Polêmica vazia ou capitalização do estupro: considerações sobre um parafuso espanado

femmes

Bruno Simões e Viviane Ka *

Nas últimas semanas, uma enxurrada de notícias e comentários transbordou na imprensa e nas redes sociais. O motivo: a cultura do estupro.  Houve uma mobilização em massa, por meio de uma petição da Comunidade Avaaz, para impedir a entrada no Brasil de um executive coach americano que ministra workshops – muito bem pagos por seus clientes – sobre como levar uma mulher para a cama, fazendo dela o seu brinquedo sexual.

Conhecido como “artista da pegação”, uma das técnicas mais polêmicas sobre as quais tecia preleções em aula consiste no sufocamento (choke) de suas presas, a ponto de elas, sem ter como reagir, cederem à investida de um homem devidamente cursado, capacitado e que adquiriu autoconfiança para se pôr à prova em testes que medem o poder do candidato a conquistador. Noutra ponta, surge o aparente escândalo de um professor-blogueiro-brasileiro que leciona em uma universidade americana, cujas abordagens em redes sociais, conforme relatos printados de algumas de suas seguidoras, expressavam um misto de tara por feministas com ilustrações de imagens de seu pênis.

Por fim, de modo bem mais acintoso, vêm à baila uma série de estudos, levantamentos e denúncias sobre a prática de estupro em universidades americanas (bem como na Faculdade de Medicina da USP), que costuma acontecer em festas promovidas por centros acadêmicos: além dos requintes de embebedamento das estudantes violadas por vários homens (estudantes e funcionários), grande parte das revelações assinalam uma cultura do acobertamento dos crimes, como se, pela tradição universitária, problemas desse tipo não constituíssem crimes da alçada jurídica e devessem assim ser resolvidos no silêncio administrativo de instituições de renome.

Como decorrência disso, vários segmentos sociais e movimentos feministas engajaram-se para rechaçar a entrada do coach no Brasil; o professor, até que se prove o contrário, continua sendo pichado nas redes; e nesta semana a Assembléia Legislativa de São Paulo abriu uma CPI para averiguação dos relatos de estupro na FMU – USP. E, como não poderia deixar ser: outras tantas vozes vieram em defesa do treinador, alegando que a liberdade de expressão e o direito de ir e vir de um cidadão qualquer estariam sendo violados; além das pichações, consta que milhares de e-mails e postagens têm sido feitos contra a invasão de privacidade e o consequente linchamento digital do professor; e no caso da faculdade vários comentários ainda resistem a admitir que a tradição das práticas de um centro acadêmico não é suficiente para normalizar, legitimar nem abrandar a violência cometida contra as estudantes.

Num antagonismo progressivamente acirrado e inevitavelmente truncado, onde milhares de pessoas de dedo em riste encetam juízos de valor a torto e a direito sem conhecimento de fato do ocorrido, paira, de todo modo, a impressão elementar de que, em ambientes civilizados, com reconhecida igualdade de direitos, as mulheres sabem se defender quando sentem que sofreram algum tipo de abuso.

Contudo, percebe-se como o apelo – por assim dizer – às aparições excêntricas configura atualmente um chamariz de atenções nas redes sociais, podendo angariar em poucas horas milhões de cliques e curtidas no mundo virtual. Mesmo que após toda celeuma o treinador tenha vindo num telejornal da CNN para pedir desculpas – com cara de criança pega fazendo bobagem – pelo mal-estar que provocou, afirmando não ter tido a intenção de ofender ninguém, não há como ignorar que, de uma maneira ou de outra, ele conseguiu muito mais notoriedade do que seria capaz de imaginar.

De forma similar, pelo bem ou pelo mal, o alarde em torno das supostas investidas do professor blogueiro não deixa de ser decorrência do lugar ao sol que tentou buscar, consagrando-o, independentemente de suas pretensões, como um centro de atenção. Em linhas gerais, esse comportamento tornou-se uma espécie de moeda corrente que busca se capitalizar quanto mais for acessado; sem nenhum exagero, podemos arriscar a leitura de que, por força desses apelos libidinais imersos numa forte concorrência, a fronteira entre o público e privado simplesmente tem deixado de fazer sentido. No jargão marqueteiro, toda e qualquer publicidade é uma boa publicidade.

À luz das subsequentes reações públicas, fica cada vez mais estampado e problematicamente usual que, ao contrário do clima de intimidade nas formas convencionais de relacionamento e sedução mutuamente consentidas, em que um pretendente casal procuraria se conhecer melhor para ver “o que pode rolar”, o treinador de clientes ávidos por posições de liderança, o professor blogueiro e uma parcela clandestina de comunidades universitárias escancararam, flertaram e até mesmo ultrapassaram brutalmente aquilo que, com alguma segurança, se tinha como atos de violência sexual.

