* Por Pedro Taam *

O traço mais marcante da literatura de Elvira Vigna – autora que faleceu na semana passada -, e de sua posição política e pública, está em seu posicionamento a respeito do embate da multiplicidade com o indivíduo hegemônico. A multiplicidade é a somatória de todas as minorias: mulheres, feministas, putas, veados, pobres, homens frágeis e seres periféricos em geral. Isso, que chamamos “minorias”, e que deve equivaler a mais ou menos 95% da população.

Esse posicionamento está em toda a sua vida pública e profissional e é particularmente visível em sua obra. Nos seus romances de narrativas abertas, com narradoras que admitem, de cara, não saber de nada (Elvira comenta em uma palestra que “acho que” é uma das coisas que as narradoras mais dizem), cujas personagens sempre envolvem um homem que é tudo menos o protótipo do macho e alguém com um gênero não muito bem definido (e ninguém levanta uma sobrancelha sequer, pelo menos não nos livros).

Aí vem a tão comentada “agressividade” de sua literatura. Farei uma série de citações da própria Elvira. Por exemplo, essa, tirada de uma série de pequenos textos que publicou na revista Pessoa, a Morrendo de rir: “(…) meu livro foi descrito como de ‘rara agressividade no gênero’ sendo que o gênero era o meu, feminino, e não o do livro, romance.”

A questão é que essa “agressividade” não tem nada de agressiva. É apenas uma afirmação dessa multiplicidade e de cada heterogêneo que a compõe, do ser quem se é, do não se curvar e não se deixar dominar, por quem quer que seja. Veja: não é uma insurreição, não é uma revolução, não é uma declaração de guerra. É só um ato de resistência e de auto-afirmação. Como, por exemplo, se conclui este Morrendo de rir: “Ei, a gente existe, viu. E existiremos, sempre. Em mesóclise pra você entender melhor: existir-lhe-emos! Nós, os letras mudas ou quase, estamos aqui!!!!!!”.

Nós, as baratas. Perigosíssimas, portanto, para aqueles que detém o poder e têm, nesse poder, sua identidade. Fixa, diga-se de passagem, e hegemônica. Cito Por escrito:

Tem uma coisa que aprendi trepando, porque fico bem mesmo trepando, ou seja, abrindo mão de qualquer defesa, qualquer controle, me permitindo uma integração completa com o que (quem) está perto de mim. E o que aprendi é o seguinte. Que é assim que se goza. E isso vale também para os que acham que estão no controle. Porque justamente não estão. São só mais frágeis. Porque eu, para poder admitir o risco enorme de perder o controle sobre mim mesma, preciso inventar que estou lá submetida de alguma maneira: forçada, presa, sem poder fazer diferente. Isso eu. O homem (no meu caso é homem porque trepo com homem) precisa inventar que tem o controle, o poder, que está lá dono da situação e que pode fazer o que quiser. É ele (…) o mais frágil. É (…) ele quem precisa de mais garantias, todas fictícias, para poder relaxar e gozar. Se você fantasia o poder e o controle, você é muito, muito mais frágil. E isso serve mesmo quando não se está trepando.

A questão aqui é o esgotamento, não só do masculino e do hegemônico, mas principalmente do que está além desse esgotamento: o que pode existir depois que todas as possibilidades de existência conhecidas se esgotam. Ao mesmo tempo em que não há nada a fazer (ou Nada a dizer), e com isso quebra-se um imperativo de que sejamos obrigados a fazer alguma coisa, algo novo se abre. Algo delicado: não necessariamente uma nova possibilidade concreta, mas as condições para que se pensem em outras possibilidades, que vão além. Além do quê, cara pálida? Além do clássico, novamente em Por escrito:

Tenho uma teoria sobre o clássico e as pessoas que curtem o clássico. Balé, música, pintura, neoliberalismo ou tailleur com broche prendendo uma echarpe. Essas pessoas acham que harmonia e perfeição existem. Acham mesmo. Se não no tempo presente, pelo menos no passado – o que equivale a dizer no futuro. Acho também que acreditar nisso é letal.

O que há além das possibilidades conhecidas, que compõem o conjunto do “clássico”? A resposta é óbvia: não sabemos. Ao mesmo tempo, é algo de realmente novo, porque é justamente o esgotamento do possível que determina a obrigatoriedade do impossível. Nisso, novamente, Elvira responde, no final de seu último Morrendo de rir:

E, como sempre, já penso em me mudar. E fico olhando pra o que não existe. O Gerd [Bornheim] deixou comigo o texto sumido e um olhar que não some. Que vê além do que nos dizem e mostram. Dedico esse morrendo a ele. É o último. A todos, obrigada, e até o que ainda não existe.

Elvira se muda. Nesse esgotamento, nos deixa com duas coisas: um “não saber o que fazer” e um “fazer o que ainda não se sabe”.

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Pedro Taam é pianista

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