* Por Fernando Chagas Duarte *

Ronaldo Cagiano, advogado, poeta, escritor da consciência e da perplexidade. Encontramo-lo energicamente instalado entre a dissecação torrencial de um mundo em convulsão e uma infinita ‘Cartografia do abismo’. Natural de Cataguases (Minas Gerais, Brasil), residiu em Brasília onde se formou em Direito e desenvolveu actividade profissional no sector bancário, antes de se mudar, primeiro para São Paulo, depois para Lisboa. É autor maior de mais de duas dezenas de obras onde alterna o caudal prodigioso da sua escrita, entre a inspiração poética, o texto ficcional e a crítica literária: são onze livros de poesia e muitas participações em antologias mundo fora, nove os livros de contos e novela, dos quais alguns compostos a quatro mãos; ainda a crítica, a resenha e a literatura infanto-juvenil num leque multifacetado e luminoso de produção criativa. Foi premiado no Prémio Jabuti de Literatura de 2016 com o livro de contos “Eles não moram mais aqui” (Editora Patuá, 2015).

De acordo com as suas próprias palavras, enquanto Autor, afirmou-se primeiro enquanto poeta, ganhando nome e reconhecimento com obras consecutivas, mas será o prémio que recebe em 2001 no concurso da Secretaria da Cultura para “Dezembro indigesto” que irá constituir-se como uma espécie de catapulta para a literatura ficcional, o conto.

Cagiano demonstra, ao longo de toda a sua obra, uma conexão muito próxima com as intensas leituras realizadas, uma relação empática, multivariada, com os seus autores de referência, com quem estabelece diálogos duradouros – que estão muito além do flirt inerente às frequentes epígrafes. Intertextual e mitológico, onírico em certa medida, assume um trânsito crítico, do quotidiano basilar da existência para o profundo texto literário.

Uma leitura elucidativa, a lembrar um certo Maiakovsky, encontramo-la em “Conversa com Murilo Mendes”, que se acompanha com a epígrafe, ‘depois de ler Evandro Affonso Ferreira ao som de Billie Holiday’:

A poesia está em pânico, Murilo,/ diante desse mundo/ e seu quartel de demónios.

Penso em Almodôvar/ enquanto minhas mãos fatigadas/ enchem uma bacia de estercos/ para adubar novas dúvidas.

Penso em Kiarostami/ enquanto Deus não se envergonha/ de suas núpcias com o silêncio (…)

E eu penso em Ginsberg,/ enquanto me sinto nômade/ nesse mar absoluto/ de tristezas renovadas (…)

Sim, Murilo,/ estamos vestidos de alfabetos/ mas não descobrimos nossas culpas/ não conseguimos nomear nossos delitos

a vida passa por nós,/ como o rio Paraibuna que/ atravessa Juiz de Fora/ sem olhar para os lados (…)

O amor/ repatriado tantas vezes/ não nos salvou dos esgotos/ nem cauterizou nossos desgostos. (…)

Contemplo a cidade (uma estufa, uma salmoura):/ e sua falta de rumo nas coisas

observo os homens:/ estão sisudos, inertes, detidos, incomunicáveis/ picados pela mosca da indiferença

Olho dentro dos ônibus, táxis, automóveis, metrô:/ carruagens de manequins

As ruas e suas vísceras/ As avenidas e seus coágulos/ As praças e suas próteses

O asfalto obturado/ expõe os delgados caminhos da solidão/ nessa ilha venenosa e incurável/ em que escre/ vivemos.

Se há em Cagiano, digamos que por diagonais persistentes, um influxo narrativo caudaloso e um tom discursivo na sua poesia, já na narrativa persegue uma evidente entoação poética. Uma voz onde, rejeitando qualquer lirismo romântico e floreados semânticos, mais remete para uma poética corpórea tão próxima do real quanto do sentimento – numa eterna persecução do rigor e compreensão da sua perplexidade.

A aproximação à realidade é aquilo que convoca o poeta, o escritor, lhe entrega a arma e aperta o gatilho: a ele, cabe-lhe a redenção pela palavra.

Este Autor é um exímio trabalhador da palavra, dono de um labor estético superior, exacerbado, em certa medida, pelo concreto. Para quem a palavra inalcançável não existe. Generoso criador, porém sem dó do leitor – não há que o poupar – naquilo que não é, nunca foi, um contra-senso literário. Cagiano é Autor maior e distinto.

Uma faceta niilista parece perseguir-lhe o tom e a voz, antes de estabelecer o percurso. Será esta uma visão puramente reducionista, será ele um céptico face à demolição existencial, face à negação do mundo perceptível dos sentidos? Creio que não.

