* Por Krishnamurti Góes dos Anjos *

O romance Todos nós estaremos bem, do escritor e jornalista carioca Sérgio Tavares, acaba de ser publicado pela Editora Dublinense, de Porto Alegre. Tem como pano de fundo o período compreendido entre os anos de 1982 a 1999, época em que no Brasil deu-se a chamada transição entre o odioso período da ditadura militar (1964-1985) e a dita transição democrática. A obra se propõe a narrar as desventuras e desesperanças de uma pequena família formada no período histórico compreendido, em meio a uma grande turbulência político-social.

Roberto, que se alterna entre protagonista e narrador da trama, é um jovem indiferente a causas políticas e, antenadíssimo em ganhar dinheiro, acaba se tornando diretor de importante agência de comunicação que tem sólidas negociações com empresas ligadas ao regime militar e financiam a repressão institucionalizada, sobretudo nos anos 60/70. Se envolve, ainda em 1966 (portanto apenas dois anos após o golpe militar que depôs o presidente João Goulart em 31 de março de 1964), com a jovem Lúcia, uma comunista convicta que, por sua vez, e com o tempo, acaba se tornando guerrilheira de um grupo contrarrevolucionário, o MR-8, promotor de sequestros e assaltos a bancos, até ser presa, brutalmente torturada e exilada. Dessa insólita união e, após reviravoltas de encontros e desencontros temporais, nasce uma filha, Karla, que acaba por compor o quadro familiar. Basicamente este o enredo com o balizamento temporal necessário para o claro entendimento de uma trama urdida em um período histórico tão pequeno e conturbado.

Ocorre, entretanto, que o aspecto político e o social estão presentes, sim, mas não chegam a ser fatores exclusivos. Ao empreender, paralelamente, estudos de personalidade, o autor recolhe duas correntes de um ficcionismo de introspecção ligado a fatores externos condicionantes e a moldura do meio físico e do momento histórico tenebroso. As duas tendências conjugam-se. Sob este aspecto, a narrativa está mais para um ficcionismo psicossocial do que mero registro histórico. E é então que, graças ao talento do autor, o supra-real da situação de um casal assim, ou no mínimo o insólito de um par desses, se transfigura em absurdo lógico. A força da sugestão acaba predominando como realidade única impondo um pesado fascínio ao leitor.

Vale acrescentar, à guisa de maior conhecimento sobre o autor, que Tavares é um dos críticos mais atentos à produção contemporânea brasileira, editor do site “A nova crítica” e autor de Queda da própria altura, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala, vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura, ambos de contos. Também ganhou o Prêmio Fesp de Literatura e vem também organizando o concurso literário nacional “Máquina de Contos”. Nesse seu primeiro romance, ao propor o mistério de uma situação invulgar em capítulos astutamente enredados de forma a compor um ciclo narrativo completo, segue ao mesmo tempo expondo mistérios das personalidades de suas criaturas. O autor positivamente revela-se narrador consciente dos dramas provocados pela tragédia essencial do ser e pela tragédia da repressão político-social que o violenta, emudece e constrange. A violência “normal” e as violências social, econômica e política, militar e civil, que impõem mordaças e coleiras invisíveis.

Suas criaturas são também vítimas de cruéis contingências da existência. Da união de Roberto e Lúcia nasce a garotinha Karla que padece de uma leucemia. O pai evidencia ser portador de uma tara sexual que é exposta de maneira direta, franca, sem rebuços, de uma realidade que desce a detalhes do grotesco onde o lado diabólico do erotismo – a busca ilegítima do prazer – é fuga ao desespero existencial decorrente também da impotência em relação à doença da filha. Talvez busque cegamente uma competição ‘vitoriosa’ com a morte na fugacidade de orgasmos que busca em relações sexuais com homens desconhecidos em hotéis, em coletivos, em sessões de felação em cinemas e com garotos de programa, tudo escondido sob um manto imenso de mentiras e dissimulações. Cai por terra qualquer sentido ético ou moral. E o próprio personagem pensa quando está prestes a ceder a tais inclinações da volúpia: Dizem que unicamente ao terreno do absurdo pertencem as vontades que contradizem as mais sólidas convicções.

