* Por Xavier Bartaburu * 

O reverendo Cristiano anda meio incomodado com Jesus. Não com o filho de Deus em si, mas com a forma como ele tem dado as caras por aí nos últimos 2 mil anos, inclusive dentro da Igreja da Comunidade Metropolitana: um Cristo branco, loirinho, mais europeu do que semita, nem de longe parecido com a maior fatia do contingente populacional brasileiro. Enquanto pensa se muda ou não essa representação, Cristiano se regozija com a pequena subversão aplicada ao Jesus Misericordioso, aquele que uma freira polonesa viu irradiar raios azuis e cor-de-rosa. “Achamos isso muito heteronormativo e resolvemos mudar.” Do coração de Cristo agora se propaga um arco-íris bafônico, impresso em santinhos em cujo verso consta um Credo importado da Indonésia, onde se leem coisas como “Creio nos direitos humanos” e “Creio em Jesus Cristo, que veio para nos libertar de toda opressão”.

E isso não é nada. No máximo, uma traquinagem. Subversivo mesmo é botar no púlpito gays, lésbicas e travestis. É deixar um pastor mudo subir no altar para celebrar um culto inteiro em Libras (com tradução simultânea para o português). É não obrigar ninguém a se confessar antes de comungar. É não se meter na vida sexual de fiel nenhum (pelo contrário: aqui se diz que o corpo é um instrumento sagrado). Subversivo mesmo, escandaloso até, é pregar a ideia de que Jesus é a versão transgênera de Deus, e ainda por cima usar as Escrituras para justificar tal tese “A Bíblia diz que o verbo divino se fez carne e habitou entre nós”, explica o reverendo Cristiano. “Nós gostamos de parafrasear isso e dizer que Deus se travestiu de carne. Ele quis sair do armário da onipotência e assumir uma nova identidade. Quis assumir a dor e a delícia de ser humano.”

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A Igreja da Comunidade Metropolitana não é uma igreja gay, nem trans, nem sequer inclusiva ela é. “Somos uma igreja afirmativa”, define Cristiano Valério, um dos fundadores da ICM em São Paulo. A inclusão, ele alega, supõe uma ideia de poder, uma arrogância disfarçada que, nas entrelinhas, mantém os excluídos e as minorias no estrato inferior ao qual já pertencem, um pouco abaixo dos cristãos de bem. Algo na linha “Deus é tão bonzinho que aceita até as bichas, os sapatões e as travas”, como ilustra, de maneira bem didática, o reverendo.

Daí que a ICM seja conhecida pelo mundo como a “igreja dos direitos humanos”, com tudo de libertário, esquerdista, iconoclasta ou qualquer outra coisa que cause horror aos carolas que o termo possa sugerir. Não poderia, portanto, ter nascido em outra época senão nos anos 60, precisamente em 1968, quando o pastor batista Troy Perry fundou o primeiro templo da ICM em Los Angeles, com 12 participantes. O homem não quis perder tempo: no ano seguinte, já celebrava a primeira cerimônia pública de casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Hoje a ICM congrega 60 mil membros em mais de 40 países, inclusive lugares que gostam de botar a turma LGBT na prisão, como Nigéria, Quênia e Malásia. No Brasil existem 14 comunidades; a mais antiga é a do Rio de Janeiro, criada em 2003.

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Em São Paulo, os primeiros encontros aconteceram em 2006, na casa de Cristiano Valério, ex-católico, ex-testemunha de Jeová, ex-adventista, ex-batista e, naquele momento, um aspirante a pastor da ICM. Eram 13 membros, todos gays, exceto um casal hétero, vizinhos de Cristiano. Depois os cultos se mudaram para o Príncipe Hotel, na São João, e, em 2010, a igreja já tinha sede com placa na porta: uma sobreloja quase colada à Igreja de Santa Cecília, hoje mantida pelo valor de 4.000 reais mensais – cada centavo pago por meio de doações. Se sobrar, vai para o caixa. Ninguém na ICM recebe salário, nem mesmo o reverendo (que trabalha com RH quando não está no púlpito). Todo o mundo é voluntário. E todo o mundo, se quiser, pode virar diácono(isa), pastor(a) ou reverendo(a). Seja L, G, B, T ou qualquer outra letra que inventarem.

