N o Aterro, o motorista sintonizou a estação. Minha mãe: foi isso mesmo? Ele assentiu com a cabeça e aumentou o volume. Em seguida, ela olhou para fora e chorou como se chorasse a morte de um parente muito próximo, ou a própria morte. Elis Regina morrera.

O taxista condoeu-se, e eu não compreendi.

No restante do caminho até a rodoviária, havia jambeiros por toda parte e eles foram a última coisa que olhei antes de embarcar no ônibus. Depois, passei um tempo lembrando. O Forte. O hotel dos argentinos. As ondas no desenho das calçadas.

Apesar do rosa pálido e bolorento do pátio interno do prédio, que eu observava da janela do quarto, com uma melancolia provocada por tudo que é decrépito aos olhos de uma criança, eu começava a gostar das férias naquele apartamento alugado. No entanto, algo diferente se passou com minha mãe, pois ela decidiu antecipar a volta para casa.

Mais tarde, na estrada, eu prestava atenção na noite. O céu ainda morno. E no reflexo da janela, encontrei o rosto de minha mãe. Um rosto solitário, como a face de um fantasma. Na poltrona ao lado, ela roçava meu braço, fazendo-me um carinho que mais parecia uma despedida, ou como se a sua vida estivesse apenas e tão somente ligada a mim, por muito pouco, quase nada.

Não estou segura se ela me viu no mesmo reflexo, mas em meio à penumbra ela murmurou: duas mulheres sozinhas. Ela disse apenas isso e já foi muito. Nesse instante, eu me dei conta do perigo. Um perigo que não havia antes dela falar: duas mulheres sozinhas.

A temperatura desceu para nove graus já na fronteira do Estado. Depois veio a chuva. E depois veio a casa, a nossa casa: a pia toda ocupada pela louça, isto é, pela primeira vez, embora de modo tardio, eu compreendi que meu pai e meu irmão eram homens. Eles surgiram no topo da escada que dava para os quartos e caçoaram do nosso espanto.

No dia seguinte, minha mãe lavou a louça e a roupa. Seu espanto, na noite anterior, não estava relacionado com a louça sobre a pia. Eu comecei a intuir. Minha mãe dava poucas dicas, com economia e vagareza. Talvez o momento crucial tenha sido quando ela viu meu pai e perguntou: você está em casa?

Aonde meu pai estaria numa sexta-feira à noite?

 

Houve um tempo no qual minha mãe teve fé em mim. Isso deve ter durado até os meus dez anos, talvez. Durante aquelas estranhas férias. Ou até algum momento em que me neguei a seguir seus passos.

Durante um longo período, tentei resgatar essa confiança da parte dela, ou alguma virtude em mim. Mas depois eu percebi que não seria mais possível.

Penso: se ela ainda estivesse viva, se soubesse das minhas escolhas, qual seria o nosso grau de entendimento? Escolhas, sexo, profissão. Amigos constituídos. A máquina de lavar louça. Ela entraria em choque ou algo nela se deslocaria para uma região de compreensão e amor? Mais simples: ela me criticaria com o queixo tremido.

No entanto, ter me casado com uma mulher não seria, para ela, uma decepção tão grande como a da separação. Para minha mãe, a derrota de perder um casamento reunia a certeza do desprezo pela sociedade, o medo de passar fome e, de modo sumário, a consumação de sua incompetência. No caso, da minha incompetência.

Eu teria, segundo os votos de minha mãe, de aguentar tudo firme e calada. Não me importar com as saídas de Marina após a janta. Eu deveria chorar dentro de um táxi qualquer e guardar minha cara de mágoa para quando acordássemos de manhã e Marina me visse preparar o café. Deveria, talvez, empreender uma viagem com o dinheiro de Marina. Ela concordaria, quem sabe também estivesse cheia de culpa, como o meu pai um dia esteve.

Mas não, eu não tenho a casca tão grossa. Eu arrumei um trabalho, uma pequena palestra fora de São Paulo, quando Marina contou que estava com outra pessoa.

Ainda não sabia ao certo o que diria aos alunos do Pedro II. Na verdade, pessoas mais velhas, diante de gente novinha, costumam comentar sobre seu passado. Mas eu também queria falar de futuro. De uma história que ainda não tinha acontecido. Ou do nosso cão a cheirar a porta da rua, faminto, sem minha mão sobre sua cabeça dizendo Gaspar, você nem sabe o que está por vir, bom Gaspar, e você continua abanando o rabo.

Logo após a morte da minha mãe, meu pai confessou, sem que eu o indagasse, sobre a existência de uma amante à época da nossa viagem ao Rio. Ele pretendia se separar da minha mãe, se não fosse, alguns meses depois, suas mãos começarem a tremer de modo insistente. Ato contínuo, recordei do choro despropositado dentro do táxi amarelo. Ali ela morreu um pouco. Agora eu sei.

À noite, na escola, contei essa história para os alunos. Houve quem risse, houve professoras que também estavam se separando. Não sei como, mas voltei pra São Paulo encorajada.

Eram cinco da manhã quando arrastei as rodinhas da mala no caminho do metrô até o apartamento. Apressava o passo conforme me aproximava mais e mais.

Houve um momento de surpresa de minha parte, por encontrar Marina na nossa cama. Respirei com alívio. Assim como minha mãe. Ela ainda estava lá. Larguei a mala num canto. Sentei-me ao seu lado. Ela segurou minha mão e as palavras saíram transparentes da sua boca, antes que eu perguntasse: eu quero mesmo me separar de você.

Ouvi dizer que os jambeiros vivem uma vida discreta e monumental. Talvez eles ainda estejam lá. Junto deles, uma mulher sozinha.

 *

Paula Fábrio nasceu em São Paulo, onde mora. É doutora em Literatura pela USP. Autora de Desnorteio (de 2012), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Um dia toparei comigo (de 2015), livro finalista do mesmo prêmio. No corredor dos cobogós (Edições SM) é sua primeira obra juvenil.

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