Não à toa, diante desses sinais de agressividade, camuflados de produtos ofertados em vídeos e postagens que, segundo leis do livre mercado, buscariam apenas chamar atenção, movimentos feministas como Chega de Fiu Fiu, Marcha das Vadias, Rua Nua e diversos outros coletivos, surgem para unir as mulheres numa forte irmandade que as defenda de agressores e oportunistas de plantão, trabalhando ativamente para impedir que a incitação do ódio corroa as regras básicas de respeito e civilidade.

Inversões e presunções

A cultura pop permanece como referências nas predileções individuais. Os detentores de algum saber especial – outrora “intelectuais” – lançam-se como uma versão atualizada dos rock ’n’ roll stars. Estes, porém, valiam-se de armas mais gritantes: guitarras, drogas, bebedeiras e quebradeiras em quartos de hotel. Os possíveis objetos de desejos femininos atuais (professores, acadêmicos, escritores) explodiram com suas armas na mão.

A figura típica do tarado de tocaia atrás da moita trajando apenas uma capa de chuva envereda-se agora em polêmicas, através de suas contas nas redes sociais, tendo inevitavelmente em vista alcançar alguma visibilidade; até chegar a um porto controverso e completamente fora de controle em que, nessa confusão entre o público e o privado, podem ter suas vidas devassadas num mundo em que nada se perde e tudo se printa.

Representações do falo sob as vestes de todo um discurso intelectualizado, de lições em classe sobre técnicas abusivas de cantada e fantasias sexuais confidenciadas em conversas de chats e inbox podem extrapolar esse limiar da abordagem consentida, embrenhando-se naquilo que, uma vez tornado público, se mostra grosseiro e ofensivo.

Mas, afinal, estamos diante da boa e já quase velha querela da liberdade de expressão, em que cada um fala o que quer, contanto que responda pelos seus atos, ou de mais uma pura e simples imbecilidade, dentre tantas outras asneiras que buscam ser curtidas no universo virtual?

Além do mais, se levarmos em conta as muitas tipificações do imaginário machista, o que devemos considerar sobre os papéis enviesados da mulher “mal-amada”, que, segundo essa visão, viveria uma existência amarga e ressentida por conta de um déficit na sua vida sexual? Ou da quase mítica donzela que – a exemplo do gênero damsel in distress de vídeo games – na visão de muitos homens e até mesmo de várias mulheres, se faz de vítima desprotegida justamente porque quer ser salva e dominada; que por trás de um semblante inocente estaria no seu íntimo em busca de uma ruptura com seu comportamento recatado, situação essa em que justamente um misto de herói-predador-interventor viria em socorro atender aos seus desejos, suprir suas carências, como que investido de um dever ancestral de manutenção de equilíbrio na convivência social?

Uma mulher que é vista se expressando de maneira mau humorada é tida em geral como sexualmente mal resolvida e recalcada, enlameada num mangue profuso de impulsos fora do eixo; já um homem, desimpedido de qualquer sugestão sexual, pode alegar não ter conseguido quitar suas dívidas, que tem sofrido muitas cobranças profissionais no trabalho, que o seu time do coração não está indo bem no campeonato, ou ainda, pura e simplesmente, que ele é uma pessoa séria, valendo-se assim das justificativas aparentemente mais racionais que, vale dizer, costumam ser as mais satisfatórias.

Mas, por pior possa ser reconhecer isto, se tivermos em mente que durante séculos a mulher foi obrigada a conformar a sua natureza a partir do desejo do homem, não fica tão descabido também admitir que, embora os movimentos feministas emancipatórios tenham conseguido expressar e tornar significativas as suas reivindicações, muitas elementos na convivência entre os gêneros ainda não encontraram uma conciliação, e talvez nem encontrem.

Nas mil camadas nebulosas do desejo, vitimar a mulher em todo casos talvez seja no mínimo temerário. Afinal, se são tão independentes, por que elas simplesmente não bloqueiam os abusados de plantão, ou bebem menos num antro de raposas sedentas? Assim como muitos homens passaram risivelmente a se definir como brancos, ricos e heterossexuais, com diversas fantasias exercidas a seu bel prazer, há também mulheres pós-doutoras, de esquerda, feministas, que sabem muito bem quais são suas fantasias e como realizá-las.

Reparem, entretanto, que em ambos os casos trata-se de pessoas bem posicionadas que podem estabelecer o alvo de sua livre escolha, o que não se aplica de modo algum à jovem de periferia que, para sobreviver, faz qualquer negócio, topando por vinte reais até mesmo um programa com homens casados que “curtem” transar sem camisinha.

Afora membros de grupos sadomasoquistas, que travam contato e se submetem voluntariamente a experiências envolvendo vários graus de humilhação, não é cabível projetar que o desejo oculto das mulheres se dê exatamente conforme esse imaginário. Seria muita presunção subentender, por exemplo, que a mulher profissionalmente bem posicionada e em cargo de direção, que costuma manifestar um comportamento assertivo e por vezes pouco dócil, no fundo, quer mesmo um homem que a domine.

