* Por Wagner Merije *

Luzes e sombras: as palavras de Padre António Vieira, um dos grandes da literatura de Língua Portuguesa, carregam a capacidade de iluminar e de obscurecer, de informar e punir, de elevar sua pátria e de colonizar outros rincões, de incensar os homens (gênero masculino) e subjugar as mulheres (gênero feminino). Excelente escritor que ele o foi (e é), o poder da palavra encontrou em Vieira alguém que a soube fazê-la ainda mais poderosa.

Em seus sermões e outras obras, as palavras foram empregadas de acordo com a visão pessoal do padre, sua devoção a Cristo e sua orientação política expansionista. E sua estrada foi extensa e sua vida longa: enquanto vivo, Vieira “frequentou os salões da corte e devassou os mistérios da selva, conheceu a liberdade e o cárcere, os favores do poder e a sua ríspida vindicta, a incerteza das viagens e o perigo dos naufrágios, o estudo e a ação, a missionação e a diplomacia, a pregação e a aturada reflexão sobre os mistérios da mensagem bíblica”.

Mas na “madrugada irreal do Quinto Império”, expressão que Fernando Pessoa evocou, Vieira oscilou entre santo e demônio.

No livro O Padre António Vieira e as Mulheres – o mito barroco do universo feminino, especialmente no capítulo IV, “Caminhos da perdição feminina”, os autores José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas apontam vários trechos de sermões onde muitas personagens femininas são apresentadas como não virtuosas, dissimuladas, traidoras, capazes de criar desarmonia no lar e na sociedade.

E sobre elas, Vieira não se faz de rogado: julgou-as e condenou-as à fogueira dos pecados.

Esta interpretação corre o risco de soar anacrônica, aos ouvidos de uns, ou revanchista aos ouvidos de outros, mas tal não invalida a “fria perfeição de engenharia sintática” da prosa vieiriana, reconhecida pelos estudiosos da língua portuguesa e assim referida a ela pelo meio-Pessoa chamado Bernardo Soares.

A propósito de Vieira como ramo da sua genealogia literária, José Saramago declarou: “A língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta”.

Bela, belicosa e muito ferina!

Este livro em questão, conforme salientam os editores, “nos propõe uma viagem ao universo do barroco ibérico para observarmos criticamente as representações contrastantes da mulher. Neste estudo, de uma época cultural que é ponto de chegada da grande construção ocidental do mito da mulher, os autores focam a atenção particular e demorada na floresta imensa do sermonário do Padre António Vieira e na forma como o pregador de Seiscentos configura as imagens em torno do universo feminino, recebendo, reproduzindo e reelaborando a herança cultural e mental da compreensão da mulher e do seu lugar na sociedade. O livro demonstra que o genial e desconcertante Padre António Vieira é irremediavelmente filho do seu tempo, embora em alguns aspectos acabe por surpreender-nos com algumas observações no que ao gênero feminino diz respeito”.

É preciso ler o Padre António Vieira com isenção, apesar de que fica claro que o jesuíta considerava as mulheres intelectualmente inferiores ao homem, e sobre elas carregava nas tintas com fúria sexista e misógina.

O Professor Tom Earle, da Universidade de Oxford, escreve no prefácio: “Mas o espírito racional e científico do livro… é em si uma resposta digna à extravagância e à violência da época barroca. Temos a obrigação de tentar compreender o passado, mesmo nos aspectos que não é possível admirar, e, neste aspecto, os dois autores têm muito que nos ensinar”.

Dito isso, é chocante perceber na sociedade do presente muitas das ideias propagadas por Vieira ainda a perdurar e serem usadas para justificar todo tipo de atrocidade contra as mulheres. Deus, ó Deus justo, quando destes a Vieira o poder (e a palavra) para legislar sobre a vida, o corpo e os desejos das mulheres em missivas como “Sermão do Demônio Mudo” e “Sermão sobre a vaidade das Mulheres”? Tudo em nome da fé? Quais outros interesses estavam (e estão) por trás de palavras e atos tão autoritários e cruéis? Chamo as consciências de hoje e de ontem para refletirem!

