* Por Bruno Inácio *

O escritor e crítico literário Flávio Carneiro afirmou certa vez que “a
primeira frase de um livro de ficção nos diz grande parte de seus segredos”.
Baixo paraíso, romance de Isabella de Andrade recentemente publicado pela
Diadorim, é um bom exemplo disso. Aliás, todo o primeiro capítulo já coloca
leitores no meio de um turbilhão de sentimentos e sensações, do asco ao
alívio, da revolta à satisfação.

Ainda no primeiro parágrafo, a autora insere o leitor e a leitora como
testemunhas oculares. Mais à frente, com a dinâmica da relação entre os
personagens envolvidos na cena de abertura melhor desenhada, surge o
entusiasmo por uma vingança que, de fato, se concretiza.

Ao fim de um primeiro capítulo tão potente e angustiante, manter o ritmo
da história certamente não foi tarefa fácil para a autora. São muitos os
exemplos de livros que começam promissores e, em algum momento da
narrativa, se perdem pelo caminho. Mas esse não é o caso de Baixo Paraíso.
Ao longo de 36 capítulos curtos, Isabella de Andrade constrói uma narrativa
não linear profunda e autêntica, com cada palavra em seu devido lugar.

O romance é narrado em primeira pessoa e conta a história de Marília,
uma jovem que vive numa cidade fictícia no interior de Goiás e que desde a
infância lida com a compulsão alimentar e tudo aquilo que pode ser acarretado
por esse transtorno – como a pressão para emagrecer, o desconforto, o
bullying, a timidez e a insegurança.

Marília enxerga na comida o que há de mais reconfortante. Come
porque gosta do sabor, mas também para se recompensar ou se livrar do tédio.
As pessoas ao redor, especialmente a mãe, se incomodam. Não enxergam a
complexidade da questão. Para elas, cabe à Marília a decisão de simplesmente
parar de comer tanto.

Paralelamente, a protagonista tem em Gabriela – amiga e interesse
romântico – uma espécie de contraponto. A garota é magra, livre, popular e até
malvada às vezes. Diante de tantas diferenças, Marília é acometida por uma
paixão avassaladora e talvez explicada por aspectos que passam pelos
conceitos de transferência e idealização.

Seja como for, Gabriela assume um papel essencial na trama,
especialmente no que se refere às descobertas feitas por ambas em torno da
sexualidade e tantas outras questões.

Com o passar do tempo, entre aproximações e distanciamentos, as duas
crescem. Marília, agora mais incomodada com seu peso, passa a tomar
inibidores de apetite, medicamentos de tarja preta que causam dependência e
uma série de efeitos colaterais. Para ela, náuseas, falta de saliva e o
aniquilamento de sua libido são sacrifícios necessários.

Conforme perde peso, ganha autoestima. Pouco a pouco, no entanto, se
torna dependente dos medicamentos. E para consegui-los, aceita se encontrar
periodicamente com o padrasto de Gabriela, um médico abusador e metido a
poeta e sabichão. A partir daí, a protagonista se vê num buraco cada vez maior
e passa a refletir sobre os limites do que deve fazer para chegar às medidas
consideradas aceitáveis por uma sociedade bastante preocupada com o corpo
alheio.

Com um romance de formação original e capaz de explorar temas e
lugares incomuns à literatura brasileira contemporânea, Isabella de Andrade
aborda o impulso, as rupturas, os recomeços e os desejos. Evidencia toda a
pressão vivenciada por mulheres desde os primeiros anos de vida e alerta
sobre os riscos da autodestruição – sem cair nas armadilhas do didatismo.

Baixo paraíso prende a atenção da primeira à última página, por meio de
uma trama bem arquitetada e de uma linguagem que consegue ser poética até
mesmo quando fala sobre a crueldade e os fantasmas que insistem em voltar.
Uma leitura que reverbera a cada esquina e que vai fundo em temas que são
tão dolorosos quanto necessários.

*

Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em
literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso
(Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São
Paulo Review e do Jornal Rascunho.

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