* Por Andreas Chamorro *

Nascemos sem um porquê, ainda que haja o amor, o carinho e a atenção, praxes na educação de uma criança, nossa ligação com aqueles que nos criam torna-se, hora ou outra, frágil e insuficiente.

No caso de Fábio, protagonista de Desemprego e outras heresias, de Bruno Inácio, esse porquê existencialista é mais difuso. Não que não tivera pais e irmão, pois tivera, cresceu em um lar até que comum. A questão é que a mãe o criou distanciada, de forma fria: dizia ele ter sido trazido pelo diabo. O pai parecia não existir, seu olhar era sempre o de alguém que não identifica. Seu irmão perguntou uma vez por que depois que Fábio nasceu tudo ficou pior.

Cresceu em meio a uma tontura referencial. Buscou na música, no cinema, nos livros, mas isso só o deixou mais estrangeiro. Buscou em outras fontes, mesmo que tenha nascido com um claro defeito de conexão: tentou se conectar religiosamente com a figura de Cristo pendurada na parede, porém teve dó, “diabolicamente” o ofereceu comida; noutro momento, ganhou do pai uma canequinha azul de plástico, mas não se conectou, mesmo que fosse um presente; quando tentou se conectar com o mundo através dos estudos só encontrou ecos. Nada no mundo o explicava o porquê de sentir-se estranho dentro da própria família.

Por volta dos quarenta anos, Fábio está morando em São Paulo. Desempregado há meses, tem como ocupação central o envio de currículos. Vive uma rotina pessimista, mas tudo sai do lugar quando recebe um pacote enviado por seu irmão. Três itens, como cápsulas do tempo. O vaso inteiro que substituiu o que ele quebrara, agora devolvido. A caneca azul de plástico, intacta. E o quadro com o Cristo que o acompanha imageticamente desde a infância.

O vaso vai para a estante, a caneca para o lixo e o quadro para a parede, e é quando “Ao ajeitar a imagem no prego pela décima vez, um ruído desperta minha curiosidade. Quando inclino o quadro, há um movimento dentro dele.”

“Escritos apócrifos”, ele diz. Um envelope intitulado Anotações sobre Fábio. A Verdade, escrita à mão, por sua própria mãe.

Desta maneira se desenrola o livro de Bruno Inácio, publicado pela Sabiá Livros. Tive a oportunidade de conhecer sua literatura ao editar a coletânea de contos, “Desprazeres existenciais em colapso”, para a editora Patuá e qual não foi minha curiosidade ao saber que um texto seu de mais fôlego chegava em minhas mãos. Conto longo ou novela curta, “Desemprego e outras heresias” não dispensa a densidade característica da obra deste autor por ter poucas páginas ou por ser escrito em palavras condensadas. O livro encapsula um inferno existencial e tamanha é a complicação revelada na parte Anotações sobre Fábio que faz este texto pouco esgotável.

O tema existencial surge em medida tencionada neste trabalho de Inácio, a meu ver, levada quase a uma impossibilidade de explicação. A própria linguagem do texto parece querer se esticar a ponto de tocar o intocável: é uma narrativa elástica, tensão e distensão. Cápsula. Aliás, suspeito ser cápsula (e suas variações) uma boa palavra-chave para este livro. Sua estrutura, enredo, ambiente, personagem central e tempo são aglutinados em um só ponto, não à toa que o quadro de Cristo serve como boa metáfora a Fábio – o segredo estava o tempo todo dentro dele.

E após revelada a heresia, quando aparentemente tudo faz sentido, o livro se despede com um epílogo também encapsulado: Fábio parece voltar no tempo, ao fazer um lanche de madrugada passa pela sala, onde está pendurado o Cristo e coloca bolachas dentro de uma vasilha como oferecimento, “ao lado do quadro”. É a cena de ignição vivida na infância, é a velha busca referencial, como se a revelação não tivesse mudado muita coisa, ainda que balançado pelo segredo, afinal dormiu sem comer depois de ler o início das anotações. O ponto B depois desse ponto A não será revelado mas legado ao leitor. O autor presenteia a quem ler seu texto com uma ruminação existencial. Dentro do encapsulamento de um personagem mas que ressoa em nós.

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Andreas Chamorro nasceu em 1994. É escritor, editor e autodidata. Enquanto escritor, publicou as coletâneas de contos Divindades solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Patuá, 2023). Tem textos publicados em antologias, como Zarpadas (Abarca Editorial, 2023) e em revistas digitais. Vive na zona sul de São Paulo.

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