É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.
Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.
Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.
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I.
Num feudo cercado por gelo baiano, os bebês nasciam perfeitos, com pés, mãos e unhas. Morriam nos primeiros anos com tiros na cabeça; os tiros de raspão arrancavam as orelhas, outros tiros mais certeiros atingiam os miolos. Os pais órfãos riam sem controle porque juntos eles deixavam de existir e eram espectros fantasiados na fila do Cordão do Bola Preta de cujo rei, o Momo, saltava a cara mais impassível, atravessada pelo cruel esgar de um folião! Vamos rir, vamos nos rebentar, vamos rebentar o ventre de tanto rir, eram as ordens do bufão armado de um fuzil cruzado em frente ao peito.
II.
No funk da apoteose, um grito dissonava, um grito de ódio tão infinito quanto o amor. Ou prenunciavam-se as declarações de guerra? X9 vai cair. Bota a cara para morrer. Comando. Vermelho.
III.
Facções de descamisados ou uniformizados impunham o cumprimento das ordens. De uma das gondolas do teleférico, contabilizava-se as cabeças nos engenhos há quatorze minutos dos últimos seiscentos anos.
IV.
O manguezal se arrastava sob o céu, assim como a gente e os caranguejos guaiamum. Ignoravam onde iam. As aves frias dispersas equilibravam-se nas ondas do vento. A restinga criava fronteira com o restante do mundo e usava da serventia da Lua e do Sol até as cores atrofiarem pés e patas no lamaçal. Devoradores da carniça e dos sedimentos de chumbo da Maré, a gente e os caranguejos retinham frações do céu nas carapaças. À cada toca correspondia uma hora antiga e passada e, por serem os abrigos vazios, neles o nada habitava por todo lado, o tudo-nada.
V.
Estirado sobre o chão, o exoesqueleto da menina espremia para fora meninos e meninas idênticos a ela cuja carapaça de fêmea no cio era cremosa e amarelada. Ana era Clara, Clara fora Ana, Bruna foi Sofia, Eduardo sempre de Jesus, Maria de Eduarda, Eduarda de Maria, João seria Antônio, Antônio é João, dispensando nome rosto ou cruz por não se distinguirem. Brian nasceu e morreu ontem no ventre universal.
VI.
Menina: onde mapearam a sua coroa estelar? Na contínua lei de reposição física dos corpos, você é fecundada por disparos, ruídos, cápsulas, rojões.
VII.
Um dos pescadores do manguezal instruía tão bem as crianças em desova do corpo da menina. Explicava-lhes que andassem para os lados, tesos e frontais, a fim de não perderem guarda das costas ou da cabeça. Tanto esforço para domesticar seres abençoados pelo Diabo era em vão! Que o pescador se ativesse à construção de barquinhos e redes enquanto os meninos e meninas insistiam em levantar-se das cambalhotas e fazer travessuras. Recusavam-se a manter suas cabeças rentes ao chão e os seus pés apontados para o céu, justo o céu iluminado pelos surtos da Nebulosa do Caranguejo. Deus os havendo feito errados (pés, mãos e unhas perfeitos não bastando), castigou-os com vida, nucas sem olhos e exoesqueletos. Condenou-os a olhar para um futuro que se desintegra no passado e a se encolherem, de cócoras, na regressão fetal.
VIII.
Quando chove, o esgoto sobe.
IX.
O pescador produz embarcações que poderiam embalar os meninos e as meninas para que escorregassem sem qualquer atrito do Morro do Timbau ao mar e fugissem do “ponto forte”.
X.
Era uma vez uma bela fábula. O Rei, o Momo, os líderes dos comandos, facções e exércitos encomendaram le gaz sarin para perfumar o manguezal. Os caranguejos alimentando-se de folhas amarelas tombadas ou de outros caranguejos sobreviveriam. A menina também, já que não parava de conceber e expelir.
Fim não existe.
(anônimo)
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