* Por Evandro José dos Santos Neto *

A dramaturgia de Rudinei Borges, reunida nas treze peças que compõem o livro Oratório no deserto de sal, carrega a marca de uma expressão literária original que pode ser identificada, entre outros elementos, na forma como o dramaturgo lima as palavras e as suas relações – sintáticas, semânticas e lexicais –, para tratar da condição de desvalimento de seres humanos historicamente violentados. Ainda que a abordagem da temática que constitui cada uma das peças se afaste da tentação de sucumbir à centralização geográfica – expondo, dessa forma, no primeiro plano da dramaturgia, as múltiplas faces da diversidade brasileira –, o autor consegue contornar a obviedade da figuração meramente regionalista, ao imprimir, no traço dado às personagens e às paisagens, o dinamismo requisitado pela complexidade do assunto tratado.

Nesse painel, a radicalização do significado que a ausência – material e imaterial – passa a ter nas experiências das personagens surge como um dos elementos selecionados pelo dramaturgo para dar sentido à “via crucis da minorização”. Na forma como aparecem configuradas as razões e as consequências do abandono, da separação, da partida e da morte, os efeitos deletérios que a ausência e a solidão causam no indivíduo adquirem conotação social e coletiva e pregam em cada uma das treze peças o símbolo mais eloquente do capitalismo de feição periférica: o apagamento do sujeito pobre, subjacente à interdição social que o impede de experimentar plenamente relações afetivas autênticas e saudáveis, na medida em que se encontra não apenas rebaixado ao trabalho exaustivo que lhe rouba formas outras de trocas humanas, mas também dedicado, quase de forma exclusiva, a uma tentativa incerta e duvidosa de sobrevivência.

Como evidência de uma perspectiva crítica que busca apreender o dinamismo da vida, no entanto, a estetização dessas existências solitárias vem imediatamente acompanhada da formalização de uma contestação. Assim, “Arrimo”, a peça que abre a coletânea, concentra nas duas personagens, Mãe e Filho, o elemento temático estruturante da dramaturgia de Rudinei Borges: a enunciação da pobreza como protesto, jamais como espetáculo. Na orla do discurso-testemunho do Filho, a compreensão das injustiças que integram a divisão de classes, e das desigualdades derivadas delas, enforma a indignação da personagem e se estabelece na organização semântica que seleciona e dispõe, pelos flancos do texto, um conjunto de palavras de significado específico, com a finalidade de acentuar os efeitos provocados pela situação de falta e carência: “farrapos”, “remendos”, “vestígio”, “sobras”, “migalha”, “trocado”, “míngua”, “frangalhos”. A atmosfera de incompletude e insuficiência instaurada por esse consórcio lexical comunica a tragédia do rebaixamento, na qual a existência das personagens, profundamente integrada ao processo histórico brasileiro, inscreve-se na clivagem de classes sociais muito bem definidas; entretanto, para além da privação material, que comparece vestida e pervertida por uma roupagem de natureza socioeconômica, a problemática em torno da ausência se torna ainda mais complexa quando para o centro do palco é trazida a discussão em torno das relações humanas. Não se pode negar que, em um mundo cada vez mais individualista e competitivo, também as feições que essas relações adquirem se encontram subordinadas ao movimento condicionante do capital.

Sob essa perspectiva, em peças como “Arrimo”, o enquadramento do abandono paterno – artifício que funciona como um leitmotiv presente em quase todas as peças da coletânea, ainda que seja por razões diferentes – define a configuração estética que a ausência e a solidão adquirem. Na medida em que, na arquitetura da peça, a paternidade negada dá forma às vicissitudes de ordem material que circunscrevem a vergonha experimentada – a falta de boa alimentação e de vestimenta adequada e a sujeição da Mãe a tipos de trabalhos degradantes, por exemplo –, a ausência do pai engendra, também, a solidão da Mãe e as carências do Filho, sintetizadas na falta de amor conjugal, de afeto, companheirismo, proteção e cumplicidade. A intersecção dessas duas formas de ausência, por sua vez, esboça os contornos que delineiam o caráter de sujeitos cindidos, estigmatizados pela indiferença da barbárie social que risca nos corpos e nas camadas secretas do inconsciente linhas profundas de vergonha e ressentimento. Por essa razão, não é fortuito que, em dado momento, diz o Filho em seu discurso: “A pobreza e a fome são ervas espinhosas que arrastam vidas inteiras para o fosso, a vala comum dos miseráveis. Eu sinto dizer que a minha mãe e eu morreremos os mesmos pobres que sempre fomos”.

