* Por Daniel Manzoni de Almeida *

“(…) Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar

(…)

Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar (…)”

[Ednardo, 1974. “Pavão mysteriozo”]

I

Já passava das seis  da tarde de um domingo diferente dos outros naquele ano. O Brasil todo estava parado e colado na frente da televisão sintonizado no  programa do Faustão que não parava de falar. Há meses, em 1998, que o cotidiano do brasileiro se resumia a falar  fosse no  mercadinho da esquina, na feira, na hora do cafezinho, no salão de beleza, em todo lugar. O grande tema nacional nos últimos meses era o concurso da nova “loira do É o Tchan”. Naquele início de noite, saberíamos quais das duas candidatas seria a nova musa loira do grupo de axé de maior sucesso na história do país. A expectativa era grande. A sensação era de eleição presidencial. A nova integrante do grupo não apenas mostraria seu talento como dançarina, mas significava um novo padrão de beleza que se espalharia pelo país. Algum tempo atrás, esse mesmo concurso havia sido feito para escolher a nova “morena do É o Tchan!” que, ao final, elegeu a mineira de olhos verdes Scheila Carvalho  desbancando a morena de cabelos encaracolados Roseane Pinheiros. O padrão de beleza de Carvalho foi tomado como o da mulher brasileira então. Naquele dia teríamos uma nova forma de beleza que iria substituir o furacão de curvas enormes e exuberantes que Carla Perez, a antiga dona do posto de loira do ‘É o Tchan’, havia imposto a sociedade. A audiência do programa mostrou que o país estava parado e hipnotizado por essa onda das dançarinas do axé. Uma delas se tornaria a “rainha do carnaval” no ano seguinte. Além de integrar, à época, o maior grupo de axé music, teria contratos para posar nua em revistas, seria disputadíssima como destaque e rainha de bateria por várias escolas de samba. A vitória de Sheila Mello foi esmagadora sobre a concorrente Daniela. Sheila emocionada, representava o sonho de muitas meninas naquele momento. No passado, se muitas quisessem ser manequins para sair na capa das revistas, por exemplo, a famosa Manchete da década de 1980, ou hoje, ser a influencer que faz publicidade para marcas famosas, na década de 1990 o sonho era integrar um grupo de axé como dançarina.

As dançarinas dos grupos de axé eram as grandes musas da década de 90 do século passado no Brasil. Nessa década, o axé music tomou o país durante o carnaval e fez um eclipse na forma tradicional  das escolas de samba. Se antes, as letras das músicas de enredo das escolas de samba estavam na boca do povo e os desfiles eram ansiosamente aguardados, na década de 90 foram as músicas e grupos de axé da Bahia os responsáveis pela ansiedade da nação. O carnaval, então, mudou de rumo. A moda era trio elétrico, as músicas chicletes e com duplo sentido (sempre sexual) dos grupos de axé e as coreografias que eram quase obrigatórias de serem aprendidas sob o risco de exclusão social. Ir a uma festa, um churrasco da família ou da firma e não saber a coreografia da última música do grupo de axé X ou Y era passar atestado de antissocial. Eu era adolescente, por volta dos 17 anos, no ensino médio e passava o ano todo aprendendo as coreografias das músicas de axé com as amigas para dançar nas festinhas ou no carnaval. A gente queria sempre ser descoberto como os novos dançarinos de axé. Rebolar a bunda com roupas de malhação de academia ou camiseta de abadá era a nova forma de aparecer. Todos nós queríamos ser os novos “jacarés”, “carlas perez” ou “sheilas”. Não se escutava mais samba enredo, mas axé music. Ser rainha de bateria era apenas um adendo. O carnaval da Bahia havia engolido as outras formas de carnaval tradicional. Virou uma febre por anos.

“O carnaval mudou muito”, disse Daniel para mim em uma das nossas conversas, “Hoje não tem mais glamour ou rendimento em participar do carnaval. Você gasta uma fortuna em fazer uma fantasia por puro ego. Não tem mais revista para posar pelado ou pelada, não é mais uma vitrine para convites de trabalho. É apenas ego”, continuou. “E por que continuar desfilando?”, perguntei. “É pela comunidade e nada mais. O carnaval hoje se resume a uma festa da comunidade”, respondeu incisivo.

II

“O ano de 2017 foi um divisor de águas para mim”, disse Daniel mudando o tom da fala de alegria para melancolia.

“Por que?”, questionei acreditando que poderia ser a perda de mais algo simbólico no universo do carnaval.

“Foi o ano que meu pai morreu… muita coisa mudou a partir daí. Foi algo muito impactante na minha vida”, respondeu ele.

Nós ficamos alguns segundos em silêncio naquela conversa por vídeo. Naquele espaço de tempo da não fala, eu havia sentido o impacto que aquilo havia sido para ele. Daniel continuou:

“Naquele ano eu não tive cabeça para o carnaval… eu me afastei um pouco de tudo. Eu precisava dar apoio a minha família, eu precisava me refazer. Eu precisava daquele tempo”

“E como foi quando você retomou?”, perguntei.

“Eu senti que foi a partir daí que eu comecei a ser ‘escondido’, comecei a ser deixado de lado. Em 2018 eu tive uma briga muito feia com integrantes da escola de samba e a coisa desandou ainda mais, fui  jogado de um lado para o outro: uma hora era destaque, outra já não era mais; outra eu não estava mais à frente da bateria. Uma confusão que eu não tinha cabeça para entender com tudo que estava acontecendo comigo”, relatou Daniel.

