O pavão – parte I

* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

“(…) Pavão misterioso, pássaro formoso

Tudo é mistério nesse teu voar

Mas se eu corresse assim

Tantos céus assim

Muita história eu tinha pra contar (…)”

[Ednardo, 1974. “Pavão mysteriozo”]

 

I

 

Quando eu era pequeno eu amava ficar horas e mais horas dentro do galinheiro que meus avós tinham no fundo do quintal da casa que moravam no interior de São Paulo. As penas das galinhas tinham uma estética e uma textura que me fascinavam, as batidas das asas coloridas e imponentes do galo, único, no terreiro me enchia os olhos. As lembranças que tenho são de entrar sorrateiro, silencioso, naquele cercado e sentava em uma pedra mediana que ficava próxima a porta e me colocava a observar. Ficava ali horas e mais horas observando o vai e vem das galinhas que ciscavam num ritmo organizado procurando algo. Na minha imaginação de cinco ou seis anos eu procurava conferir uma história aquelas galinhas, para mim elas desfilavam, exibiam suas plumas coloridas em marrom, vermelho, amarelo e laranja para uma plateia composta, na verdade, apenas por mim. Elas não saiam correndo quando me viam, pareciam confiar na minha presença, me permitiam estar ali na comunidade delas. Eu não oferecia perigo e talvez por isso eu sentia que me exibiam suas plumas. Tudo parecia uma festa naquele espaço, para mim elas estavam em festa constante, era como um carnaval. Subiam e desciam do poleiro, ciscavam, abriam as asas, cantavam, piavam, havia um ritmo na desordem de seu vai e vem, uma alegria que comungavam. Eu tentava me integrar aquela alegria das plumadas, eu queria ter aquelas plumas para me arrastar pelo terreiro, subir e descer do poleiro, fazer a dança inteligente delas. Cada uma tinha sua plumagem de cores e estéticas diferentes para exibir. Eram diversas, cada uma era única e parecia que elas sabiam disso. O galinheiro para mim era uma festa carnavalesca que me divertia muito mais do que o carnaval que eu já sabia que existia e já adorava, mas me era sempre dito que era uma festa proibida, festa da carne cheia de coisas erradas que as pessoas faziam, principalmente que era uma festa onde ninguém sabia quem era homem e quem era mulher. Hoje percebo que o perigo do carnaval, segundo meus adultos próximos tentaram implantar na cabeça, estava aí: se perder no gênero e sexualidade. Isso me deixou mais curioso, porém era o temor de ter um membro da família desviado. No carnaval, nas vezes em que desejei ter plumas, eu fui fortemente repreendido. “Isso não é coisa de homem!”, diziam, “Vire homem!”, continuavam para mim, “Pena não! É coisa de bicha!”. Essa lembrança é tão forte quanto a das visitas ao galinheiro onde eu me sentia bem. Naquela minha cabecinha pequenina e imaginativa eu queria me transformar numa ave como aquela para ter plumas e me divertir batendo as asas ao toque de uma música sem palavras, mas cacarejos, sons inteligíveis. Eu me sentia alegre, as galinhas não tinham censura e tinham penas coloridas. Era tudo que eu queria. Anos mais tarde, já na vida adulta, eu entendi que meu fascínio por aquele espaço era pela diversão.

Certa vez, fui à casa dos meus avós e, ao chegar no galinheiro, me deparei com a presença de um novo morador totalmente exótico. Havia chegado no galinheiro uma ave de plumagem azulada e uma cauda enorme, andava de um lado para o outro no terreiro do galinheiro com um olhar misterioso como uma mata no noturno. Eu não conseguia distinguir se era uma galinha ou um galo, era um bicho misterioso que eu não conseguia saber se era fêmea ou macho, não tinha ideia do que era e creio que foi isso que me enfeitiçou. Os olhos delineados e contornados em preto, como uma pintura de lápis, me fitaram impositivos quando percebeu minha presença sentado na pedra. Imediatamente se chacoalhou todo e abriu a cauda em leque. As galinhas que estavam à volta se afastaram, mas continuavam admiradas ao vê-lo arrastar aquele leque de plumas deslumbrantes pelo terreiro. Eu lembro que paralisei fascinado por aquele bicho que parecia dançar exibindo-se no terreiro. Virava de um lado, virava para o outro mostrando suas penas, ele as exibia da mesma forma que nas fantasias das pessoas nos desfiles do carnaval. As pessoas do carnaval eram como aquela ave deslumbrante que eu não sabia se era macho ou fêmea. Eu lembro que aplaudi com minhas mãos pequenas e ele percebeu, fechou a cauda por um instante e segundos depois voltou a abri-la para mim. “Bonito o pavão, né fio?”, só lembro de escutar a voz do meu avô escorado na cancela que fazia de portão do galinheiro. Um pavão… então aquela ave era um macho. Um macho que podia ter penas coloridas. Então, era de pavão que queria me vestir.