“O pano de fundo é sempre a matriz teológica que registara Eva e as suas filhas como porta de entrada do diabo-pecado no mundo, pois este não foi capaz de tentar directamente o homem na Idade de Ouro inicial, fazendo-o antes através delas. Daqui vem o fundamento para formação parenética de Vieira, segundo a qual o sexo em questão constitui o instrumento satânico para chegar ao universo masculino e destruí-lo: ‘Tu es quae eum suasisti, quem Diabolus aggredi non valuit: Tu és a que atreveste a persuadir o homem, a quem o Demónio não foi ousado a acometer por si mesmo’2. Esta é uma ideia em que se insiste em toda a oratória sacra da época e de séculos anteriores quando se foca a mulher na sua qualidade de sujeito/objecto sexual e de causa de perdição, contribuindo especialmente para fazer penetrar nas mentalidades o medo perante ela, tal como sublinha Jean Delumeau 3”, relatam José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas.

E continuam: “Foi mesmo um tema recorrente e, à maneira de lustração, observemos as coincidências entre as palavras que acima reproduzimos e outras como as de um sermão proferido no auto-de-fé, em que se recrimina especialmente uma mulher, entre outros delitos, por ter seduzido um sacerdote:

 Mulher porta do diabo és, primeiro desprezadora do preceito de Deus, e tanto que mesmo tentaste o homem, a quem o demónio covarde não chegava, e levaste a imagem de Deus ao lodo. Imitadora das que tenho referido, e não desigual em nada de malícia às passadas, cheia de falsas revelações, foi ocasião de queda para aquele que, crédulo, escutou as suas mentiras e celebrou os seus erros.4

“Na nossa tradição moral, a fronteira do despudor é interdita e intransponível, e por essa razão inominável. A honestidade é um atributo tão essencial na mulher perfeita que é como uma ‘tábua’ onde, por intervenção divina, se inscrevem todas as outras virtudes. À honestidade acrescenta-se ainda a vergonha, entendida como o sentimento moral de pudor que deve definir a forma de estar e agir e também como uma qualidade que protege contra o vício. Esclarece-se que a reputação, a castidade, a honra, a fazenda dependem do agir da mulher e, se essa não tiver a preocupação para protegê-las bem, todas ficarão destruídas”, discorrem Franco e Cabanas.

Autoritário, raivoso, capaz de provocar comoção e catarse junto às suas plateias, sejam elas compostas de homens ou mulheres, Vieira não media esforços para implantar estados de terror por onde passava ou por onde se metia, quase como a emitir pela boca labaredas que certamente engoliram muitas freiras, mães, filhas e até mesmo homens menos precavidos. Se ele falava por Deus, uma vez apontados as pecadoras e os pecadores, não havia quem os salvasse. E, se nem Deus era (ou é) perfeito, se Vieira estivesse errado, não haveria quem o dissesse.

Sendo assim, quem poderia perdoar o jesuíta por seus excessos? Não terá ele incorrido em vários dos pecados que condenou, como a vaidade, a traição, a ambição? Será que lhe faltou um espelho, objeto que dizia ser o “demônio mudo da pior espécie”?

“O autor barroco considera que a legião de demônios de que falavam as Sagradas Escrituras teriam nascido de uma multiplicação espelhal”, segundo Franco e Cabanas.

Perguntar não ofende: como missionário do divino, não deveria Vieira propagar o perdão, a tolerância, o respeito às individualidades e à diversidade dos seres humanos na Terra? Será mesmo que ter “amor-próprio” é o mesmo que ceder a Lúcifer, como ele proclamava?

