* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Eu lembro perfeitamente da sensação de desconfiança que tive quando no final da década de 90 eu conversei pela primeira vez em um bate papo da internet.  Desconfiança sim, pois havia passado a tarde toda conversando, teclando propriamente dito sem escutar um segundo de voz humana, com pessoas que eu não via, não sabia quem eram e conhecia apenas o primeiro nome e um apelido. Esses últimos muitas vezes hilários e outros desconexos. Eu não conseguia acreditar que alguém estava de verdade, em algum ponto da cidade ou do país, conectado ao mesmo instante que eu naquele espaço que nem físico era. Eu achava que era uma grande tramoia da inteligência artificial do computador, ou seja, uma espécie de algoritmos que formulava frases e interagia de acordo com as frases que eu digitava no teclado. Computador para mim era uma novidade enorme naquela época. Eu dava os primeiros passos nas aulinhas de informática na escola do bairro e começava a me arriscar no mundo novo da internet que ouvi falar pela primeira vez na escola. O único sentimento que eu tinha com o que estava acontecendo na minha micro revolução cotidiana era o do medo. Porém, não demorou muito, e talvez tenham sido os hormônios da adolescência, para acontecer a metamorfose desse medo em uma oportunidade de conhecer alguém.

Como menino homossexual da periferia da cidade de São Paulo nessa época era impossível, diferente do que temos hoje em dia, qualquer relacionamento com outro garoto na escola ou outros espaços sociais. As salas de bate papo na internet passaram a ser uma possibilidade, mas não acreditava que poderia ter sentimento daquela maneira. Eu acreditava nos encontros tridimensionais da presença física. Eu, tomado pelos hormônios, precisava de tatos, olfatos e paladares. A paixão para mim deveria vir como nos romances entre as personagens que eu lia ou daqueles que eu assistia nas novelas. Foi quando conheci um outro rapaz da minha mesma idade na sala de bate papo. Conversamos por uma noite toda. Trocamos telefone e nos ligamos constantemente por toda semana. Não havia redes sociais, aplicativos de mensagens como hoje para trocar foto. A coisa funcionava completamente pela imaginação. De um lado eu me descrevia como magricelo, moreno claro, cabelos cacheados, altura, peso e tentativas e mais tentativas, quase literárias, de descrever o formato do rosto. O mesmo acontecia do outro lado sempre. A voz ao telefone ajudava a aguçar a imaginação. Caímos em paixão dessa maneira. Nos apaixonamos pela imaginação um do outro! Uma troca de fotos reveladas, impressas e enviadas pelo correio aconteceu semanas depois e um encontro pessoal mais algumas semanas à frente.

Em resumo minha adolescência virtual: claro que não deu certo. O mundo que criamos sem olfato, tato, visão e paladar era tomado pela imaginação individualizada. A imaginação, nessa relação virtual, era a possibilidade do infinitivo. A realidade trazia limitações dos locais que poderíamos nos encontrar, da falta de dinheiro, do armário da sexualidade que ambos adolescentes viviam aos dezessete anos e os preconceitos que rondava. Naquela época, claro aos dezessete anos, não tinha qualquer maturidade sobre e que me fez sentir na pele o complexo de Romeu e Julieta do amor-desespero e não um uma noção de amor-maduro como Antônio e Cleópatra que Shakespeare propõe, nesses dois textos basilares da literatura mundial, da importância do tempo, preparo e relacional para o amor. Hoje me sobe um pouco mais de lucidez e encarar o ordinário do cotidiano nas construções relacionais como traz a filósofa francesa Adèle Van Reeth em seu novo livro “La vie ordinarie” (2020) (A vida ordinária [tradução minha]), em que o ordinário não é o banal, mas as pequenas coisas que acontecem no cotidiano e que não são descartadas em uma “edição cinematográfica” que redes sociais, por exemplo, podem fazer da vida de cada um para mostrar apenas o palatável e o comercializado.

No frigir dos ovos, essa era a minha primeira experiência no que vou chamar de vida na Era dos aquários, ou seja, quando a gente, dentro do nosso aquário virtual, se apaixona pelo outro que também está no seu aquário. Hoje, principalmente pós pandemia e isolamento social, vivemos em dois mundos. Um primeiro mundo real de carne e osso e um segundo o virtual, no aquário, em que construímos sentimentos uns pelos outros, cada um no seu espaço individualizado, sentimentos de amor, ódio e etc. Não há mais limites entre o real e o virtual. Atire a primeira pedra quem não fez e tem uma amizade que nunca encontrou presencialmente ou que nunca fez um barraco com outrem que nunca respirou o mesmo ar que a pessoa pelos grupos dos aplicativos de mensagens ainda que não tenha vivido um grande romance virtual pelas vídeos chamadas da vida. Até terapia fazemos por vídeo conferências hoje e rola transferência! Os sonhos produzidos pelo inconsciente é que são ótimos. Meu psicanalista nunca está inteiro neles, está sendo aos pedaços como um Frankenstein de colagem das imagens da câmera do computador. A psicanálise tem um campo novo e imenso de estudos pela frente sobre a relações virtuais que despertam afetos e desejos sexuais. Ainda, como essas relações virtuais podem criar modelos inconscientes que nos lançam a procurar na realidade de carne e osso aquilo que acontece entre o ligar e desligar uma câmera.