“E como você se sentiu com tudo isso?”

“Mais uma morte, mais um luto aconteceu ali. Foi o que eu senti”, finalizou.

III

A nossa última conversa já caminhava para o final. Ela havia sido a mais intensa de todas que havíamos tido para eu escrever essa série. Eu acho que com o percurso dos encontros virtuais fomos ganhando um pouco mais de intimidade e as coisas se tornaram mais densas. Os relatos já não eram mais só sobre plumas e paetês.

“Eu acho que o ano de 2025 será minha grande despedida do carnaval”, disse Daniel, “Eu vou logo para a velha guarda do carnaval de vez. Eu tenho outros projetos. Quero voltar para meu canal do YouTube, com a proposta de conselhos e vivência de condicionamento físico para pessoas 40+. Falta um pouco dessa conversa na sociedade. Eu vou me reinventar…”

“E o que significa isso?”, perguntei com curiosidade.

“A gente vive em um mundo que só valoriza a juventude. Um educador físico como eu tem prazo de validade. Aos 40 anos já estamos obsoletos. Se eu não tivesse um corpo jovial, se eu não cuidasse de mim, se não tivesse um rosto bonito, eu já estaria fora do mercado faz tempo!”, disse incisivo.

“Você sente isso?”, indaguei.

“Sim, muito. Eu sou um espelho para muitos. Outro dia, uma menina, uma aluna da academia, comentou: ‘Eu não faria aula com um personal obeso’. Imagina o que pensam sobre pessoas que já não são jovens. E isso se reflete no carnaval, viu…”

“Como?”, cortei com a pergunta.

“O carnaval é para pessoas jovens, gostosas. É um evento estético e tem uma estética muito particular. Eu já recebi muitas mensagens privadas nas redes sociais dizendo que eu tinha pneuzinho, que eu era gordinho, que eu não era bonito!”, disse Daniel indignado, “Haters! As pessoas estão morrendo por causa dos haters! Hoje em dia nós falamos sobre isso, mas lá em 2010, 2013 ninguém falava sobre. O quanto eu perdi, talvez trabalhos, por conta disso? Não dá para saber! E eu me pergunto: será que quero viver dessa maneira?”

“E o que você gostaria?”

“Eu quero ser reconhecido agora como alguém que teve um papel importante no carnaval. Se há reis de bateria hoje em dia é porque eu comecei lá atrás. Eu não quero pagar por esse reconhecimento como vejo muitas pessoas fazerem. Tem que ser um reconhecimento natural por toda a minha contribuição”

“Talvez fazer projetos para formar novos reis de bateria?”, arrisquei uma ideia para ele.

“Não, isso não funciona. Já pensei e não rolou. Eu preciso de incentivo para isso. Eu quero focar no meu canal no YouTube. Acho que é isso que eu posso fazer, que tenho espaço… ali eu tenho mais liberdade”, disse pensativo.

“Talvez tenha o reconhecimento que você quer…”, completei.

“Eu serei mais livre para criar e, claro, ser reconhecido…”

Dessa vez fui eu quem interrompeu:

“O reconhecimento é importante…”, disse eu.

“É fundamental. Eu quero ver em vida esse reconhecimento. Ou ele virá daqui um pouco quando eu morrer? Quando eu estiver lá no caixão? Vão reconhecer o quê? A carcaça? Vão colocar o cadáver no carro alegórico? Em um trono? Sair com a carcaça dançando pela avenida?”, disse Daniel de forma irônica.

O clima quebrou.

Gargalhamos.

“Como a história de Inês, ‘Agora, Inês é morta…’, conhece?”, disse eu recuperando meu fôlego da risada.

IV

         Era ali pelos meados dos anos de 2015. Talvez tenha sido o último grande carnaval que me empolguei. Lembro que fui com um amigo de Ribeirão Preto para o litoral sul de São Paulo. A promessa era uma grande festa de carnaval em uma boate com uma vista paradisíaca. Era uma rave de música eletrônica e pop music estadunidense remixada. Assim foram nossos quatro dias de carnaval. No último dia, lembro da imagem de estarmos em uma espécie de camarote que dava para ver toda a grande pista de dança. Eram apenas duas da manhã, centenas na pista ao som das batidas eletrônicas, ninguém estava lúcido. Ninguém se olhava, ninguém se beijava, ninguém interagia um com outro. Uns com pirulitos de canto de boca, outros dançando frenéticos solitários em um universo paralelo. O carnaval tinha outra eletricidade.

V

Epílogo. Dois dias depois de terminar o carnaval em fevereiro de 2024, Daniel me encaminhou no WhatsApp uma matéria no site do UOL em que falava sobre a preparação física intensa dos homens que eram reis de bateria no carnaval. A matéria falava sobre a rotina de preparo de outro rapaz que é mais jovem, dez anos a menos que Daniel, e é rei de bateria no Rio de Janeiro, e a de Daniel para o dia do grande desfile na avenida. Daniel estava feliz com a publicação da matéria em um grande veículo de comunicação e de credibilidade. Nas nossas conversas anteriores já havia dito que valorizava as coisas que saíam nesses veículos em detrimento dos da “imprensa marrom”. E realmente era uma matéria longa, interessante e prestigiosa que contava desde as motivações de ambos para o carnaval, passando pelas dificuldades dos percursos até os desafios do preparo físico para o desfile.

“Você gostou?” Perguntei  

“Agora sim: eles mencionam que fui o pioneiro como rei de bateria. É isso e pronto”, disse Daniel.