E como andou por terras diferentes, encontrou mulheres com faces, corpos e hábitos muito diferentes. Mas ao que parece, levava consigo uma doutrina ortodoxa e punitiva. “O culto da beleza praticado pela mulher aparece no discurso literário com um dos símbolos mais dramáticos e violentos da corrosão imposta a tudo quanto é esplendente, vigoroso e altivo, sendo considerada assim como uma verdadeira arma do diabo. A sua evanescência e a precariedade inspiraram amiúde textos em que se contrapõem teatralmente figuras enganadoramente belas nas suas formas e cores e os cadáveres dessas mesmas figuras ou imagens com amostras de doença e/ou velhice, acarretando assim horror e desengano”, revelam Franco e Cabanas.

Para exemplificar, no “Sermão do Demónio Mudo” Vieira pergunta: “Que cousa é a formosura senão uma caveira bem vestida?, a que a menor enfermidade tira a cor, e antes de a morte a despir de todos os anos lhe vão mortificando a graça”.

A essa atitude bem recorrente do Barroco, que consiste em impressionar (ou até assustar) pelo elemento horrível com o objetivo de atingir eficazmente os destinatários, Claude-Gilbert Dubois chamou de “estética da violência” 5. E, entre muitos (ou muitíssimos) outros casos, ainda cabe lembrar que Matias Aires, que seguiu a Vieira quase nos mesmos termos sexistas e em tons repreensivos, observando no seu livro Reflexões sobre as Vaidades dos Homens que “a vaidade ou a elegância de uma mulher bela é quase insuportável” 6.

Tempos duros e difíceis para ser mulher aquele. E ainda nos dias de hoje, ao que parece, com tantas notícias de estupros, violências de toda ordem, discriminação e falta de oportunidades iguais para pessoas do gênero feminino.

O teorizador e crítico José António Maravall no livro Poder, Honor y Elites en el Siglo XVII aponta que as palavras de Vieira evidenciam a consciência de crise ou mal-estar que caracteriza o Período Barroco.

E o jesuíta não para por aí. Segue com sua fogueira verborrágica a condenar o amor físico ou o amor-paixão entre homens e mulheres, dizendo se tratar de uma ilusão que leva tudo à destruição.

Em um sermão na Quaresma de 1644 no Convento de Odivelas, Vieira pregou que foi a relação com Eva que conduziu o primeiro indivíduo de gênero masculino à desgraça. “Do desvairado acto de uma mulher sofreram-se consequências irreparáveis: o Paraíso perdeu-se a si e perdeu-nos a nós, os seus descendentes”. “Na esteira da teologia agostiniana sobre o pecado original, o orador entende que a infração do primeiro casal humano no paraíso, patente na narrativa etiológica do Gênesis teria resultado de um impulso libidinoso. Ora, considera que a falsidade do amor entre homem e mulher deriva sobretudo da insustentabilidade da segunda, do seu caráter volúvel, da sua não solidez. Mais uma vez, o mal reside nela, sendo vista como ser inconstante por natureza, alguém que só sabe construir a vida sobre areia”, afirmam Franco e Cabanas de forma a corar não só feministas, como todos nós. “E, no que diz respeito a tal característica, a espécie humana não consegue ficar imune pois transmite-se também ao homem através da filiação”:

                        O homem, filho de mulher, é tão vário, tão mudável, e tão inconstante, que nunca permanece, nem dura no mesmo estado. Mas se todo o homem nasce de mulher, e de homem; porque lhe chama Job neste caso só nascido de mulher: Homo natus de muliere? Porque os homens no sexo saem aos pais, e na inconstância às mães. Porém, daqui mesmo se colhe, que tão inconstantes são os homens, como as mulheres: os homens por filhos de tais mães, e as mulheres por mães de tais filhos: Homo natus de muliere. A mulher inconstante por condição; o homem constante por nascimento; a mulher, como a Lua, por natureza; o homem, como o mar, por influência. 7

