus Arcaro é escritor e Mestre em Filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social.

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