* Por Denise Schittine *

No ambiente de leitura, começava a nascer o Borges escritor. Ele começou a tecer o próprio destino com os fios da poesia herdada dos ingleses, sonhando com os novelistas universais e especialmente com o bucaneiro Stevenson, encantado pelas epopeias de Homero e atraído pelo enorme volume de capa dura de Dom Quixote. Amava ler romances policiais, ver os filmes de western e de gangsters, não se cansava nunca da mitologia do submundo de Buenos Aires, que estava sempre colocando em seus escritos em dois temas: a coragem e o duelo. Aos 6 anos, já imaginava o seu destino como escritor. “Este é o meu destino; eu sempre soube. Eu não imagino nenhum outro que não seja este”, dizia de sua carreira de escritor. E afirmava que Milton, como ele, também intuiu que seria escritor antes de sê-lo. E acreditava que um autor precisava ter imaginação, seguir seu subconsciente (que os antigos chamavam de “musas”) e, principalmente, sua memória.

O seu “destino” como autor tinha algo da herança familiar. Uma herança que lhe legara a cegueira, mas também a cultura inglesa e o desejo da escrita. Havia uma esperança, por parte do pai, que o destino de grande escritor se cumprisse em Borges, e ele cresceu com a cumplicidade e o apoio à sua escolha pela família, mas também com uma espécie de dívida. A tradição literária estava no lado paterno: o tio-avô de Jorge Guillermo, Juan Crisóstomo, foi um dos primeiros poetas argentinos, conhecido por escrever uma ode ao general Manuel Belgrano. Álvaro Melián Lanifur, primo distante de seu pai, foi um poeta menor, mas o primeiro na família a entrar para a Academia Argentina de Letras. O bisavô de Borges, pai de Fanny, Edward Young Haslam, dirigiu um dos primeiros jornais ingleses na Argentina (o Southen Cross) e tinha o título de doutor em Letras pela Universidade de Heidelberg.

Em 1919, os Borges saíram da Suíça e iriam direto à Argentina, mas antes decidiram passar um ano na Espanha. O lugar escolhido para viver foi Maiorca: era barato, bonito e na época tinha poucos turistas. Foi aí que Jorge Guillermo começou a escrever seu primeiro romance, que se denominava El caudillo e versava sobre a guerra civil de 1870, que se passara em Entre Rios, sua província natal. Borges, nessa altura, estava completamente encantado com os alemães e ofereceu algumas metáforas expressionistas que o pai aceitou. Anos depois, iria se arrepender das intromissões causadas por seus interesses juvenis. El caudillo era a história de Andrés Tavares, um senhor feudal de grande influência política, violento, déspota e fora da lei que, ao final do livro, sucumbe à sua própria brutalidade. Entre os personagens secundários estava a figura de um famoso degolador de Urquiza, que tinha como característica a habilidade de separar o corpo da cabeça da vítima com apenas um golpe de faca. A irmã de Fanny, Carolina Haslam, também ganhara uma homenagem no romance: a personagem Madame Dubois é baseada nela. Esse escrito já traz algumas características que o Borges filho usará mais tarde em suas criações: o tempo, o livre-arbítrio e a predestinação.

Terminado o livro, Jorge Guillermo mandou imprimir quinhentos exemplares para presentear aos amigos na volta a Buenos Aires. Anos mais tarde, antes de morrer, pediu a Borges para reescrever o romance de forma mais simples, editando as partes com muitas descrições e floreios. Publicou também algumas traduções do inglês, notadamente a versão de Fitzgerald da poesia de Omar Khayyám, e ainda um livro de poesia, que de fato era sua maior paixão, no estilo de Enrique Banchs. Destruiu muitas coisas também: um esboço de livro de ensaios, um volume de histórias orientais no estilo de As mil e uma noites e um drama, Hacia la nada, sobre um homem que ficara desiludido com seu próprio filho.

Desde criança, ao assistir ao início da cegueira do pai, instalou-se uma espécie de contrato tácito entre os dois: Borges cumpriria o destino literário que foi negado a Jorge Guillermo. Pequeno, Borges começou a escrever fazendo uma espécie de plágio dos autores de que mais gostava. Seu primeiro texto foi um manual de não mais de dez páginas sobre a mitologia grega, feito num inglês infantil com vários erros e provavelmente plagiado de Lampière. Gostava muito de mitologia e, nas poucas páginas, explicava as histórias do Tosão de Ouro, do labirinto, de Hércules, que era um de seus heróis favoritos, a lenda de Troia e um relato sobre os amores dos deuses. O livro foi feito com uma letra muito pequena e apertada, porque Borges já contava com uma vista bastante comprometida.