“Como podemos observar nas linhas transcritas acima”, comentam Franco e Cabanas, “aponta-se para uma concepção paritária da inconstância. Alude-se a esta como um traço comportamental que está igualmente presente no comportamento masculino, mas a partir da imputação de causalidade acaba por desvalorizar em maior medida a mulher. O Padre António Vieira insiste que em cada pessoa deste sexo é preciso sempre ver uma Eva em potência, com todos os perigos que tal virtualidade pode acarretar. O nosso autor parte de uma premissa que é lugar-comum na oratória sacra: cada uma leva o peso da condenação da primeira mulher que existiu e sempre viverá nela a sentença com que Deus a condenou. E, assim, aproveita o nosso autor as

suas reflexões sobre dois temíveis afectos da vontade humana, o amor e o ódio, para ilustrar o seu auditório sobre a inconstância através da análise de diversos casos protagonizados por figuras femininas. Presta uma especial atenção ao falso amor de poucos dias, que qualifica de apreensão, quimera, cegueira e rematada loucura, dadas as suas nefastas consequências: a perda não só da alma, mas da liberdade; do sossego; do descanso; e até da vida. Ele (o falso amor) significa a condenação ao perpétuo martírio, à confusão e ao tormento. Sob uma perspectiva bem pragmática colocam-se neste Sermão exemplos relativos aos dois sexos, para que nem os homens se enganem com as mulheres nem vice-versa. Concretamente, da série de nomes de mulher evocados, sobressaem os tirados da Bíblia, como o de Dalila, cuja astúcia logrou mesmo vencer a força viril de Sansão. A sua irrupção na vida deste juiz de Israel, ao qual enganou e traiu, foi o início de um conjunto de penalidades que acabaram no sacrifício da sua própria vida junto com a dos seus inimigos.”
Tais missivas soam como aberrações humilhantes para as mulheres, forçadas a se sentirem culpadas, fragilizadas perante o padre e seus seguidores afeitos à violência. Ou não?

Lanço a pergunta às mulheres de hoje e também aos homens progressistas, e me vejo pensando: como reagiriam a tanta pregação punitiva a mãe de Vieira, suas irmãs (se as teve), tias, primas e outras parentes do gênero feminino?

Angustiariam até a morte, presumo, se não tivessem sido encarceradas, apedrejadas, violentadas fisicamente.

Tudo se explica pelos sentimentos sexofóbicos e misóginos da Igreja. Sob as palavras de Vieira, as mulheres se tornam verdadeiras femme fatale, propagadoras da luxúria, enquanto os homens são vistos como vítimas inocentes e figuras de castidade, como nos caso de Dalila e Sansão, da Samaritana e Jacob, de Dina e Siquém, de Tamar e Ámon, Betsabé e David, Herodias e Herodes, Eva e Adão, e por aí vai.

“Sendo qualificado tantas vezes como homem de acção, o pregador jesuíta demonstra nalgumas das suas peças a capacidade para atentar contra a subtileza na realidade interior e dirigir a sua análise conforme o fim da edificação espiritual… Vieira insiste que a ignorância tira merecimento ao amor e que esta deve ser substituída pelo autoconhecimento e pelo conhecimento de quem amamos, experimentando isto sem interesses nem esperança de correspondência… Muito ao sabor dos temas bíblicos propostos pela liturgia da Igreja para o dia em que têm lugar as suas pregações, deparamo-nos com desenvolvimentos que olham o universo feminino com grande pessimismo e suspeição. Nas homilias onde perpassa um certo antifeminismo tributário da mentalidade do tempo e da tradição cultural do Ocidente, emerge a preocupação de identifi car e caracterizar o padrão da mulher-tentação e a mulher-perdição junto com o esforço insistente de prevenir os homens contra os ardis deste tipo de seres….”, enfatizam Franco e Cabanas.