Admiradoras e seguidoras de homens de destaque não “dão a entender” nem permitem entrever o seu pedido de dominação ou sua quase súplica de querer satisfazer o seu ídolo; e ainda que ela o queira, a partir do momento em que ele passa a acreditar ter domínio efetivo sobre a situação, a ponto de se outorgar alguma ancestralidade dominadora, esse jogo de papéis e posições perde toda sutileza e pode descambar irremediavelmente para uma situação que ultrapassa consentimentos e redunda em atos violentos.

Se tentássemos adaptar, na atualidade, os métodos investigativos do período da Inquisição, feitos para verificar se a mulher, morta após inquérito, era de fato uma bruxa (amarrando uma pedra ao seu pescoço e lançando-a num lago para testar se seus poderes mágicos a fariam boiar, o que comprovaria seus atributos demoníacos), seria um tanto inconsistente violentar sexualmente uma mulher para provar que: (1) se ela sentir prazer, ela não passava de uma safada que, para sua sorte, foi satisfeita; (2) se fizer cara de que não entende o que está acontecendo – afinal, estavam apenas se conhecendo –, recusando a abordagem, ela ainda não se deu conta do que realmente gosta; ou, até mesmo, valendo-se da exceção que reforça a regra (3) que se tratou apenas de uma situação atípica em que o alvo não foi bem selecionado.

Avarentos do sexo

Suspendamos por ora o estereótipo da vítima suplicante (uma vistosa mulher de saia curta), e pensemos nesse tipo masculino, inconteste em sua virilidade, que sabe melhor do que ninguém do que as mulheres gostam. Como não dispomos nem pretendemos lançar mão de nenhuma evidência que comprove nossas impressões em analogia a uma causalidade estapafúrdia (a mulher dominadora que quer ser dominada), passemos também a presumir, de modo tão pouco evidente quanto a hipótese anterior, que os homens que se inscrevem nesses workshops, no fundo, nutrem desejo e sentem prazer de agredir as mulheres.

Em outras palavras, submeter uma mulher contra a sua vontade nada mais é do que dar vazão a um impulso “genuinamente” masculino de diminuir mulheres que põe em xeque a masculinidade à medida que ascendem profissionalmente (que alcançam cada vez mais independência social e financeira); ou um desejo de esculhambar feministas radicais, aplicando um pena capital à opositora, que por sinal não sabia que estava em guerra, já que tudo ia muito bem até que o tarado decidiu abrir a sua capa de chuva intelectual.

Estariam eles dispostos a abrir mão das alegadas dinâmicas profissionais esdrúxulas, voltadas para melhoria da sua estratégia de marketing pessoal, e a sair do armário, de uma vez por todas, para empunhar a bandeira do “eu sou um cafajeste porque eu sou mesmo assim, isso me dá prazer e, além do mais, o mundo precisa de cafajestes”, afirmando-se e impondo o seu desejo de violentar? Ou o melhor mesmo é deixar tudo isso no silêncio?

Como se vê, não estamos aqui diante tão somente de nenhuma infindável e espinhosa discussão político-jurídica sobre o tolhimento da liberdade de expressão, de cercear o deslocamento de um palestrante mundo afora, ou da indevida exposição pública de conversas íntimas, mas sim do exercício exacerbado de desejos e impulsos que, independentemente do consentimento, violentam o seu objeto, situação essa insustentável num mundo civilizado – esteja ou não ciente o lobo mau de nossos dias.

Ainda que cada vez menos caiba no discurso contemporâneo uma condenação moral dessas manifestações, tidas com mais facilidade no passado como indecentes, indecorosas e incivis, é preciso de todo modo banir, como fazem os movimentos feministas, as atitudes que se aproveitam e acirram os ânimos de mentes fracas, levando-as ao ódio, à descriminação e à violência sexual. Mas não se trata apenas de levar em conta consequências nefastas de notável irresponsabilidade, e que acabam sempre se reduzindo à formula tosca de imposição da força física ou de ofensas lançadas à revelia do sexo frágil.

O que talvez esteja em jogo na condenação dessas disputas insanas de atenção nas redes sociais, que parecem ter como meta capitalizar insights de machos predadores, de avaros acumuladores de mulheres conquistadas, bem como nas controversas estratégias de sedução que querem criar uma vítima para morder sua isca, não é a simples censura ou vontade repressora de punir uma figura grotesca.

À parte a falta de noção do lado insuportável do politicamente correto, essas manifestações, críticas e movimentos buscam empreender uma luta mais radical pela conscientização de que, na altura do campeonato, o imaginário culturalmente masculino só pode ter algum valor de realidade no livre consentimento das partes envolvidas e na medida em que houver também a concretização de um imaginário feminino – além, é claro, numa aspiração mais ampla, de uma luta pela erradicação de qualquer desrespeito ao ser humano.

*

Bruno Simões é Doutor em Filosofia FFLCH-USP e professor de Pensamento Crítico e Ética do Insper

Viviane Ka é escritora e editora da São Paulo Review