Pequeno, Borges começou a escrever fazendo uma espécie de plágio dos autores de que mais gostava. Seu primeiro texto foi um manual de não mais de dez páginas sobre a mitologia grega, feito num inglês infantil com vários erros e provavelmente plagiado de Lampière

Leonor guardou com carinho esse exemplar, que acabou se perdendo com as viagens e mudanças da família. Depois, Borges escreveu seu primeiro conto: uma história absurda de narrativa anacrônica, denominada La visera fatal, abertamente inspirada no estilo de Cervantes. Com apenas 9 anos e já algum domínio do inglês, fez uma tradução de “O príncipe feliz”, de Oscar Wilde. O primo poeta do pai, Álvaro Lanifur, considerou a tradução perfeita e a publicou no jornal El País. Como o texto vinha assinado por Jorge Borges, imaginaram que pertencia a Jorge Guillermo, que aclarou a confusão e presenteou o filho usando o texto em suas aulas de inglês.

Enquanto o pai escrevia El caudillo, Borges teve outra ideia para um conto sobre um lobisomem. Já naquela época, interessavam ao rapaz os assuntos sobrenaturais. Enviou o escrito à revista La Esfera, muito popular em Madri, mas ele foi rechaçado. No entanto, não demoraria muito para ver um texto seu impresso: em dezembro de 1919, quando passavam o inverno em Sevilha, publicou seu primeiro poema, visivelmente baseado na escrita de Walt Whitman, que se chamava “Himno del mar”. Ele apareceu na revista Grécia, datada de 31 de dezembro. Borges gostava bastante da praia e, depois da cegueira, lamentava muito não poder entrar na água do mar e sentir as ondas em seu corpo ou poder boiar livremente. Tinha medo de deslocar novamente a retina.

A estada de Borges na Espanha foi importante para a escrita e a leitura. Em Madri, conheceria o mestre do movimento ultraísta, Rafael Cansinos Assens, de quem se considerou discípulo até o fim de seus dias. Cansinos era considerado mau escritor, mas era uma figura muito carismática e especial. Tinha uma cultura bem vasta, falava cerca de onze idiomas. Quando descobriu que nos arquivos da Inquisição figurava seu sobrenome, se converteu ao judaísmo, aprendeu o hebreu e fez uma circuncisão. Tinha uma produção curiosa e heterogênea: poesias, romances, contos, ensaios e, no meio, um livro erótico de salmos. Cansinos fez traduções de Goethe, Dostoiévski e de As mil e uma noites diretamente do árabe, só para mencionar algumas de suas qualidades. Além de participar de grupos de poesia e discussão de textos, Borges teve a oportunidade de mergulhar e conhecer melhor através da leitura os escritores espanhóis: o barroquismo de Góngora, o conceitualismo de Quevedo e a originalidade de Cervantes, autores que também virariam referências literárias próprias. Nessa época, ainda era aberto às influências de escritores contemporâneos: conheceu e se interessou por Valle-Inclán (que admirava muito), Juan Ramón Jiménez, Manuel e Antonio Machado, Baroja e Unamuno.

Do período espanhol também resultariam dois livros que, mais tarde, Borges iria rechaçar. Los naipes de tahúr era um apanhado de ensaios literários e políticos típicos de um jovem amante da paz e “liricamente anarquista”. O segundo livro, Los salmos rojos, que reunia vinte poemas em homenagem à Revolução Russa, nunca foi publicado. Mesmo assim, causou problemas para Borges obter o visto quando viajou aos Estados Unidos por ser considerado um “comunista nefasto”. O autor renunciou tão ferozmente aos dois livros que, quando alguém os mencionava, ficava furioso. Seu despertar como escritor aconteceria definitivamente com a volta a Buenos Aires, sua cidade natal.

A cidade que encontrou na sua chegada o assombrou. É claro que Buenos Aires tinha crescido, mas também Borges não era o mesmo menino que vivia na Rua Serrano, cercado de cuidados dos pais e que saía pouquíssimas vezes para ir ao Jardim Zoológico ou passar as férias em Adrogué. Depois de trazer nos olhos as lembranças de tantas cidades europeias, ele voltava com um novo olhar sobre sua própria cidade: Aquilo foi mais do que uma volta ao lar; foi uma redescoberta. Podia ver Buenos Aires de perto e com entusiasmo porque estivera afastado dela por longo tempo. Se nunca tivesse ido ao estrangeiro, duvido que tivesse podido vê-la com essa peculiar mistura de surpresa e afeto daquele momento.

