* Por Isadora Sinay *

O livro Você não deve esquecer nada: Memória e identidade na ficção de Philip Roth (Folhas de Relva |edições, 2022) nasceu de um interesse inicial em estudar o Holocausto em escritores judeus que não tivessem uma conexão familiar ou pessoal com esse evento histórico. Me interessava como pesquisadora pensar a relação com uma memória cultural que não correspondesse à história pessoal, além de olhar para como essa memória molda a arte de escritores judeus para além dos caminhos mais tradicionais de pesquisa, centrados nos testemunhos ou na ideia do trauma transmitido dentro de uma família.

Este recorte levou a um estudo da comunidade judaica dos Estados Unidos, na qual a maioria dos imigrantes chegou no final do século XIX e início do século XX, uma vez que em 1924 o país instituiu o sistema de cotas migratórias que, na prática, fechou as fronteiras para novos imigrantes judeus. Essa formação populacional teve como consequência que, na década de 1930, quando a ascensão do nazismo começa, já existisse nos Estados Unidos uma comunidade numérica e culturalmente muito significativa, assim como judeus que eram a terceira geração de imigrantes e que se consideravam plenamente americanos.

Portanto, quando o Holocausto acontece na Europa, há nos Estados Unidos um contingente considerável de judeus para quem essa experiência permanece distante e estrangeira e cuja história familiar não possui qualquer convergência com esse evento específico na história judaica. Além disso, nos anos que se seguem, o Holocausto se torna o símbolo maior de um aspecto definidor da experiência judaica até então: a perseguição e a violência. Contudo, embora existisse e, ainda exista, antissemitismo nos Estados Unidos, sua agressividade nunca se igualou a da Europa e essa comunidade possuía como experiência mais comum uma trajetória de ascensão social e prosperidade econômica. Todos esses elementos confluíram para tornar interessante o estudo da temática do Holocausto em escritores judeus americanos.

Dentre esse grupo de escritores, Philip Roth se destaca pela importância no cenário literário e investigação continuada de questões relativas à identidade judaica e principalmente dos paradoxos relativos a essa identidade em sua obra. Sendo um escritor muito estudado academicamente e abordado com frequência pela crítica literária de forma mais ampla, alguns clichês se construíram em torno da obra de Roth e o principal deles é a ideia de “fabulações da identidade”, um conceito que propõe que em seu trabalho a identidade possui uma natureza essencialmente “performática” e “instável”, ou seja, que Roth discordaria da possibilidade de fixação ou mesmo definição de qualquer forma de identidade. Minha pesquisa considera a parcela de inventividade e encenação presente na formulação que Roth faz do conceito de identidade, mas questiona a ideia de que ela seria plenamente passível de invenção ou mesmo performática.

Logo em um primeiro momento, a relação entre o uso do elemento autobiográfico e a temática do Holocausto chamou a atenção e se mostrou digna de investigação. Esse caminho revelou, na obra do escritor, uma intersecção entre identidade e o fazer literário. Embora alguns escritores possam escrever obras a respeito de pessoas e cenários muito diferentes de si, Roth não é um desses, o que inclusive lhe rendeu diversas críticas ao longo do tempo por parte da comunidade literária. Com algumas exceções – nas quais a mudança de cenário funciona como contraste a confirmar a regra – seus livros falam do universo judaico do nordeste dos Estados Unidos e seus narradores são homens muito parecidos com ele mesmo: homens judeus nascidos em Newark, que trabalham como escritores, intelectuais ou artistas. Esses personagens podem diferir muito entre si em termos de personalidade e vida interior, mas sua situação histórico-social é sempre a mesma e sempre igual a de seu autor e mesmo nos romances em que o protagonista é alguém distinto de Roth, A pastoral americana (Companhia das Letras, 1998, tradução de Rubens Figueiredo) e A marca humana (Companhia das Letras, 2002, tradução de Paulo Henriques Britto) sendo os maiores exemplos, Nathan Zuckerman é empregado como narrador. Assim, há sempre um ponto de vista nos romances de Roth, um olhar que é histórico e socialmente demarcado e que equivale, nesse sentido, ao olhar do autor. É possível para um escritor imaginar outras vidas, mas é impossível que ele olhe o mundo de algum lugar que não é o seu e essas vidas imaginadas são sempre, em última instância, um fruto das experiências e da formação do escritor. Romances como A pastoral americana e A marca humana, com seu recurso de história dentro da história, explicitam essa ideia, de que toda literatura é uma história contada por alguém, uma pessoa física que olha e que é localizada em um lugar geográfico e um momento histórico.