É quase impossível nos dias de hoje dizer que não existe essa realidade paralela. A relação no mundo virtual é uma das coisas que mais me intriga que me fez escreve “Conectados & Desconectados” em 2021. Há um livro que me fez aprofundar ainda mais nesse mundo das eras dos aquários. O livro Laurette (Folhas de Relva Edições, 2022) da escritora com pseudônimo de Natasha Lins, publicado pela Editora Folha de Relvas, é atravessado por questão dos nossos tempos. Lins em seu livro faz uma auto narração de uma situação desse “lugar-comum” do mundo da internet. Um dia a narradora recebe um pedido de amizade no Facebook de Felipe, que lhe envia uma mensagem privada.  Felipe é um homem maduro de classe média portuguesa que é praticante de crossdressing, ou seja, pessoas que se vestem em determinados momentos com roupas e utensílios do gênero oposto, e de BDSM (Bondage, Discipline, Domination & Submission) o exercício de dominação e submissão com práticas sadomasoquista. Ele tem uma identidade inventada, Laurette, e pergunta a Natasha se ela não poderia ajudá-lo a “se transformar”. Natasha mora em Brighton e Laurette em Lisboa e mesmo assim ambos estabelecem uma conexão pela internet que vai envolvendo trocas de fotos, trocas de intimidades e estabelecem uma relação afetivo-sexual. É interessante como Natasha vai nos apresentando as faces da moeda de dominação-submissão na linguagem BDSM e como essa relação se diferencia de outras formas de opressão. Por exemplo, quando a narradora conta das suas relações tóxicas passadas com outros homens e mulheres que deixaram marcas psicológicas importantes na sua existência. Essa diferenciação, que posso até chamar de didática em “Laurette” feita por Lins, é importante para desmitificar na imaginação do senso comum que a prática BSDM é uma violência. Quando, em verdade, é apenas mais uma forma de exercício das sexualidades. Violência com o outro nas relações são as opressões de gênero, feminicídio, LGBTfobias, racismos e assédios morais comuns e que atravessam transversalmente, infelizmente, todas as relações humanas. Em “Laurette” o que vemos é a linguagem do BSDM puramente em expressões, roupas, cotidiano e prazeres.

Além de todo o universo e dessa linguagem que Lins vai nos entregando há o pano de fundo da narrativa que é os das vidas em aquários. Natasha e Laurette estabelecem uma relação afetiva virtual. Trocas de mensagens constantes, trocas de declarações de amor, despertar de sentimentos reais, brigas e planos. A narrativa de Lins passa por um tempo longo de relação com Laurette em que vai nos sendo apresentado de maneira sincera, humorada e sentimental o universo BDSM. Porém, depois de inúmeras peripécias homéricas, finalmente Natasha e Laurette conseguem marcar e se encontram em alguma cidade da Europa. Natasha é um peixinho que estava em um aquário. Laurette era outro. Cada um vivendo seu próprio mundo, sob pressão e ambiente que lhe são favoráveis. Repentinamente vão se colocar em um mesmo aquário para vivenciar a vida ordinária pela primeira vez. Será que vai acontecer como aqueles peixes-betas lindos, coloridos que vivem muito bem sozinhos em seus espaços minúsculos, mas se matam quando colocados no mesmo aquário? Daqui eu não passo para não dar spoiler desse livro fascinante, mas vou deixar uma pergunta para vocês correrem para o livro como vamos ansiosos para qualquer rede social quando há aquela notificação de que alguma das nossas amizades virtuais postou algo novo: o encontro físico de Natasha e Laurette vai ter o mesmo fim como naquele da minha adolescência na descoberta da existência em aquário?

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Referências Bibliográficas

Adèle Van Reeth, “La vie ordinaire”, Gallimard. 2020

Daniel Manzoni, “Conectados e Desconectados”, [livro eletrônico]. ed. do Autor, 2021.

Nathalia Lins, “Laurette”, Folha de Relvas, 2022.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com

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