 

II

 

Essa história levou dez anos para ser contada. Ela começou no ano de 2013 e já não me lembro se na primeira ou segunda noite daquele carnaval. Só lembro que eu estava na cidade de Praia Grande no litoral sul de São Paulo assistindo distraído numa atenção flutuante com um olho na tela da TV e outro na do celular, o desfile das escolas de samba quando vi que um dos participantes do carnaval, vestido em plumas, passou na frente da tela e o narrador do carnaval daquele ano disse: “Esse é o Daniel Manzioni, o rei da bateria da escola!”. Meus olhos colaram na tela, aumentei o volume TV e lá vinha ele sambando imponente para a câmera chacoalhando as penas deslumbrantes, com a letra do samba na boca e nos pés. Na mesma hora chegou uma mensagem no meu celular de um amigo, “Você viu que tem um rei de bateria de uma escola de samba com seu nome?”. Eu fiquei um pouco confuso e conferi, a diferença era um “i” no meio que mudava um pouco os nossos sobrenomes.

Nossos sobrenomes não são completamente idênticos, mas esse “i” no meio foi o suficiente para cruzar nossas histórias. Primeiro porque fiquei fascinado pela questão de ver um rei de bateria. Desde que eu acompanhava o carnaval nunca havia visto nada além de rainha de bateria, ou seja, mulheres à frente da bateria de uma escola de samba. Porém, ali havia um homem, lindo, sambando, cheio de plumas na frente da bateria. Foi impressionante. Tudo que eu percebia sobre o carnaval tinha mudado naquele instante. Havia um homem como rei de bateria. Segundo, pela confusão que esse “i” causou. No dia seguinte, quando acordei, já passava das 11 horas da manhã, com a avalanche de pedidos de solicitação de amizade que eu estava recebendo no facebook. Na ocasião eu utilizava apenas como “Daniel Manzoni” como nome de identificação dessa rede social. Foi o suficiente para as pessoas, ao digitar a procurar pelo “Daniel Manzioni”, na certa esqueceram o “i”, e me encontraram e solicitaram a amizade. Foi assustador. Um monte de mensagens elogiosas discretas – “adorei você sambando!”, “Você arrasa!”, “Pura alegria, lindo!” – e até indiscretas – “Que delícia você!”, “Tem nudes?”, “Quantos centímetros de pau?”. Um caos naquela manhã. Uma das primeiras coisas que eu fiz foi tentar encontrar o verdadeiro Daniel Manzioni nas redes sociais e consegui. Achei um perfil e mandei uma mensagem na esperança que fosse o perfil real e oficial dele. Tudo podia acontecer naquele momento, se eu já estava recebendo várias solicitações de contato, imagina ele o quanto de perfis poderiam ter sido criados.

Passado o carnaval, na quarta-feira de cinzas, recebi a mensagem do perfil do Daniel Rei de Bateria agradecendo por ter adicionado. Ele logo foi notando a coincidência dos nomes quase idênticos. Inclusive até achou que era um perfil falso que haviam criado dele. Rapidamente, aproveitei essa deixa, respondi contando o acontecido dos fãs dele que estavam batendo na porta do meu perfil confundindo com o dele. Nos divertimos um pouco com a situação naquelas primeiras mensagens. Dali não demorou muito e trocamos WhatsApp para nos divertirmos ainda mais com a coincidência do destino. Daniel foi de uma simpatia e um humor ímpar desde o primeiro momento, de uma risada fácil, sem esforço de gargalhar. Fomos para além do diálogo trivial e descobrimos que morávamos na mesma cidade. Eu na ocasião no ABC e ele na zona sul de São Paulo. A conexão de amizade foi súbita, parecia que nos conhecíamos há muito tempo. Ele logo me enviou links de matérias, de vídeos dançando e fotos no carnaval como rei de bateria. Eu fiquei cada vez mais interessado naquela figura. Naquela época eu ensaiava minhas primeiras páginas escritas, já havia publicado um conto em uma coletânea de textos LGBT+ e preparava a escrita de um primeiro romance. Como alguém que escreve, eu tentava farejar algum tipo de história, de personagem que poderia ser interessante para contar. Claro, que a dele me saltou aos olhos: um homem cis, masculino, como rei de bateria de uma escola de samba. Um espaço que era destinado apenas às musas sensualíssimas, de repente um homem sendo exposto como símbolo de sensualidade no samba tão tradicional. Poderia essa figura ser uma chave para discutir as masculinidades e suas possibilidades? Tomei isso como uma hipótese. Revelei ao Daniel o que eu achava sobre tudo aquilo e ele ficou interessadíssimo. Dali em diante nos falávamos todos os dias até que chegou o dia em que fomos nos conhecer pessoalmente.

