* Por Fernando Chagas Duarte *

Eis dois preciosos livros – Horizonte de ​espantos‘, de Ronaldo Cagiano e Corpos luminosos, de Eltânia André, ambos publicados pela Urutau e que tratou de forma particularmente cuidada, como é seu timbre, o trabalho gráfico destas obras. Nunca é demais sublinhar o trabalho silencioso que ocorre nos bastidores de um livro que se publica.

Estas são duas obras de referência, que se estabelecem perante o leitor num trânsito entre a prosa, uma certa poética insurrecional e as formas mais variadas que têm todas as artes – no caso vertente, a necessitarem de uma condução cuidada entre fios, peregrinações, sotaques e desventuras. Façamo-lo então acompanhados das palavras e versos de um certo autor chileno que disse, provocatório como sempre, ‘​​Um escritor de contos deve ser corajoso. É um facto triste de se reconhecer, mas é assim que deve ser.’

Quem lançou este repto foi Roberto Bolaño, quando aqui nos deparamos com dois livros de contos de requintada metaficção, desde logo duas composições, cada uma por si, arrojadas e estimulantes.

De ambos os autores, Cagiano e Eltânia, prosadores distintos como poderão descobrir, estamos perante uma escrita com ressonância actual, que ressuscita os clássicos e se projecta na modernidade.

O que temos em mãos, conforme o crítico literário Whisner Fraga sublinhou no prefácio de ‘Corpos Luminosos’, são contos ​”​longos, outros menores, minis, micros“, onde “a prosa é densa, urdida para apanhar o leitor em contrapé”. Contos que são, digo eu, interrompidos pela dor, pela estranheza da realidade e pela poesia de um certo dizer. Por um olhar pulsante, que milita. Por seu lado, Luiz Roberto Guedes no prefácio de ‘Horizonte de Espantos’ entrega-nos um primeiro vislumbre destes contos​: “pois é o anjo (ou o demónio?) da memória que preside a estes relatos (…) revendo fantasmas pontuais e sempre assombrado com a permanência desse tempo ​staccato, coagulado“.

Ora, se a um escritor de contos pertence ser corajoso, digo então que há muito desesperança nos pungentes contos de Ronaldo Cagiano, um profundo inóspito que se desmonta até ao interior da realidade, repleto de símbolos crípticos, imagens incontornáveis guardadas da poesia, expostas agora na vingança passiva dos seus contos. Digo que são símbolos pessoais entre torrentes autobiográficas, entre os seus arcanos privados e devastadores – em fúria pela precária condição humana. Contudo, é de um desespero inteligente que se trata, com um vincado travo de ironia, como também na poesia de Bolaño:

O fracasso. A miséria.

A degeneração. Angústia.

O estrago. A derrota.

Dois artigos masculinos.

Afirmo ainda que na escrita de Eltânia pulsa o inegável e peculiar prazer da leitura, e que nos seus contos e minicontos emergem certas mitologias e conceitos que, tantas vezes, se fundem em lugares de ida e ​de retorno, numa encarniçada tentativa de olhar o mundo na sua dimensão multipolar. Encontramos a elipse como voz alternativa, e um dizer sem candura nem piedade que não permite habituação.

Digo-vos que, um e outro, são autores que não se escondem, que estão presentes em cada contorno da sua prosa e se diferenciam nas idiossincrasias da subtileza. Que se dissolvem, por vezes abraçados ao leitor, e o contagiam perante a insensível realidade que vai entrando no seu olhar, em vez de o encaminharem para um arco narrativo surpreendente, porventura de matriz supra-existencial ou benigna.

Como naquele verso do poeta – que nos vai conduzindo nesta leitura e aqui se transmuta em mote de escolha pessoal, “dos nossos corações nada restará” –, há nestes Autores uma necessidade irreprimível de contar histórias onde, à vez, se possam diluir (e refazer) perante a beleza cruel e a utilidade metafórica.

Autores diferentes entre si, porém donos de uma prosa que se desenrola entre uma melancolia represada e as grades libertadoras da ironia, é em ambos perceptível  o recurso ao recorte clássico (à erudição, digamos), e às epígrafes inspiradoras. Para Cagiano ou Eltânia, o que mais há, afinal, além das nossas vidas, comezinhas, por mais que existam escritores e poetas a tentar incendiá-las? A simples consolação da escrita? De modo algum!

Neste irreal humano em que se torna a vida dos comuns gera-se um ciclo imutável, sem lugar a apropriações geracionais ou de grupo; ou seja, sem Minotauros, somente labirintos, perante a ordem natural das coisas.