A natureza afirmativa da ICM acaba atraindo, evidentemente, mais homossexuais do que héteros, embora estes também apareçam nos cultos – em geral vítimas de preconceito em outras igrejas, como gente divorciada e/ou vivendo um segundo casamento. O rebanho de proscritos inclui também pessoas transgêneras (poucas, ainda) e um punhado de deficientes auditivos, especialmente entusiasmados na hora dos cânticos, quando transformam o léxico de Libras em uma vibrante coreografia de dedos e mãos.

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O culto, na forma, até que é bem comportado. Tem os cânticos de louvor – com as letras projetadas em PowerPoint –, tem leitura do Evangelho, comunhão, homilia e pai-nosso, tudo com tradução simultânea em Libras. Tem até réplicas de vitrais no fundo do altar. O que faz da ICM uma igreja diferente das evangélicas, todas elas, é quem está no púlpito. Se não é o reverendo Cristiano, gay, será uma pastora lésbica. Ou o diácono Fábio Sorriso, deficiente auditivo. Se não for nenhum destes, será a pastora, muito em breve reverenda, Alexya Salvador.

 

Alexya nasceu Alexander, menino de Mairiporã criado em berço católico, frequentador compulsivo de missas desde os 7 anos, porque “lá era o único lugar onde eu não apanhava”. Alexander foi catequista na adolescência, seminarista aos 24 anos e atormentado durante quase toda a juventude, dividido entre o amor a Deus e o prazer dos homens. Saiu do armário quando saiu do seminário. O pai falou: “Se você for veado, eu te aceito. Mas se você se vestir de mulher, eu te mato”.

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Alexander renasceu Alexya em 2011. Tinha 31 anos e um marido, Roberto, com quem se casara quatro meses antes pela ICM, vestindo “fraque com cauda perolada e coroa”. Isso foi em junho, quando Alexya ainda era Alexander. Em agosto, tornou-se diácono. Em outubro, transicionou: “A partir de hoje, é diaconisa Alexya”, chegou dizendo na igreja. Só Cristiano sabia. E Roberto, o marido, claro, que acompanhou de perto todo o processo até finalmente aceitar que, dali em diante, teria uma esposa. A família soube depois e, por fim, o pai. Seu Amadeu estava chupando laranja quando Alexya chegou de cabelão, vestido e salto alto. Ela disse: “Não sei o que você está vendo aqui, mas essa sou eu. A partir de hoje, é Alexya”. O pai pegou o carro e sumiu, furioso. Uma semana depois, veio pedir perdão, chorando. “Faz um ano que ele começou a me chamar no feminino.”

E Seu Amadeu, quem diria, virou avô. Em 2015, Alexya obteve a guarda de Gabriel, menino com necessidades especiais (“Mas você vai querer adotar logo o doidinho?”, disseram). Virou a primeira trans do país a conquistar o direito de adoção e a ter licença-maternidade (Alexya é professora do ensino fundamental). Dois anos depois, a insólita família Salvador ganhou mais um membro: Ana, menina transgênera. Foi, também, a primeira vez no país que uma mulher trans adotou uma criança trans. E, no meio disso tudo, Alexya, incorrigivelmente afeita à vanguarda e ao babado, se tornou a primeira pastora trans do Brasil.