Lembro bem que era uma sexta-feira. Marcamos depois das 18 horas na academia de ginástica que ele era proprietário no bairro Praça da Árvore na zona sul de São Paulo. Daniel é formado em educação física e na ocasião tinha uma academia no bairro em que morava. Cheguei pontualmente na recepção. Uma academia grande daquelas de bairro, daquelas em que todo mundo conhece porque nasceram, se criaram e ainda vivem no bairro, hoje em dia difícil de ver, pois foram engolidas pelas grandes redes de marcas de academias. A recepcionista disse que me levaria até ele, pois estava dando aula de dança. Eu cruzei todo o galpão daquele estabelecimento sob o som dos ferros dos pesos batendo nos aparelhos, dos sons do esforço físico, dos odores ardidos do suor e da música pop altíssima das caixas de som. “É aqui, ele está ali”, disse a moça da recepção abrindo a porta do salão que estava inundado por uma música de enredo de escola de samba. Não foi difícil de notá-lo naquele espaço. Alto, quase 1,90, corpo atlético, vestia um short curto que salientava os dois pares de pernas definidas e grossas, uma camiseta regata preta que salientava o peitoral malhado e dois braços fortes, um sorriso lindíssimo e um espírito solar que iluminava toda a sala de dança. Um homem lindo e deslumbrante. Rodeado por várias mulheres, sambava com o domínio de um professor. As mulheres tentavam segui-lo no samba, mas mesmo com o esforço que faziam em calças legging e tênis, não chegavam nem perto do samba no pé que o Daniel fazia. Ao me ver, sorriu de canto de boa e piscou para mim no momento em que rodopiava no samba. Não era qualquer forma de dançar, tinha uma leveza e ao mesmo tempo uma brutalidade da sensualidade de uma masculinidade excitante. Não transmitia o rebolado da feminilidade e também não é um vai e vem do sexual do quadril masculino, mas algo temperado de elegância e energia sensual de uma ave ao sol. Essa masculinidade descomprometida com o ser macho me hipnotizou. Era a masculinidade da possibilidade de talvez não ter comprometimento com viril, mas ser montável, a brincadeira de ser aquilo que a cadência do samba pede. As batidas da música da bateria de escola de samba que tocava naquele instante e o Daniel sambando diante de mim materializaram aos meus olhos a libido: excitante e sem forma. 

A aula dele de dança iria ainda por mais de quarenta minutos. Eu me sentei em um banco próximo a entrada e fiquei ali, hipnotizado pela libido encarnada. 

  

III

 

