*Por Nilma Lacerda*

A literatura brasileira conta com um extraordinário “Cavador do Infinito”, e a ele se sucederam vários outros que, com pá e palavra, dizem das ânsias humanas. O humano é infinito próximo, íntimo, sempre à mão, impenetrável por natureza. Todavia, escava-se o humano, com mais ou menos sucesso, nos espaços fluidos ou densos. Uns mostram-se mais propensos a isso que outros, é certo, como os faróis, que têm presença forte no imaginário e boa exploração na literatura.

Depois de Rumo ao farol, nenhuma leitora vai se aproximar de construção semelhante sem experimentar a força da obra de Virginia Woolf, em vertigem pelas correntes do tempo. Outra vertigem poderá vir do contato com o depoimento de Anita Malfatti sobre como foi levada por seu professor de pintura num barco, em mar agitado, até a proximidade de um farol ou de uns rochedos, talvez (falta-me agora o livro de Mário da Silva Brito, com o depoimento da artista), para ficar claro que sem coragem não se pinta. Fiquemos por aí, para acolher “O casal no farol”, conto de Hugo Almeida em Quando não estávamos distraídos.

O livro me chega pelo correio, uma coletânea que, sem falhar ao gênero, apresenta oscilações quanto à qualidade dos textos. Ressonâncias do contemporâneo, presença de vozes ancestrais, o lugar dos afetos, a inauguração da infância e jogos de intertextualidade – por aí vão as escolhas temáticas. Tenho acompanhado a obra de Hugo Almeida e me interesso particularmente por suas histórias de compassos e descompassos do amor.

Em recorte mais que econômico, suplementado por bom manejo de recursos estilísticos, a narrativa apresenta um casal que vive num farol. Ele é o responsável pela manutenção do equipamento, ela, uma companheira ocasional. Tensão e distensão percorrem o texto, estruturado em polaridades, abrindo e fechando como fole de um acordeão. Nuvem e terra, passado e presente, alimento e lixo, equilíbrio e ruptura opõem-se, mas não se dissociam, causando uma estranha sensação de fusão, tal qual os produtos “dois em um” – nem detergente apenas, não só perfume, mas um misto de ambos. Nas prateleiras de supermercado, o afã de atenuar a fadiga de viver.

As epígrafes da narrativa – Osman Lins e Drummond – anunciam o movimento duplo, ir e voltar, ultrapassar e caber. Ter a vida na nuvem, mas lidar na terra com o que é vital, na existência que se multiplica em acontecido e fabricado, um nome e outro, um sentido e outro:  O que é isso? Panela, está louca? Não; isso aqui. Tampa. Esse negócio de pegar que não esquenta, pô. Ah…baquelite. Conversa de cozinha.  

As falas se imbricam, o corte é por conta de quem lê, no acompanhamento do diálogo, facilmente reconhecível. Essa imbricação confere, da mesma forma que o detergente perfumado, a sensação de dois em um. A alternância ou duplicidade dos nomes próprios é igual reforço a essa vantagem do mundo da mercadoria. Bárbara, Nancy, Sóstrato, Sós, Alex, Alex Baquelite são disponibilidades para a versão escolhida. O nome de berço, esse, abandonado. As identidades são líquidas, não se nasce mais para sempre. Para nossas personagens, uma verdade oportuna. Tudo o que é, é também outra coisa. Ele, o narrador, com um passado escondido em nuvem, ela, uma mulher sem história precedente, ora maré cheia, ora sombra fechada, doída, noites sem lua nem estrelas. […] Noite em silêncio. Manhã de sol, maré calma, acorda outra. Vem me visitar cedinho, alegre, sorridente […] Vamos à prainha do Ó. Na volta, recolhe pets, porcarias largadas por navios, frutos do mar como diz.

Os extremos marcam a narrativa, ala norte ou ala sul, conforme o clima entre eles. A Terra, redonda ou plana, conforme o clima lá fora. Dá pra ver a África daqui? Quando a Terra era redonda, não dava. Agora que é plana, dá – rimos juntos, colados –, mas só com telescópio.

O farol em equilíbrio, as pessoas em rota precária. Viver num farol, junto ao mar e comer peixe enlatado. A vida parece ser assim. A leitora às vezes se assusta, mas só enquanto está do lado de fora. Ao começar a escavar, ela também,

sobe aos mundos mais imponderáveis,

Cava nas fundas eras insondáveis

e

se perde nas distâncias…

ALMEIDA, Hugo. O casal do farol. In: Quando não estávamos distraídos. Vários autores. São Paulo: Editora Sinete, Acontece nos Livros, 2023.   

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