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E não basta subir no altar usando salto e maquiagem. A teologia subversiva da ICM implica desafiar a cristandade hegemônica em cada versículo da Bíblia que permita uma leitura de preconceito, intolerância ou exclusão. “Faz 2 mil anos que o cristianismo não vem entendendo a Bíblia”, provoca Alexya. “É um livro metafórico. Muito do que está lá tinha um propósito que servia ao contexto da época. A Bíblia não está errada; o que está errado é o olho da pessoa.” A título de esclarecimento, já existe um Comentário Queer da Bíblia, escrito pela teóloga e pastora da ICM Mona West, em que esquadrinha as Escrituras livro por livro, tratando de oferecer uma nova (novíssima) interpretação da palavra de Deus. Suas páginas, por exemplo, veem Adão como a gênese do patriarcalismo e da opressão sobre a mulher, ressaltam a possibilidade de que Davi e Jônatas tenham tido um romance e lembram, muito apropriadamente, que em nenhum dos quatro Evangelhos Jesus condena a homossexualidade.

 

Transgênera, transviada e transgressora, a Igreja da Comunidade Metropolitana é hoje o furo na batina do padre, a mosca boiando no cálice de vinho, a traveca no altar. Radicalismo religioso não é se explodir em nome de Alá; é afirmar que “Deus é diversidade”, como prega o reverendo Cristiano. “Deus é um mosaico onde cabem todas as cores do mundo. Se nós somos feitos à imagem e semelhança de Deus, isso implica que Deus é preto, pobre e travesti”. “Deus é igual a você, viu, filha?”, diz Alexya quando põe Ana para dormir, lembrando que “basta ser humano para Deus estar dentro”. “Esse Deus que está aí é propriedade da Igreja Católica”, argumenta a pastora. “Deus não está no trono. Está nas favelas, nas vielas. Deus está no outro, e a verdadeira religião acontece quando eu me entrego ao outro. A verdadeira hermenêutica se dá no abraço.” Abraçando quem quer que seja, que fique claro. Sem melindres, nojinho ou preconceito. “Veja Jesus”, lembra Alexya. “Ele não quis ficar no meio dos limpinhos. Ele só ficava com quem não prestava. E com quanto mais pessoas que não prestam eu estiver, eu estarei com Jesus.” E quando Jesus voltar? “Ele podia voltar travesti, né? Podia voltar montado no salto, ia ser tudo de bom. E dizendo: ‘Vocês não entenderam nada do que eu falei.’”

Por ora será Alexya quem voltará a Mairiporã, desta vez como reverenda. O processo de ordenação começado há cinco anos está perto do fim. Então, as trombetas da Cantareira soarão e uma maldição será quebrada. Conta a lenda que um padre, certa vez pego com uma mulher e expulso da cidade, foi embora rogando a praga de que Mairiporã jamais teria progresso enquanto um filho da terra não fosse ordenado ali. De fato, desde então a cidade nunca teve um pároco nascido lá – e, curiosamente, nunca atraiu tantas indústrias quanto os municípios vizinhos (seu PIB ainda é um dos mais baixos da Grande São Paulo). Pois agora o primeiro filho da terra ordenado será uma filha, Alexya. “Faço questão de me ordenar no ginásio de Mairiporã. Vou botar uma casula trans, com paetês e tudo mais. E vou quebrar essa maldição, em nome da Deusa.” E isso, mais uma vez, não é nada. Alexya quer mesmo é chegar ao Vaticano. “O papa já sabe da minha existência, bebê. Escreva: eu vou ser recebida pelo papa. Ele já recebeu os gays e as lésbicas. Só falta a trava.”

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O conto acima, assim como as fotos que o ilustram, fazem parte de Sacracidade: Expressões da fé na metrópole, do escritor e jornalista Xavier Bartaburu. O livro faz uma cartografia da fé no centro de São Paulo. Lançando mão de ferramentas do jornalismo literário e da fotografia documental, Bartaburu percorreu igrejas, templos, mesquitas, sinagogas e terreiros para registrar as muitas formas com que os habitantes da maior cidade do Brasil se conectam com o divino.

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Sacracidade: Expressões da fé na metrópole (Origem editora, 224 págs.), de Xavier Bartaburu

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