A emoção de rever alguns lugares que amava o fez escrever o primeiro livro, Fervor de Buenos Aires, uma declaração de amor à cidade. Reencontrava a cidade em Palermo, no sul, e em Almagro com suas ruas de pedra, as casinhas baixas com três pátios que deixavam entrever as grades e as parreiras. Deslumbrado, saía depois do jantar para caminhar pelo bairro com o passo tranquilo, só ou em grupo. Manteve esse hábito de caminhadas noturnas por quase quarenta anos; era a sua forma de se inspirar e escrever.

Essa sua primeira incursão literária foi através da poesia, gênero que visitaria várias vezes em sua obra e que retomaria nos últimos livros. Fervor de Buenos Aires foi feito de maneira descompromissada: não houve qualquer correção de provas, fato impensável para Borges.

Mas o tempo era curto, o pai tinha que voltar à Europa para fazer uma nova consulta com o oculista de Genebra. Na pressa, o número de páginas previsto ficou menor do que a quantidade de poemas, por isso, Borges precisou deixar alguns deles para trás. Norah fez uma gravura para a capa, e logo imprimiram trezentos exemplares.

Na época, Borges não pensou em distribuir os livros para formadores de opinião como críticos e livreiros, deu a maioria de presente e inventou uma maneira original de fazer a distribuição: pediu a Alfredo Bianchi, diretor da revista literária Nosotros, para colocar o livro em alguns sobretudos de pessoas que visitavam a redação. O primeiro livro era bastante romântico: registrava os primeiros amores, a história da família e era pleno de metáforas líricas. Apesar de não revelar inteiramente o estilo pelo qual Borges se tornaria conhecido, esse livro, como dizia o autor, tinha os temas sobre os quais se debruçaria em todos os seus outros textos. “Sinto que durante toda a minha vida tenho estado reescrevendo esse único livro.”

Borges não pensou em distribuir os livros para formadores de opinião como críticos e livreiros, deu a maioria de presente e inventou uma maneira original de fazer a distribuição: pediu a Alfredo Bianchi, diretor da revista literária Nosotros, para colocar o livro em alguns sobretudos de pessoas que visitavam a redação

Borges foi forjando, aos poucos, o escritor no qual queria se transformar. Começou pela poesia, mas queria chegar à consistência do conto. Seu palpite se baseava em sua própria experiência como leitor: tinha lido poucos romances e chegado à última página de alguns por puro senso de dever. Entediava-se facilmente com períodos longos e descrições. Por outro lado, lia e relia contos de Stevenson, Kipling, Conrad, Poe e estava sempre folheando uma e outra narrativa de As mil e uma noites. A concisão do conto, o senso de economia e uma formulação de princípio, meio e fim faziam com que o gênero fosse mais inesquecível para ele do que os romances que mais amava como Dom Quixote e Huckleberry Finn.

Borges se entediava facilmente com períodos longos e descrições. Por outro lado, lia e relia contos de Stevenson, Kipling, Conrad, Poe e estava sempre folheando uma e outra narrativa de As mil e uma noites

No entanto, durante alguns anos, Borges pensou que escrever um conto estava acima de suas possibilidades. Seu primeiro experimento no gênero, “O homem da esquina rosada”, foi trabalhado durante seis anos. O autor burilou-o com o cuidado de um poeta: recitava em voz alta todas as frases até encontrar o tom exato. A maneira peculiar como fez esse conto se deve ao fato de que Borges queria registrar com riqueza de detalhes o modo particular de contar histórias de Nicolás Paredes, um grande amigo e jogador profissional do Bairro Norte. Era uma homenagem ao amigo morto, queria encontrar a voz de Nicolás novamente. Como Leonor provavelmente desaprovaria o texto, o autor escreveu-o em segredo.

Apesar de ser uma experiência nova, nesse momento Borges já encontrara uma maneira particular de produzir: “Eu não busco o tema: deixo que ele me persiga, me procure e só então o escrevo. Imaginar um conto é como entrever uma ilha. Vejo as duas pontas, sei o princípio e o fim. O que acontece entre ambos extremos tenho que ir inventando, descobrindo. Engano-me muitas vezes, elimino páginas, ou uma vez que estão feitas me dou conta de que devo movê-las para outro lugar. Todo esse processo me causa prazer.”