O enfrentamento dessa condição que determina o desvalimento social é poetizado por meio das estratégias formais que o dramaturgo utiliza na composição de Oratório no deserto de sal, uma vez que as possibilidades estéticas disponibilizadas pela figuração da ausência e da solidão, em algumas peças, comparecem de modo radicalizado. Isso pode ser verificado, por exemplo, na organização formal que orienta a disposição de quase todos os breviários que compõem as peças “Havia um país aqui antes do Carnaval” e “Transamazônica”. Nesses casos, a estrutura lastreada em quadros aparentemente independentes, nos quais a primazia dada ao monólogo instaura uma perspectiva cênica confessional, acentua o claustro e o abandono confessados pelas personagens narradoras, que se encontram encerradas em breviários isolados, espécie de caixas lacradas que interditam a experiência dialogal e privilegiam o discurso solitário, próprio de sujeitos mutilados, em quem estão ausentes os ideais comunitários de solidariedade.

Outro modo exemplar de captar as angústias que perseguem o ser humano nesse estado de desencantamento reside no próprio traçado linguístico experimentado por Borges para dar forma às cenas. Isso se dá não apenas no processo de enunciação, quando as personagens vocalizam essa condição – como ocorre na fala “Eu sou só”, pronunciada pelo narrador do breviário “Jaider”, de “Havia um país aqui antes do carnaval”, ou na repetição da palavra “só”, que avança por quase toda a peça “Verônica” –, mas, principalmente, no modo como está configurada a estrutura sintática que sustenta o texto: longos períodos, nos quais a prosa característica do texto teatral convive com um traço poético que, por sua vez, fundamenta-se na composição de frases e palavras independentes, isoladas por uma forma característica de pontuação. Em um primeiro momento, essas escolhas linguísticas sugerem a inexistência de relações, na medida em que as palavras e frases criam, por si só, possibilidades imagéticas e líricas carregadas de símbolos e sentidos próprios. Na peça “Fé e peleja”, por exemplo, isso pode ser verificado da seguinte forma: “Almargem e almagre só. Só almuinha. Aljôfar só. Só semblante da mãe. Defronte da ribanceira só. Só da cacimba vis-à-vis do cais do entremeio só. Só do afago que é dengo. Arroio danado na rede só. Só banzeiro de aljorce. Raios duma cantiga ao longe só. Só andaria de São Benedito. Pés descalços de Santo Antônio. Só dar os olhos a Santa Luzia. A alma ao menino Jesus só”. Ler – e ver – Oratório se torna, assim, uma experiência sensorial que transcende o cotidiano, o lugar e o senso comuns e nos coloca em um estado de apreciação artística que, no entanto, não desvia o olhar das minúcias engastadas em um processo de formação econômica e social que tem como resultado mais bem acabado a pobreza que define as ausências impostas ao sujeito subalternizado.

Por outro lado, é bastante sintomático que a caracterização da personagem Macabéa, da peça “Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores”, esteja associada à manipulação de uma máquina de escrever. Ao materializar, por meio da escritura de cartas, os sentimentos e as emoções de indivíduos a quem foi vetado o direito à expressão escrita, Macabéa recupera as possibilidades de relacionamento e diálogo com seus pares e emula a consciência do próprio dramaturgo que, no ato da escrita, conjura realidades e denúncias e traz à luz as demandas de sujeitos excluídos, como o favelado, a estudante pobre, o indígena desterrado, a curandeira, a mulher preta escravizada, o trabalhador, a mãe de família, entre outros. A importância da presença da datilógrafa na obra é confirmada pela menção feita ao ensaio “Direito à literatura”, de Antonio Candido, no fim da peça “Arrimo”, pois evidencia que o acesso democrático à educação é, conforme afirma Paulo Freire, uma prática libertadora. É por isso que, valendo-se da função polissêmica atribuída à linguagem, é bem possível afirmar que a acepção da palavra fome, na fala do Filho “Li com fome todas as peças de Shakespeare”, vá além de seu sentido denotativo e indique mesmo a determinação e a resistência que caracterizam as lutas de muitos indivíduos pobres em sua busca por dignidade. Se assumirmos, dessa forma, como perspectiva que orienta a crítica, que a fatura de Oratório no deserto de sal é também o resultado das próprias experiências sociais, individuais e intelectuais do autor, pode-se concluir que, com a escritura e a publicação de sua obra, Rudinei Borges reivindica o quinhão que é seu por direito, vai além da postura do sujeito-consumidor e se coloca como agente de transformação, ao assumir o lugar do sujeito que produz, publica e divulga literatura.

Evandro José dos Santos Neto é doutor em Literatura Brasileira pela USP, ator no coletivo Teatro Kaus e professor de Literatura no SENAC-SP.

Na foto: cena da peça “Havia um país aqui antes do Carnaval/ foto: Fabiola Galvão

 

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