“Eu agora não tenho problema em falar sobre isso, Dani”, me disse Daniel em nossa primeira vídeo conferência em novembro de 2023 – dez anos depois de nos conhecermos. Daniel falava sobre sua sexualidade. “O carnaval mudou muito e eu quero me despedir dele. Quero fechar esse ciclo da minha vida em grande estilo” continuava. A distância entre nosso primeiro encontro pessoal e esse por vídeo era grande e muita coisa havia acontecido. Daniel já não tem mais a academia na Praça da Árvore. Eu já não moro mais no Brasil. Daniel, também já não mora mais na cidade de São Paulo, mora no interior do estado de e é professor de dança em uma academia local. Eu passei por muitas mudanças que me fizeram adiar a escrita sobre ele. Tentamos, ao longo desses dez anos, retomar esse projeto e houve muitos desencontros e uma pandemia da covid-19 que dragou a vida de todo mundo. O maior show da terra, o carnaval, foi cancelado. Daniel havia perdido o pai, uma das figuras muito importantes em sua vida. “Eu estou programando a minha aposentadoria do carnaval como rei de bateria”, repetiu ele várias vezes, “Eu vou completar cinquenta anos e quero ter outro papel no carnaval. O carnaval já não é como antes”, reiterou por várias vezes. Nesses dez anos nunca deixamos de nos falar. Eu ainda não sei direito o que fez dar certo agora. Pode ser que seja pelo fato de eu estar distante alguns anos do Brasil e só por isso sentir o que é o carnaval. Ou talvez um fato tenha deflagrado toda essa energia: a dificuldade que eu tenho de explicar para algum colega de origem não brasileira o que é o carnaval. Todas as vezes que eu me meti a tentar explicar para algum francês, italiano ou qualquer outra nacionalidade o que é o carnaval eu falhei em passar o sentimento que é. Eles têm sempre o estereótipo do pacote vendido: sexo o tempo todo, mulheres deslumbrantes, samba do despertar ao tentar dormir nos dias de carnaval e uma festa sem limites. Ou então é o conjunto de críticas políticas e colonialistas que podem ser resumidas na frase: “Um país com tanta miséria e vocês gastando dinheiro com festa e fantasias!”. Como se alegria não fosse forma de protesto ou resistência. A conclusão é que eles e não entendem o que é o carnaval e como isso é impregnado em nós brasileiros. Mas eu acho que o que me fez resgatar essa história foi uma conversa em um jantar entre pessoas brasileiras e outros estrangeiros. Em dado momento reiniciei a tentativa de explicar o que é o carnaval e me veio à memória o Daniel Manzioni e mostrei alguns vídeos, reportagens e fotos dele à frente da bateria. Eu percebi o espanto instalado. Da parte dos gringos o elogio a figura de um homem no posto que sempre conheciam como de uma mulher. “É um homem mesmo?”, perguntaram, e o comentário “Interessante um homem poder ser visto como sensual dessa maneira”. Por outro lado, a reação das pessoas brasileiras era ora de surpresa, “Que legal, que homem lindo, que bacana isso de um homem desse tamanho sambando na frente da bateria”, ou o contrário com um traço até mesmo tradicionalista e indignado, “Não gostei, é estranho, mas não sei porque é estranho”, ou “A frente da bateria é um lugar das mulheres”, alguns ensaiando uma fala “feminista”, ou os mais lúcidos, “Estava na hora dos homens serem objetificados”. De toda forma, eu percebi novamente que a figura do Daniel Manzioni poderia ser importante para uma discussão ou pelo menos ilustrar sobre o carnaval.   

 

IV

 

Quando a aula acabou naquela sexta-feira, o Daniel me recepcionou com um abraço suado e de alegria transpirante. Depois me levou para conhecer todo espaço da academia. Me apresentou com orgulho seu negócio. “Eu moro aqui em cima”, disse ele me convidando para conhecer. O acesso era um pequeno corredor, com uma escada esguia, próximo à recepção. Era um pequeno apartamento construído, quase de improviso, na parte de cima da academia. Os ambientes se misturam entre quarto, sala e cozinha. Logo um gato malhado de branco e preto veio me nos recepcionar. “Eu sou formado em medicina veterinária também, além de educação física”, confessou Daniel, “Eu gostava de dançar quando pequeno, mas meu pai dizia que eu precisava de uma profissão. Eu escolhi medicina veterinária, mas não exerço mais. Só restou o amor pelos animais”, disse beijando o gato que não me recordo se era macho ou fêmea ou como se chamava. O apartamento estava repleto de pedaços de fantasias de carnaval, restos de plumas, penas pelos cantos e por cima do guarda roupas que separava o que seria o quarto de uma pequena sala. Daniel abriu a cortina de uma janela de vidro imensa que dava uma visão panorâmica para o salão principal da academia. “Eu danço desde os 5 anos de idade. Eu dançava escondido e sozinho dentro do meu quarto. Era meu universo. Sou autodidata e aprendi o samba no pé sozinho. Na minha época não tinha referência nenhuma de homem no samba dançando como eu. Eu assistia ao carnaval e só tinham musas. Eu me inspirei nelas. Eu venho de uma família de classe média, de origem italiana e portuguesa que não tinha ligação nenhuma com o samba. Eu gostava de ficar assistindo na televisão o desfile das escolas de samba… e aí tudo aconteceu…”, disse Daniel.