Os autores do livro de referência aqui citado lembram que numa homilia dedicada a Santo António, que foi proferida no Maranhão (Brasil) em 1657, o missionário utiliza novamente uma metáfora para insistir nas consequências nefastas a que conduz a sedução feminina. Se antes o vinho era associado à mulher omo incentivo de apetites torpes, nesta o líquido báquico é substituído pelo dinheiro, identificado, junto com a mulher, como as duas maiores causas. Explorando as subtilezas linguísticas do jogo fonético afirma que uns se perdem pelas damas e outros pelos dracmas: a cobiça da riqueza turva uns e a cedência à sensualidade desencarrila outros, mas o mal é total quando os poderes destes dois feitiços se unem.

Um pouco mais à frente, Cabanas e Franco (promovendo aqui uma inversão de lugares), nos colocam diante do espelho mudo, que o jesuíta tanto condenava: “O mitema da mulher enquanto filha e herdeira da semente de degenerescência, da desarmonia, da causa de estragos para a sociedade, constitui portanto um dos tópicos estruturantes da mulher-tentação-perdição que se desenha ao longo da oratória vieirense. No antimodelo antropológico de perfeição cristã, vêem-se corporizados os piores defeitos e os pecados capitais que são praticados pelos seres humanos, desde a luxúria à cobiça, da vingança à inveja. Todos os males, quando presentes nas mulheres, parecem que se tornam mais devastadores para a vida em sociedade e, em particular, para o convívio com pessoas de sexo diferente. Eis uma asserção que é formulada sempre com base no axioma teológico que atribuiu a entrada dos padecimentos no mundo a uma causalidade diabólica e a uma instrumentação feminina, representada no acto primordial de transgressão divina realizado por Eva.

Estamos diante do mito adâmico interpretado historicamente em desfavor de um género por uma cultura androcêntrica que insistiu nas suas características nefastas e que toma forma nas apreciações de Vieira, acusando- o de ser a fonte de todos os desmandos e dislates que a humanidade teve de suportar ao longo dos tempos. Tudo isto é apresentado sob o signo da inevitabilidade, porque a mulher não pode deixar de atrair a ira divina pela sua estrutural condição pecaminosa. No desenvolvimento e justificação de tal óptica, através de um elenco de protagonistas de histórias das civilizações antigas que foram agentes e/ou objectos de desejos perniciosos e adulterinos, assim como de grandes guerras e outros desastres, coloca-se a questão retórica que a seguir transcrevemos:

E se uma só mulher ao longo da história, Helena em Tróia, Semíramis na Babilónia, Cleópatra no Egipto, Lucrécia em Roma, foi causadora de tantos

males, o que não será da intemperança de muitas mulheres juntas?

A resposta já está contida na pergunta, pelo que a conclusão é radical e formulada em forma de denúncia e de acusação irrefragável patente nesta ilação generalizante: terão sido as mulheres com a sua descompostura que que “corromperam as virtudes dos filhos de Deus” 8

“Tanto no Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento, que teve lugar na Igreja da Encarnação de Lisboa em 1644, como na homilia dedicada a Santa Catarina, pregada na Universidade de Coimbra no ano de 1663, Vieira lança mão da parábola bíblica em que Cristo assemelhava o Reino dos Céus a dez virgens, sendo uma metade delas prudentes e a outra parte néscia (estúpida, nota do redator). De tal modo era a força desta mentalidade antifeminina que se chega a manifestar ali certa discordância, embora como recurso e para efeitos retóricos, a propósito da magnanimidade de Jesus Cristo para com as mulheres na primeira destas peças”, nas palavras de Cabanas e Franco.

Estaria Vieira sob o domínio da insensatez ao invés da prudência? Teria ele sido profundamente magoado por alguma mulher? O mais é impressionante é não termos conhecimento de vozes dissonantes. Foram todas silenciadas, certamente!