Essa abordagem complica ainda a ideia da autobiografia e demonstra sua relação com o conceito de identidade: uma vez que toda literatura é o fruto da consciência de um escritor, a qual é histórica e socialmente localizada e que qualquer narrativa imaginada é em última instância um reflexo das experiências que formaram essa consciência, então toda literatura é em alguma medida autobiográfica e a confusão entre autor e personagem empreendida de forma tão deliberada por Roth em romances a partir dos anos 90 é uma maneira de comunicar isso.

Essa proposta demonstra também porque o entendimento da identidade como fabulada não pode se dar totalmente. O escritor Philip Roth não pode olhar o mundo de algum lugar que não seja o seu. Mesmo que fantasiasse isso utilizando um personagem ficcional, a voz que conta a história ainda seria fundamentalmente a dele. Dessa forma, ele não pode ser qualquer um ou construir sua relação com o mundo de forma independente de seu lugar social e histórico.

Que essa determinação é social e histórica aparece já nas primeiras obras do autor: todos os contos de Adeus, Columbus (Companhia das Letras, 2006, tradução de Paulo Henriques Britto), mas sobretudo a novela que dá título à coletânea, falam de fraturas da sociedade judaica da época, o final dos anos 1950, causados por diferenças econômicas, históricas e sociais. No conto-título, um jovem judeu de classe trabalhadora e sua namorada de uma família que ascendeu economicamente se desencontram em boa medida por causa de concepções diferentes de suas identidades. No conto “Eli, o fanático”, um grupo de refugiados europeus chega a um subúrbio americano e a comunidade judaica local, determinada a construir uma identidade descolada da imagem histórica do judeu como vítima, é incapaz de oferecer solidariedade. Nesse conto, a ação se dá por causa do desencontro entre os judeus europeus e americanos, a experiência histórica é tão radicalmente diversa a ponto de se tornar incomunicável.

Já em O complexo de Portnoy, Roth conflui identidade judaica e masculinidade e cria esse personagem cujo monólogo parece, na superfície, ser apenas a respeito de questões sexuais, mas que fala dos paradoxos de ser um jovem judeu nos anos 1960, preso entre o antissemitismo social dos Estados Unidos e a possibilidade de ascensão social, entre a liberdade da década e os hábitos históricos da família judaica. O uso da sexualidade como reflexo de questões identitárias se explicita ainda mais na parte final do romance, quando Portnoy vai a Israel, se descobre impotente e cai em uma crise existencial profunda. Aqui, o Holocausto aparece não como incomunicável, mas incompreensível, um fardo histórico que o protagonista não pode se livrar, mas que ele também sabe onde alojar dentro de si mesmo e de sua experiência como judeu americano.

O abismo entre as experiências americanas e europeias é central na abordagem que o autor faz do Holocausto porque encapsula sua posição a respeito da literatura e de sua concepção de identidade: ninguém pode ter vivido as experiências que não viveu e Roth entende que para um judeu americano reivindicar uma identidade atrelada a uma experiência que lhe é desconhecida é em si um tipo de negacionismo histórico. Em uma entrevista para o London Sunday Times Roth diz que muito de sua literatura nasce de ter sido criado com uma definição histórica de judeu que não parecia corresponder a sua vivência como judeu, esse desencontro, ele explica, aparece em Nathan Zuckerman na forma de fantasmas da história judaica que o assombram e que ele precisa aprender a confrontar. É preciso que homens como Philip Roth e Nathan Zuckerman aprendam, simultaneamente, a se inserir na histórica judaica e a confrontar as diferenças dentro dela.