Antes de tudo, Cagiano pretende contrariar a ‘ditadura do sublime’, esse mainstream que se aproxima de um saber litúrgico, aquele que se pretende sobrepôr à consciência do social e do colectivo, ao padronizar o desigual, mitigando-o. E acusa o homem moderno, ao se tornar cada vez mais uma mera individualidade dirigida pelo bem-parecer – tão próprio da mediocridade –, afectado pela etiqueta e pelo consumo e sintonizado com as emergências do mercado – vulgo capcioso de capitalismo. Aquele homem “novo”, entidade egoísta, fechando-se como ilha isolada – muito pouco como arquipélago – perdendo assim o senso primordial da humanidade.

Ao observar práticas e costumes, no que têm de mais imparcial no seu exacto contexto, a observação clínica que faz da vida transmuta-se numa afirmação contundente das acções sociais. Para o Autor, a literatura, universo onde tudo se torna possível, depende de uma observação atenta e crítica e torna-se na oposição, na última resistência contra a falsificação – ou normalização – da avara banalidade.

Ao tentar identificar-lhe uma temática predominante, tarefa sempre difícil, eleger-se-iam em Cagiano aquelas que tomam conta da sua visão pragmática e amiudada do mundo, numa geografia plena de afectos, voragens e revoltas.

Tomando como nossas as suas palavras, afinal “parece que se está sempre a escrever o mesmo livro, seja em prosa, seja na poesia”: aquela construção que copula na consciência e no assombro, que é capaz de tomar conta do olhar, a morte sobre a vida, a que reverbera a passagem do tempo, a irreversibilidade do que se vive, as inquietações metafísicas, o olhar perturbado perante a realidade crua (até brutal) de um mundo que nos absorve e consome a todos – enfim, mais a uns que outros. Porque há um mundo oprimido pela circunstância e pelas opções dos poderosos, que é causa e efeito do sofrimento dos povos. Da pessoa, da sociedade.

Nos seus textos plasma-se um pensamento profundo sobre o que existe, “afrontando os muros, a escuridão, as interdições e os acessos interrompidos”. Descobre-se um mundo distópico, surreal, que se considera a si próprio actual ou inovador. Encontra-se, nessas palavras, a decapagem do que é material ou concreto, do naufrágio humano, a denúncia, a ironia, o grito, o carinho pela vida e o Outro. Nada ali é prosaico. O seu labor, precioso, minucioso, para quem a literatura se constrói enquanto linguagem, onde literatura é linguagem, alaga-se e amplia-se na visão do real, porque é da realidade que faz a captura, os cenários, os sentimentos, as apreensões por tudo aquilo que é incómodo.

Revendo a avaliação do poeta e escritor André di Bernardi para “Eles não moram mais aqui”, onde aliás encontramos pungentes referências a grandes nomes da literatura, de James Joyce a Rilke, de Clarice Lispector a Marçal Aquino, confirma-se pelo crítico que “o texto de Cagiano não é descanso, não é placidez, não é um passeio de domingo em jardins floridos. A sua beleza está, justamente, no seu estilo bruto, na dissecação de dores e tormentas. (…) Cagiano desabrocha a humanidade extrema das personagens e exibe o que há na vida de mais frágil e escuro”.

Passemos um curto olhar, passagem furtiva e fugaz, pelo seu conto ‘Insularidade’:

(…) Eu não queria conversar com ninguém. Desde a manhã, quando a cena da copeira pulando do vigésimo oitavo andar das torres gêmeas do edifício do Congresso inquinou o meu dia com sua carga de espanto e horror, eu não conseguia ver nem ouvir ninguém. Nunca vira a morte tão de perto. Nunca a pequenez humana me fora revelada com tamanha indigência psicológica e espiritual. Eu estava entre os próprios escombros da humanidade inteira. A morte ali, com todos os seus tentáculos. O seu rosto cruel e inamovível. Essa mesma que eu tentava compreender num livro, distante do indesejável fim que a todos sucede: muitos, iguais em sua derradeira hora, seguindo a ordem natural das coisas; outros, realizando a ruptura brutal e sistemática, porque não resta outra coisa a não ser pôr fim à existência. A morte, impassível, incontornável, a morte mesmo, física, imoral, intransponível, esta nunca tinha soado com tamanha inclemência quanto a que vi ainda cedo, ainda me preparava para mais um dia de trabalho, diante de um corpo recolhido do espelho d’água da Praça dos Três Poderes. Estirado ao chão, coberto por um lençol parco na burocrática espera da perícia policial. Meus olhos não tiveram tempo de dizer um oh! de comiseração, de estarrecimento diante da brutalidade insinuada contra si mesma e levada às últimas consequências. E, no fim do dia, o sujeito ao meu lado, querendo arrancar-me, a qualquer custo, do meu arrebatamento, da minha estupefação, da minha leitura, porque aos seus olhos a minha completa insubordinação ao que me circundava, imagino que isso estava no seu íntimo, a minha indiferença era assassina, como era a de tantos quantos levaram à morte aquela mulher de quarenta anos, separada, mãe de três filhos, que morava numa biboca qualquer e trabalhava feito burro de carga para sustentar os quantos ela pôs no mundo.