O problema talvez venha de antes, apostam os autores: “Na controvérsia entre ambos os sexos, foi em geral aceite, desde a ciência antiga, a ideia da debilidade física como qualidade imposta, uma propriedade com que não raro se procurou significar também a moral e a intelectual. A reflexão filosófica, tão marcante na cultura grega, em vez de se orientar para a modificação da mentalidade acerca da inferioridade da mulher, contribuiu ao invés para a sua racionalização e permanência, apresentando-a como um produto da natureza ou manifestação da vontade divina. Entre os defensores da tese antifeminista sobressaem Platão e Aristóteles. Relativamente ao primeiro, basta lembrar que entre os benefícios que agradecia aos deuses, mencionava, antes de mais, o ter sido criado livre e, posteriormente, o ter nascido homem e não mulher. Quanto ao segundo, é-lhe atribuída uma frase que veio a tornar-se famosa, segundo a qual a mulher não passaria de “homem falhado” (femina est mas occasionatus ou mulier est vir imperfectus, conforme a tradução latina feita na Idade Média). Tal formulação marcou com força a ideologia ocidental, pois reproduziu-se em grande parte nas enciclopédias medievais e tratados de medicina e chegou a Santo Tomás, que na sua Summa Theologica fala da deficiência que caracteriza o sexo feminino: ‘Mullier est aliquid deficiens’, continuando a repetir-se a partir daí em escritos religiosos.”

Diante de tal quadro, e com tantas mulheres a carregarem o mundo nas costas, lhes resta se unirem para lutar por dignidade e igualdade, já que os pensamentos, palavras e ações dos homens que Vieira educou são totalmente condenáveis.

Às mulheres, minhas irmãs, mães, tias, companheiras, filhas, parentes: o meu pedido de perdão, o meu respeito e minha solidariedade ativa!

 

Citações

 

 . José Eduardo Franco e Pedro Calafate. (org.) (2009). Obra Completa do Padre António Vieira. Lisboa: Círculo de Leitores

 . “Sermão da degolação de São João Baptista”, in Sermões, vol. VIII, p. 242

. Jean Delumeau, Le Péche et la peur: La culpabilisation en Occident (XIII-XVIII siécles), PP. 276-277.

4 . Apud Miguel Angel Nuñez Beltrán, La Oratória Sagrada de la Época del Barroco, p. 363. A tradução é dos autores Franco e Cabanas. Outra expressão também difamatória e registrada na parenética da época no que diz respeito ao comportamento da mulher é da de antiquum diaboli organuun, isto é, “antigo órgão de Satanás”.

5 . Claude-Gilbert Dubois, Le Baroque. Profondeurs de l’apparence, Paris, Larousse, 1973, p. 76.

6. Matias Aires, Reflexões sobre as Vaidades dos Homens, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, p. 89.

. “Sermão da Primeira Sexta-Feira de Quaresma, in Sermões, vol. II, pp. 302-303.

8. “Sermão Sétimo”, vol. XI, p. 52.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRANCO, José Eduardo e Maria Isabel Morán Cabanas, O Padre António Vieira e as Mulheres – o mito barroco do universo feminino, Porto: Campo das Letras – Editores, 2008

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Wagner Merije é poeta, escritor, jornalista, compositor, gestor cultural, curador, editor, educador e doutorando em Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de Coimbra/Portugal. Publicou os livros Mexidinho (2017), Astros e Estrelas – Memórias de um jovem jornalista em Londres (2017), Cidade em transe (2015), Viagem a Minas Gerais (2013), Torpedos (2012), Mobimento – Educação e Comunicação Mobile (2012) – finalista do Prêmio Jabuti 2013, e Turnê do Encantamento (2009). Tem músicas em discos, filmes, séries e programas de TV. Recebeu os prêmios Sesc Sated (2003), Prêmio Tim da Música Brasileira (2005), Rumos Itaú Cultural (2008), Lei de Incentivo à Cultura de Minas Gerais (2008-2010), FazCultura (2009), Prêmio da Música Brasileira (2013), 20ª Semana Cultural de Coimbra (2018), entre outros. www.merije.com.br

 

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