Aos 15 anos de idade foi diagnosticado com depressão e encontrou na dança uma forma de tratamento. Para conseguir superar os sintomas que sentia, como crises de pânico, TOC e pensamentos suicidas, foi matriculado em um curso de dança de salão. O processo depressivo era consequência do bullying e das pressões que sofria na escola por ser um garoto acima do peso, as questões de sexualidade que borbulhavam na sua adolescência e as querelas familiares com o pai. Como um garoto tímido na década de 80 e 90 no Brasil, a única solução era se retrair cada vez mais. Daniel conta que o pai não era uma figura rigorosa, mas o desejo de não o decepcionar era muito grande. Ele é o único filho do sexo masculino junto com mais duas outras irmãs. Daniel sentia a pressão de ser o “filho homem” e qualquer comportamento que pudesse decepcionar o pai soava como um pesadelo e que foi somatizando com outras questões como por exemplo a timidez e o complexo que ele sentia com o próprio corpo. Não podemos esquecer que nessa época qualquer manifestação de uma sexualidade “desviante da norma” era considerada doença. Foi um coquetel perfeito para causar depressão na adolescência. “Eu não sei te dizer ao certo porque eu fui parar na dança de salão. Talvez porque ali eu conseguia ficar mais próximo do ritmo do samba e ao mesmo tempo exercer o papel masculino, pois a dança de salão exige um papel de homem e um de mulher como par. Essa era a forma que eu conseguia dançar e não causar problemas com meu pai”, relatou Daniel, “E foi quando eu comecei a me destacar. As pessoas gostavam de me ver dançar e eu gostava de me exibir dançando. Eu me senti amado, querido e desejado. Foi assim que eu percebi que eu queria dançar. A dança para mim virou uma forma de me conhecer, uma forma de libertação. Eu me senti valorizado”, continuou Daniel até sua voz e seus olhos mudarem como a maré. “Muitas vezes na vida eu me senti completamente desvalorizado. Eu fui assediado sexualmente aos 6 anos por um homem que trabalhava na cantina do colégio católico que eu estudava. Era esse tipo de coisa, sabe: ‘pega aqui na minha que te dou um doce’. Hoje eu sei o que é isso, mas por muitos anos eu cresci me sentindo culpado, pensando que eu tinha provocado aquela situação, que eu era uma criança errada, uma criança safada. Eu não tinha com quem conversar, falar o que estava acontecendo. Hoje essas conversas são normais entre filhos e pais, mas na minha época não. Guardei para mim até o ponto que deprimi”. Ficamos em silêncio por alguns instantes na ocasião. Daniel, olhou em volta do apartamento e fez um gesto abrangente com os braços, como se quisesse me mostrar as coisas à volta, “E, então, veio o carnaval na minha vida!”.

Eu lembro que até aquele momento eu explorava no pequeno apartamento dele todos os cantos, todos os espaços com meu olhar. Ao mesmo tempo que aquele espaço era pequeno e entulhado de coisas também era absolutamente colorido pelo carnaval, pelos restos de fantasias do passado e outros pedaços de fantasia em construção. Penas coloridas… eu vi algo como dois braceletes de penas em um canto. Não eram penas muito longas, mas pareciam criar uma asa. Eu me recordo que fiquei curioso com aquele objeto ao ponto de pegá-los encantados nas mãos para admirar para além dos olhos, mas pelo toque como se quisesse pelas pontas dos dedos vestir aqueles braceletes com penas.

“Em 2005 eu fui coroado rei de bateria pela primeira vez. Foi uma explosão maravilhosa!”, disse Daniel radiante, “Eu não sei ao certo como decidi que eu queria sambar. Eu só sei que quando eu me vi já estava no carnaval. Hoje eu considero como uma afronta: sair daquele garoto deprimido e desprezado por ser gordinho e ir dançar sensualmente na frente da bateria”, relatou Daniel com brilho nos olhos. “No carnaval eu não me sinto preso. Foi sendo rei de bateria que eu me senti livre, me expressando. Eu descobri que no carnaval eu não precisava desempenhar um papel masculino ou feminino como eu estava fazendo na dança de salão. Ali, sambando, eu era um ser, apenas um ser brilhante. O samba me acolheu como sendo esse ser todos esses anos. O carnaval tem esse dom da gente poder ser algo sem conceito! Foi um ato de rebeldia. Eu queria que meu pai me visse, e me viu, sambando. Eu queria que ele visse o que eu via: a dança não tem gênero, não tem sexo. É uma expressão sem esses conceitos. Eu queria que ele visse que eu criei meu próprio espaço, meu próprio samba. Eu criei o meu samba: uma mistura do samba no pé, sensual feminino e ao mesmo tempo cheio de cadência. Um samba novo de um rei de bateria!”, disse orgulhoso.