Quanto à Lúcia, o primeiro e único amor da vida de Roberto, da fase em que eram apenas dois jovens ingênuos perplexos ante a brutalidade do mundo, restou apenas outro farrapo humano. A tal ponto desce a degradação moral que ela, que passou por tantas e tantas barbaridades físicas e morais impostas pela repressão, já não distingue nada, a não ser continuar agarrada como um náufrago à sua única boia de salvação: Se Roberto buscava novas formas de excitação, por que, ao invés de reprimi-lo, eu não transferia essa procura para um território onde eu poderia marcar seus passos e acompanhá-lo?. Este pensamento ocorreu-lhe quando de mais um desvio do casal, induzido por ela, e de consequências terríveis. O de passarem a frequentar sessões de suingue. Orgias coletivas, surubas, bacanais!

Resumo da triste ópera: a dor, o sofrimento, e o desespero das personagens permanece no nível da revolta, ou resignação. Incapazes que são, ou se tornaram, de refletirem para acionar dentro de si, mecanismos de reajustes ou alternativas de vida descente e humanamente viáveis. A revolta fundamental, tanto em face do absurdo da vida, quanto em face da repressão institucionalizada em todos os níveis, as incita a buscar estados de paroxismo que redundam em violência, em cegueira ética e moral e num claro sentido de inutilidade da existência, que é inclusive transmitido, por tabela, à adolescentezinha Karla.

Consideramos, entretanto, que a proximidade relativa do arco temporal em que a narrativa finda, réveillon de 1999 ou seja, início do século XXI, é bem próxima do tempo em que o romance foi concebido ou publicado. Agora em 2023. O leitor deve ter em mente que não está assistindo uma época que passou e acabou-se, foi velada e enterrada. Está ainda em plena vigência. Se há uma frase em todo o romance que bem define tal situação, é esta: O Brasil era outro e o mesmo a cada dia. Nosso processo de redemocratização difícil, tortuoso, com avanços e recuos brutais como aconteceu nos últimos quatro anos, segue em meio a uma ambiência mundial dominada pelo dinheiro e pela erotização super desenfreada. Onde o espetáculo tornou-se a forma mais desenvolvida de relação entre as pessoas, porque as relações humanas caminham rumo ao aniquilamento. Estamos todos sós em meio a multidões amorfas, sem rostos e sentimentos, incapazes de resistir às imposições e apelos do esquema da “indústria cultural”, que nos reduz a consumidores de artefatos e imagens incessantemente produzidos. É brutal encruzilhada.

Todos nós estaremos bem é obra que poderíamos configurar, em suma, como grande alegoria de nosso país e nosso tempo. A alegoria é a representação concreta de uma ideia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa. Uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de semelhança. Eis a virtualização do real significado que o autor tão habilmente soube germinar nos misteriosos meandros de suas entrelinhas.

Resta-nos finalmente, e numa perspectiva de síntese, abordar dois argumentos que o livro suscita: a certa altura a personagem Lúcia afirma: Uma vez alguém me disse que o grande desafio da nova geração seria lidar com a liberdade. O da minha certamente é aceitar o fracasso. Lidar com a liberdade. Sobretudo refletir sobre, que é o primeiro grande passo, e não continuarmos a dar cabeçadas confundindo isto com liberdade. Outra questão magistralmente trabalhada no romance, relativa ao medo elementar da vida humana. É fato que a morte acaba por a atingir-nos a todos indistintamente, mas o ponto fulcral, a grande questão é como cada um a recebe, posto que a consciência – que ninguém pode ludibriar –, estará sempre reverberando a dor e o sofrimento que impingimos à vida de nossos semelhantes. E isto é bem pior que a mais trágica das mortes.

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Todos nós estaremos bem, de Sérgio Tavares (editora Dublinense, 192 páginas)

Avaliação: Ótimo

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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il crime dei Caminho Novo, Gato de telhado, Um novo século, entre outros. Participou de coletâneas e antologias. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O touro do rebanho – obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.

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Na imagem ilustrativa, detalhe da capa do livro. 

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