Num outro aportar à sua poesia, Adalberto Alves atribui-lhe, no prefácio ao mais recente “Arsenal de Vertigens”, laivos de uma influência pagã – alcançada pela intensa leitura dos clássicos – onde “há algo ‘heróico’ e, por vezes, uma postura quase estóica no seu confronto militante com o mundo criminoso da mediocridade, da hipocrisia, da violência e da ganância(…)”. Para lá das alusões homéricas constantes, aponta na imagem poética do Autor mais que reflexos ou a paisagem: o rio, o rio como um mundo e como memória, “que sendo belos, podem envolver tudo de lama, pois ocultam sempre uma ameaça (…) quando se enfurecem”. Que ultrapassa em muito o rio da minha aldeia de Caeiro, tornando-se conteúdo e título em “Os rios de mim”.

Não ignoremos pois esta mundividência, como no inevitável aforismo de Brecht,

Do rio que tudo arrasta se/ diz que é violento/ Mas ninguém diz violentas as/ margens que o comprimem.

Quem lê Cagiano percebe-o com facilidade: a poesia, a literatura, “ é um mergulho no espanto”. Afinal, diz o autor, “escreve-se para ultrapassar, para vencer, os fantasmas, as obsessões, os temas que nos incomodam”, “uma poesia de consciência, uma escritura de combate; sem sombras nem rodeios”. Tão simples, e tanto em simultâneo.

Porque há uma catarse, reciclável em cada livro, proporcionada pela renovação do olhar. No fundo somam-se as preocupações – que não são novas – gerando inquietações que se reflectem na palavra, no texto, na obra. A doçura também está ali, esparsa e discreta, à espreita pela sombra, à espera de se revelar a quem a consiga compreender. E absorver. Não existe unissonância no seu mundo. Cagiano move-se particularmente bem por entre os meandros e a força incrível do paradoxo.

O crítico e ensaísta Krishnamurti Góes dos Anjos, ao descrever a produção de Ronaldo Cagiano, afirma, com ênfase, que ele é “seguramente, um dos escritores brasileiros de maior consciência artesanal, especialista que é em casar linguagem”, e vida, geografia, intimidade, história e biografia, “explorando radicalmente os fundamentos da realidade, não só para desmascará-los, torná-los visíveis, mas também procurando despertar e estimular a inteligência crítica do leitor”.

Não poderia concordar mais. Há em Cagiano, na sua poesia e na sua narrativa, uma irreversibilidade de quem vive, observa e exige. Disse-o ele, numa entrevista para o jornal Rascunho, no que me faz lembrar a veemência límpida de Clarice Lispector: enquanto Autor, “escrevo para o que ainda não é claro, sobre o que me vai libertar e não aprisionar”.

Apraz-me esta construção de minúcia, inspiradora, combativa, tão própria quanto libertadora. Gosto da sua construção textual, a narrativa simbiótica, afiada, plena de ética insurgente. Gosto da sua poesia, telúrica, como um caso único, a repetir-se entre a insurreição.

Lisboa, Janeiro-Setembro 2023

*

Fernando Chagas Duarte (n.1964, Lisboa), geógrafo, escritor, poeta, fotógrafo amador, viajante do mundo e das particularidades. Autor de seis livros de poesia, publicados entre 2014 e 2023 e do romance No fim de um lugar (Ed. Kotter, 2022), participou em cerca de duas dezenas de colectâneas poéticas e revistas literárias de vários países.

 

 

 

 

 

Livros publicados

Palavra Engajada (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1989)

Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990)

Exílio (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990)

Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994)

O Prazer da Leitura (coletânea de contos e crônicas, Ed. Thesausus, Brasília1997)

Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997)

Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999)

Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000) – em parceria com Joilson Portocalvo

Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001)

Concerto para arranha-céus (contos, LGE, Brasília, 2004)

Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006)

O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) – Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012

Moenda de silêncios (novela), Dobra Ideias, SP, 2012) – em parceria com Whisner Fraga

Eles não moram mais aqui (contos, Editora Patuá 2015) – Prémio Jabuti, 2016

Observatório do caos (poesia, Editora Patuá, SP, 2016)

Diolindas (novela, Ed. Penalux, SP, 2017) –  em parceria com Eltânia André

Eles não moram mais aqui (contos, Editora Gato Bravo, Lisboa, Portugal, 2018)

Os rios de mim (poesia, Editora Urutau, Pontevedra, Espanha, 2018)

O mundo sem explicação (poesia, Editora Coisas de Ler, Lisboa, Portugal, 2019)

Cartografia do abismo (poesia, Editora Laranja Original, São Paulo, 2020)

Horizonte de espantos (contos, Editora Urutau, Pontevedra, Espanha, 2022)

Arsenal de vertigens (poesia, Edições Húmus, Portugal, 2022)

 

 

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