Eu estava fascinado pelos pedaços de fantasias que tinham ali. Não havia uma fantasia inteira, mas pedaços significativos. Eu ousei experimentar os braceletes com penas. Quando coloquei senti um arrepio no corpo todo. Não sei o porquê, mas veio a imagem de um pavão imediatamente na cabeça imponente com a cauda aberta, exibida e levantando poeira com seu andar impiedoso, me senti poderoso. Era como se eu tivesse ganhado asas. “Eu queria ser Eu, eu queria liberdade. Só o carnaval me deu isso”, ouvia de longe a voz do Daniel preparando um café na pequena cozinha. Lembro quando Daniel se aproximou de mim com uma xícara de café enquanto eu via pela janela as pessoas malhando no galpão abaixo e ouvia a música pop que vinha das caixas de som e invadia sem pestanejar o apartamento. “É isso que eu quero deixar, passar para os próximos que vierem para seguir na história que eu vou deixar, para outros que querem ser rei de bateria”, disse ele, “eu acho que é significativo, você não acha?”, quando nossos olhos se cruzaram e nos beijamos.

 

V

 

“Antigamente tinha mais liberdade no carnaval. Hoje em dia tem muita cobrança. Tudo tem conceito: ou você é homem ou é mulher! O carnaval regrediu. Eu escuto que tenho que dançar como homem. As coisas estão muito quadradas, se eu quiser ser mais feminino já me dizem que não sou mulher”, relatou Daniel na nossa videochamada em 2023. “Eu fui pioneiro nisso. Hoje tem vários aí que fazem e se dizem rei de bateria pelo caminho que eu abri. Na minha época eu não tinha referência. Em 1993 ou 1994, por esse tempo eu acho, havia o Zé Reinaldo que a mídia nem chamava de rei de bateria, mas de rainha porque vinha travestido. Eu faço outro estilo. Eu acho que as coisas são diferentes, sabe. É independente da sexualidade. Eu me recusei por anos a falar da minha sexualidade para a mídia. Toda vez que vinham me entrevistar sempre vinha a pergunta: ‘qual a sua condição sexual?’. Eu respondia: ‘a dança não tem sexo. Eu danço para me expressar, eu quero ser eu’. Já fui bem ríspido com um jornalista certa vez com isso. Depois ele veio me confessar, em off claro, que era homossexual, que tinha curiosidade sobre isso e que era importante falar para o público sobre essa orientação sexual, pois o carnaval era um ambiente machista, que transforma apenas as mulheres em objetos, símbolos sexuais”, relatou Daniel fazendo uma pausa pensativa, “Eu até entendi isso, mas hoje está tudo uma bagunça, não há liberdade de expressão”, faz outra pausa, “Há sim, liberdade se você tem grana para investir na carreira, se você tem dinheiro para contratar todo um serviço de mídia para divulgar, uma assessoria de imprensa. Na minha época era tudo muito espontâneo. A mídia era na base do espanto, da polêmica, do subversivo. Eu fui subversivo! Era uma delícia esse choque que as coisas causavam. Quando eu sai nas primeiras vezes recebíamos telefonemas na escola: ‘como vocês ousam colocar um homem sambando, rebolando junto com a rainha na frente da bateria?’. Era um escândalo! Isso rendia mídia!”

“E como você se sente com tudo isso?”, perguntei, “Eu me sinto um pouco excluído. Já vou fazer cinquenta anos, percebo que meu tempo já passou. Eu quero fechar esse ciclo. Eu já cansei… achava que eu teria mais consideração e reconhecimento no carnaval…É sobre isso que quero falar: como eu me sinto sendo esquecido…”.

Disse Daniel quando retomamos essa conversa após 10 anos.    

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com

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