O autor acreditava que não possuía uma estética própria, além disso, era contra a divisão de escritores em escolas. Mas, claro, tinha alguns temas de seu interesse a que voltaria várias vezes em seus textos: o tempo, o infinito, os espelhos, os labirintos, as espadas.

Com o passar dos anos, foi incluindo traços biográficos nas obras, traços que, no início, deixavam-se apenas entrever e que depois apareceriam de forma mais aberta, mais pessoal. Dizia que o tempo lhe teria ensinado algumas coisas, como eliminar os argentinismos, hispanismos, arcaísmos e neologismos; buscar palavras mais habituais que floreadas; colocar no relato traços circunstanciais que o leitor exige para organizar o quebra-cabeça das histórias; simular várias incertezas já que a realidade é precisa, mas a memória, não.

Borges dizia que o tempo lhe teria ensinado algumas coisas, como eliminar os argentinismos, hispanismos, arcaísmos e neologismos; buscar palavras mais habituais que floreadas; colocar no relato traços circunstanciais que o leitor exige para organizar o quebra-cabeça das histórias

Principalmente, dizia em seu prólogo ao Elogio da sombra, observar que todas essas pequenas normas não são obrigações, uma vez que o tempo pode modificá-las ou simplesmente aboli-las.

Às vezes, Borges sentia que o seu papel como escritor se deslocava dele como pessoa: pareciam dois homens distintos. A timidez de sua infância e juventude, que era atroz, foi se modificando ao longo da vida a ponto de fazê-lo dar aulas e ditar conferências. A cegueira o ajudava, dava a distância certa que necessitava para expor o seu ponto de vista. As conversas eram mais precisamente monólogos em que deliciava a companhia com uma cultura literária interminável que acessava nos cantos mais escondidos de sua memória. Tinha uma voz fraca e um pouco monótona, vacilante, que começava a recitar um poema aos trancos e barrancos, mas ganhava a firmeza e a força dos antigos bardos. Calculava cada uma de suas palavras em conferência: um parágrafo se encadeava perfeitamente ao outro. E tinha a capacidade de trazer a surpresa para os ouvintes, encontrava sempre uma maneira inédita de abordar os temas que escolhia, que, muitas vezes, eram repetidos. Hermínia Prumana, que foi aluna e amiga do escritor, descreveria muito bem esse Borges orador que surgia diante de uma plateia encantada de maneira rápida e silenciosa.

Uma depois da outra, sem solução de continuidade, como uma chuva fina, persistente e implacável, as frases — respeitosas de uma sintaxe extraordinária — vão se sucedendo apertadas, desnudadas no mais opaco e monocórdio dos tons […].

O homem por trás dessas palavras também parecia cinza com olhos que, sem brilho, alcançavam um auditório para ele invisível. Assim como começava, o espetáculo terminava: sem aviso, sem ponto final, sem grandes despedidas. Mas, por trás da aparente frieza ou distância, estava alguém que amava as palavras, mas que aprendeu a fazer um uso ponderado delas para não impor de forma esnobe sua opinião.

Borges era um labirinto, um homem difícil de penetrar na intimidade. Era capaz de falar abertamente de sua opinião sobre política, mas se recusava a avaliar os trabalhos dos próprios amigos. Era um lorde com educação inglesa, portava-se de maneira impecável próximo às mulheres, mas dizia impropérios e anedotas grotescas quando cercado de homens. Apesar de rodeado de alunos e amigos, sentia uma solidão inconsolável, talvez pela crescente cegueira que o afastava tanto de seus livros queridos e de seu ambiente literário. Em El hacedor, no conto “Borges y yo”, fala da luta interna entre o Borges público e o Borges privado, de como precisava criar essa persona para distanciar-se de suas próprias dificuldades e de que maneira, pouco a pouco, o primeiro Borges foi ocupando o lugar do segundo. Ambos têm os mesmos gostos: os relógios de areia, os mapas, a prosa de Stevenson, o gosto do café, as etimologias. Mas o autor, vaidoso, transforma todas essas alegrias em escrita. A relação entre os dois não é hostil: a literatura do autor justifica o homem.

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O texto acima compõe o livro Ler e escrever no escuro, da doutora em literatura Denise Schittine (Paz & Terra, 461 págs.)

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