Essas reflexões se encenam muito abertamente em Operação Shylock, romance em que não apenas Philip Roth aparece como personagem, mas também Aaron Appelfeld, escritor israelense nascido na Europa e que sobreviveu ao Holocausto quando criança. Usando trechos de uma entrevista real que conduziu com Appelfeld, ele elabora como suas trajetórias são distintas e até mesmo opostas, mas ambas representam a identidade judaica contemporânea. No entanto, é preciso que cada um desses escritores seja o homem judeu que é, sem jamais tentar ser o outro.

Sendo assim, existe de fato em Roth uma rejeição de identidades fixas e essencialistas no sentido de que ele não concebe a existência do Judeu ou O Americano, mas de judeus e americanos cujas identidades são formadas por intersecções históricas específicas e inescapáveis. Aimee Pozorski, em uma análise da série Zuckerman acorrentado enxerga em Zuckerman um homem assombrado por fantasmas, alguns históricos – como o Holocausto – e alguns pessoais – como sua relação com o pai – e são esses fantasmas que, na palavra da crítica, tornam Zuckerman quem ele é e revelam que, apesar de todos os esforços que o personagem faz, ele não pode ser qualquer outro.

Essa ideia se alinha à análise que Bonnie Lyons, outra comentarista da obra de Roth, faz de O avesso da vida. Ela interpreta este romance, que opõe constantemente destinos diferentes para o mesmo personagem, como um exercício de “propostas ficcionais”, ou seja, estabelecido os termos de quem um personagem é e quais escolhas serão apresentadas a ele, a obra explora as diversas possibilidades contidas nesse cenário. No entanto, embora mostre o desenvolvimento narrativo – e por analogia histórica – como uma possibilidade dentre muitas, o romance sempre limita as possibilidades como consequência da personalidade de um personagem. Henry Zuckerman, irmão de Nathan, não faz as mesmas escolhas que ele e mesmo Nathan, que se crê um homem completamente livre para ser quem quiser, incluindo abrir mão de sua identidade judaica, descobre ao final que não é capaz de fazê-lo.

Entender o desenvolvimento de uma narrativa ou da história como uma possibilidade dentre muitas é o que move o romance final desse trabalho, O complô contra a América. Nesse livro Roth propõe uma história alternativa para os Estados Unidos, na qual Charles Lindenbergh teria vencido as eleições de 1942 e levado o país a sua própria versão do fascismo. No entanto, dois elementos são fundamentais nessa história: primeiro, o fascismo americano, e mesmo a perseguição aos judeus que Roth imagina para o país, não são iguais ao que ocorre na Europa, mas respondem a forças e tendências americanas específicas; em segundo lugar, o autor não inventa seu fascista, mas o retira da realidade e seu discurso espelha de perto visões antissemitas reais da época, como aquelas propagadas por Henry Ford. Ou seja, ao propor que as coisas pudessem ter acontecido de maneira distinta nos Estados Unidos, Roth não afirma que o país poderia ter se igualado à Europa, mas que teria desenvolvido sua própria versão do nazismo, condicionado pelos preconceitos e pela história interna.

Desse modo, mesmo ao imaginar, em certo sentido, um Holocausto na América, Roth não o imagina nos mesmos termos do genocídio europeu. Dentro da lógica de sua ficção, o Holocausto aparece como o delimitador histórico final, um evento incontornável e uma marca fixa que orienta todas essas diferentes identidades judaicas. Portanto, o Holocausto aparece na ficção de Philip Roth intimamente ligado ao tema da identidade e, dessa forma, ao elemento autobiográfico, porque em sua investigação de uma identidade judaica ele é a memória que deve ser confrontada por todos em suas diversas especificidades. Os homens de Roth não podem, como Jimmy Lustig chega a propor em O avesso da vida, “esquecer de lembrar”, eles são judeus e eles se lembram disso. Ao mesmo tempo, eles tampouco podem se esquecer de que não estavam lá e não podem fingir que estavam.

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Trecho inicial do livro de Isadora Sinay publicado pela Folhas de relva Edições. A autora é formada em cinema e doutora em literatura judaica pela Universidade de São Paulo. Crítica literária e ensaísta, já publicou em veículos como as revistas Deriva, Pasmas e os jornais O Estado de São Paulo e O Globo. Atua também como tradutora e professora.

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