Domingo maior

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

* Por Santiago Nazarian * 

Aos treze anos, ele já havia morrido várias vezes. Então ela só começou a pensar que era mais uma quando a luz do domingo já anunciava seu fim. O cheiro do almoço deixando a casa. As janelas da vizinhança se acendendo com Faustão. A voltagem oscilando com tantos chuveiros ligados por mães banhando seus filhos, mães banhando-se para o culto, ela mesma adiando o banho à espera do filho, abrindo a geladeira por uma cerveja, mais uma cerveja; já há umas boas semanas as vizinhas não a chamavam para seus rituais.

O velho temor pelo filho reacendeu quando ela dava um gole no copo baixo, com o olhar perdido no crepúsculo. Percebendo a sala já escura, adiantou-se para o interruptor. Um susto. O filho se postava na porta de casa, tão lindo quanto sujo.

“Menino… assim você me mata!”

O filho sorriu, a bola embaixo do braço, a camiseta encardida, o Incrível Hulk, a franja longa grudada na testa. Fedia a filho.

“Guardei um picadinho…”

Ele seguiu até a mesa dando embaixadas. “Tem guaraná?”

Ela ligou o forno para esquentar o prato e abriu a geladeira. O último gole do litrão que tinha guardado para ele. Viu o cão comendo da tigela num canto e se sentiu um pouco culpada por ser a mesma comida que servia ao filho. Foi até a mesa, passou-lhe o refrigerante, acariciou-lhe os cabelos e beijou-lhe a testa, a cicatriz na testa. “Curtiu hoje, meu filho?”

Ele meneou. “O campinho hoje estava todo tomado pelo pessoal da 23. A gente teve que ficar lá nos fundos da vila. Uma porra…”

“Ei!” a mãe ralhou.

O menino suspirou. “Mas eu vi o pai…”

“Seu pai? Você falou com ele?”

“Ele veio falar comigo…”

A mãe arrepiou-se com a lembrança do fantasma do Natal passado, Páscoa passada, tantos dias santos e feriados desperdiçados.

“Perguntou de você…”

“Afe…” Ela se afastou, em direção ao forno.

“Falou que está com saudades, mãe.”

“Seu pai sempre fala isso, em dia de domingo, depois de beber. Em dia de semana, na hora de trabalhar, ele não existe.”

O menino suspirou novamente. A mãe tirou o prato do forno, levou até ele. “Cuidado que está quente”, mas não estava muito. O dia havia acabado, já estava escuro, mas ela não se preocupou mais em acender a luz; sentou-se ao lado dele e ficou observando o filho comer com apetite. Lembrava um pouco o marido, lembrava um pouco ela mesma, era um menino que ela havia amado por toda a vida, que quase lamentava amar para sempre, porque para sempre ela iria sofrer.

“E como está seu pai?”

O menino deu de ombros. “Igual. Está mais gordo.”

“Seu pai nunca se cuidou. Acha que pode viver igual moleque para sempre. Mas o tempo pesa. Ele te pediu dinheiro?”

“Não, mãe.”

“Sério, não pediu nada?”

O menino não respondeu e sua negativa foi apenas um lento balançar de cabeça que acompanhava o mastigar, como o cachorro comendo da tigela, até ela perceber que o cachorro não balançava a cabeça ao comer.

Eles assistiram ao resto do Domingão juntos. E depois ao Fantástico. E a um filme de ação com tiroteios que não soavam nada como a vida real. O filho sempre no colo da mãe. Fedendo. A cabeça na coxa. A coxa dormente. Os cabelos engordurados. A mãe acariciando-lhe para dormir. Até que ela mesma caía no sono e obrigou-se a levantar.

“Vou para cama, filho. Acabando esse filme, tome um banho e vá dormir. Que amanhã você não pode perder a hora.”

Deu mais um beijo na testa, na cicatriz. Seguiu para o quarto e o filho a chamou:

“Mãe…”

“Oi, filho?”

“Mãe, tá doendo…”

Ela voltou até ele. Ele se levantou sentando no sofá. “Aonde?” Ele apontou para as costelas direitas, para o furo na camiseta. “Deixa eu ver.”

Ele tirou a blusa. E por um instante ela estranhou aquele homem, menino, aquele menino de peito nu no sofá. O corpo eterno mutável que ela conhecia, que ela não reconhecia, um homem a mais, cada vez mais, cada vez menos menino, já com uma trilha de pelos descendo do umbigo. E então a mancha de lama, de sangue, o ferimento entre as costelas; era preciso limpar.

“Vou pegar o mertiolate.”

No banheiro, band-aid, água oxigenada, nada de mertiolate. Água oxigenada deveria funcionar. Papel higiênico. Voltou à sala, ao filho, ajoelhou-se entre as pernas dele. “Isso deve arder um pouquinho…”

A cada esfregada da mãe, ele se retesava um pouco. Mas não gemia, não protestava, não chorava nem gritava como fez tantas vezes, quando era menor. Ela se lembrava dos joelhos esfolados, aquela pele tão macia que parecia não ter sido feita para as penitências desta vida. Agora espiava e não os reconhecia, os joelhos, tão rígidos, já cobertos por pelos dispersos, não reconhecia nem as cicatrizes. Voltava o olhar ao ferimento. Era ao mesmo tempo um corte, um furo e uma queimadura. Essas coisas que só um menino consegue. Buraco de bala. “Já vai melhorar.”

Ela se levantou e olhou para ele. Ele olhou de volta e parecia segurar lágrimas. Ela poderia pegá-lo no colo novamente e estimulá-lo a cair de fato no choro, no sono, mas tinha medo de que isso revelasse de vez um estranho em sua sala. Mais do que o menino que ele outrora foi, um estranho em sua casa. Não havia razão para drama. Ele já era um menino grande. “Vai ficar tudo bem.”

Ela deu as costas e seguiu para o quarto. Olhou para o terço e lembrou-se de deixar de rezar. Estava tão cansada, tão cansada, tão velha; tinha certeza de que se olhasse para o espelho não reconheceria nem a si mesma. Os anos se passaram e eu me perdi. Os anos se passaram e eu perdi meu filho.

                  Deitou-se na cama ouvindo apenas as vozes da dublagem na sala. Deitou-se na cama e implorou por adormecer ouvindo a dublagem. O filme alongando-se no Domingo Maior, uma madrugada infinita, uma tristeza sem fim. Ela implorava para que nunca terminasse esse filme. Que nunca chegue a segunda…

*

Santiago Nazarian é escritor, autor de Biofobia, entre outros; lança Neve negra, em breve

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