Regressemos às obras; dois livros distintos, alternativos entre si, diria.​ ​Em ambos encontramos os contos das entranhas, das virtudes inalcançadas, do absoluto desabafo, do desassossego que gasta a reflexão. Porque são histórias verdadeiras – decerto o são, agora que estão escritas.

‘Sem vencedor’ é o micro-conto de encerramento de ‘Corpos Luminosos’, que aqui recupero integralmente:

Como poderei dar xeque-mate nesse jogo idiota, se há um trauma chamado destino?

que profundamente me remete para o poeta que nos acompanha:

os demónios que hão-de levar-me para o inferno,

mas escrevendo.

Será o mesmo que descerrar o véu da dúvida sobre qualquer futuro?, ou perguntar “Um sonho dentro de outro sonho​” ?, outro verso de Bolaño, por quem aliás Eltânia clama no conto ‘Mutantes’. ​Grita-nos ela, em ‘Exoneração’​:​

​Acossado, o diabo escafedeu-se com o rabinho entre pernas​!,

para, em ‘Eterno Retorno’ nos entregar um microconto de duas linhas de inconformismo:

O suco da carambola que bebi estava delicioso,

foi o que esqueci de dizer antes de partir.

​Em ‘Uróboro’, conto de Cagiano, redescobrimos igualmente o invisível mito do eterno retorno, na forma da serpente que devora a própria cauda. Estamos perante o retorno aos livros, à geografia das coisas, ao ciclo imposto pela Vida. “Dias que passam incólumes pela memória das coisas​”, diz-nos o Autor. Tornando-as reais, tão reais quanto o delírio e as vozes que assomam certos fantasmas, antigos e actuais, porém expondo um ciclo em duas partes: sobre o destino e sobre a afirmação do que é humano.

E aquela longa serpente que se contorna, vai-se esticando, insinua-se pelo ânimo:

Todos os dias vou para aquele lugar onde me sentia observar a cidade. (…) No fundo de minha alma restam as palavras, o desleixo com o que não posso mudar, a bola, o café: são como a mesma rosa subversiva que, rompendo o asfalto, vinha-se em transgressões do fluxo da vida e da indiferença das coisas. Todos os dias estão aqui, apesar das tempestades.

Em ‘Estrangeiro’, talvez o mais emblemático texto do livro de Cagiano, o personagem Constantino Santana percorre espaço e tempo enquanto atravessa a cidade que um dia foi a sua, partilhando o seu pensar:

E estamos aí, como antes, com as mazelas e ruínas de sempre, como dona Judite doceira repetindo, Aí, Jesus!, diante do perigo.

Constantino Santana (alter-ego do Autor?) aguarda tediosamente ser atendido no Fórum para um processo burocrático de herança, “tudo com a lentidão do seu olhar”, enquanto o texto vai desfilando um encadeado sistémico de vidas cruzadas, gerando ciclos consecutivos e sobrepostos, porém regressando a um início que se repete e repete:

Recuso-me a acreditar, mas não consigo. Nesses mais de 30 anos nada aconteceu. Só a vida de alguns.

É a serpente, que talvez num certo momento se transmuta humanamente, e que ao morder a própria cauda marcará nesse instante o que é diferente: porque, interrompendo a eternidade do ciclo, nega-se agora o Autor a todo e qualquer maniqueísmo. Estará Cagiano, ao evocar o mito da serpente eterna, a demonstrar de facto a óbvia perenidade da existência?

Recorramos mais uma vez ao nosso poeta de eleição, pleno de vitalidade, sublimado aqui numa tradução pessoal de um trecho de ‘Los perros romanticos’:

E às vezes regressava a mim

e visitava o sonho: estátua eternizada

em pensamentos líquidos,

um verme branco retorcendo-se

no amor.

Como Bolaño​, cujas cinzas finais foram delicadamente dispersas entre a beleza rude e profunda das águas do Mediterrâneo, Cagiano e Eltânia mantêm-se pulsantes e ávidos consumidores dos livros e do mundo, da sua gente e seus absurdos, de tantas injustiças e paradoxos.

Enquanto autores, reescrevem com mestria, tudo, a partir de uma espécie de espelho ressonante, tão imaginário quanto terreno, que incorporam sem pudor nas suas histórias. Um e outro, cada um à sua maneira, são mais um estado de consciência do que uma existência específica em busca de um valor acrescentado, como só na literatura se é capaz. Um incorruptível não à irracionalidade do status quo vigente, decantado que ficou o simbolismo pessoal a redimir passados, porque a vida também serve para ser contada e reflectir em si mesma a palavra da literatura.  Agradeçamos a Eltânia André e Ronaldo Cagiano estas obras, surpreendentemente exaltantes, que nos oferecem.

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Foto: Ozias Filho

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