Por Luci Collin *

Vital ter um desses conjuntos saia/blusa de tweed no armário –  a vendedora bem preconizara – porque nunca se sabe quando é que o telefone vai tocar e é a Prefeita, Jurema Schultz, lhe “convidandinho, queriiiida!” pra receber um poeta inglês de passagem pela cidade. Não lembra o nome do dito, mas “é cheio dos prêmio!” e ela está ansiosa pra mostrar sua arrojada “plataforma culturo-artística” que inclui a I Feira Literária de Curitiba (doravante, Flicu) e, caso tenha sucesso no encontro de hoje, contar com o donairoso bardo saxão na programação da mesma. Não, eu nunca havia recebido um telefonema do Gabinete da Prefeita (GAPE); só lembraram de mim porque a intérprete fora acometida por forte cãibra nas cordas vocais e cancelara a coisa e eu afinal sou professora de poesia na UFPR e tenho 40’ pra estar no local da “reuniãozinha”. Vital, de fato, que se possa chegar a um evento desta monta em traje adequado.

Se alguém usou o termo correlato objetivo pro efeito que a arte produz ao articular seus componentes de tal modo que resultam numa experiência sensorial evocadora de uma impactante emoção, deve ter pensado também num termo pra descrever a articulação de elementos sinestésicos de modo que resultam em um tilt uma avaria uma pane emocional absoluta (irrelato objetivo?), sendo exemplo disso você chegar num GAPE da vida e dar de cara com: Thomas Stearns Eliot numa poltrona segurando uma guampa de tererê. Não, num momento desses você não lembra de avisar suas pernas mãos unhas orelhas pra tentarem tremer menos. Só Hórus pra saber como é que você logrou apertar a mão daquele senhor alinhadíssimo e disse, num misto de tartamudeio e estridulação, How do you do. Felizmente Jurema logo contextualiza: ele está fazendo “tipo uma escalinha aqui” rumo a Ushuaia onde reverá amigos de infância e o tererê, já que são 5 da tarde, é “tipo ti-táime” só que com erva-mate; mas “ele puxou a bomba errado ou achou amargo porque deu só uma bicadinha”. Ah, agora sim, está claríssimo!

Dirijo-me a T. S. Eliot para me desculpar pelo atraso, the traffic jam e a Prefeita me admoesta “Não fala de tráfico! Conta que a Flicu vai ser joia!  Regional do Janguito, o Grupo Nymphas; e o Ademir Plá já confirmou! Tamo pensando numa mesa-redonda com ele e o Dalton! Na Arena da Baixada. Depois, jantar em Santa Felicidade, explica que é rodízio de massa”. Antes mesmo de eu começar a falar, o Sr. Eliot tira um baralho do bolso do paletó – todos os dias joga cartas às 17:17 – e me pede para conversarmos a sós.

Saem Jurema e séquito.

Que tipo de jogo um indivíduo atilado, imoto, insigne, sengo, eremítico como T. S. Eliot gosta de jogar? Poeta dessa envergadura deve jogar pôquer, truco, escopa, tarot! E se me convida!? E se as apostas forem altas? E eu lá sei algo além de rouba-monte?

Embaralha. Diz:

— Continuemos, então, tu e eu, quando o poente se espraia no céu, feito um paciente anestesiado sobre uma mesa.

Dispõe cartas sobre a mesinha de centro.

— Bem, estamos planejando um Feira Literária, em abril…

(silêncio)

— Abril é o mais cruel dos meses (…) misturando raízes fracas e as chuvas de primavera.

Não me deu carta nenhuma: jogará paciência. Sozinho, só, desacompanhado, isolado, solitário e feliz.

Respondo:

— Aqui será outono; se o senhor aceitar vir poderá conhecer os…

— Pois já conheci todos, todos eles conheci; conheci as tardes, as manhãs, os entardeceres.

Move um 7 pra direita; vira outra carta. Olha ao redor.

— Se houvesse água aqui e não rocha se aqui houvesse rocha e também água e água uma fonte…

Não tinha água. Não ouso perguntar sobre o tererê.

(longo silêncio)

Ele desiste daquela partida, recolhe as cartas, embaralha, começa outra. Tento encetar um diálogo:

— Por que é que a paciência tanto lhe agrada?

— Creio que é a coisa que mais se aproxima de estar morto.

(silêncio)

Desloca o 9 de copas e diz:

— Sairei às pressas, assim como estou (…) Que faremos amanhã? Que faremos alguma vez? (…) jogaremos xadrez, cerrando olhos sem pálpebras e esperando uma batida à porta.

Batem: a Prefeita, claro, anunciando que já “vão levar o Mister Hélio no aeroporto”. Me pergunta: “Topou?” Sim, sim, ele está sobremaneira animado pra vir à Flicu!  Vai só conferir na agenda a disponibilidade e avisa – manda um whatsapp. E a gente vai se falando pelo face também.

Como o protocolo da OMS recomenda só um irrelato objetivo por dia (sob risco de difteria súbita) não vou falar muito sobre a próxima cena em que a Prefeita “em nome de todos os curitibanos natos ou radicados” entrega uma “linda lembrancinha” ao Sr. Eliot.

Ele, pasmo, aturdido, estupefato, atônito, agradece dizendo:

— Datta, dayadhvam, damyata.

“Traduz aí pra gente, profe! Ai, inglês é tão difícil, né?”.

Ele disse que vai pensar com carinho na nossa oferta.

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Luci Collin é escritora, autora de Com que se pode jogarNossa Senhora D’Aqui, entre outros

 

 

 

 

 

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