O vírus selvagem

virus

Da redação *

Na segunda-feira (1º), Dia Mundial de Luta Contra a Aids, o governo federal divulgou dados relativos à infecção pelo HIV no Brasil. O estudo mostra que cerca de 734 mil pessoas são portadores do HIV no País. Deste total, 80% (589 mil) foram diagnosticadas. Os outros não sabem que estão infectados.

“Mais de 30 anos depois do surgimento da Aids, o grande problema ainda é a ignorância. Escrevi um livro sobre Aids – ‘Vírus Selvagem’ – a pedido da Editora Siciliano, que acabou falindo. O livro ficou na gaveta. Durante anos, ofereci os originais a várias editoras. De todas, ouvi só um recado: ‘Esse assunto não interessa a ninguém. Não vende!’ Hoje, no entanto, se sabe que os números de infectados sobem. Aqueles que comandam as editoras preferem manter a população na ignorância. Afinal, segundo dizem, Aids não vende.” A frase é do jornalista e escritor Carlos Hee.

Ele concedeu um capítulo do seu livro inédito à São Paulo Review. Leia abaixo:     

Sentença

A primeira vez que ele ouvi falar em CD41 não fazia a mínima idéia do que se tratava. Era apenas uma dupla de letras consoantes e um número que não tinham nenhum significado. Mas, pela expressão de apreensão daquela médica ao seu lado, esse tal de CD4 deveria ser alguma coisa muito importante. O ar grave da doutora, que sempre usava máscara e luvas de borracha para examinar se a sua respiração estava melhorando, se a pressão se mantinha estável e se ele não estava com febre, queria dizer alguma coisa não muito boa. Mas depois de alguns segundos, em que pôs em dúvida o nível do CD4 – ou seja, era algo que fazia parte do seu organismo e poderia estar em níveis perigosos, mas quais seriam estes níveis? Onde se encontrava esse CD4? – ela passou a listar outras siglas sem significado para ele.

Na seqüência, não só esta sigla esquisita começava a fazer parte de um vocabulário hermético e sem significado para ele, um total ignorante, tentando entender uma pneumonia que havia surgido sem nenhum aviso prévio. CD81, Elisa2, Western-Blot3

Elisa? Esse, pelo menos, ele fazia idéia do que se tratava.

“Daqui a pouco, outra médica vai vir aqui para falar com você”. – Ela falou com a devida imparcialidade médica. – “E te explica tudo”. – O que dava por encerrada mais aquela visita, na qual foram despejadas uma dezena de estranhas informações, das quais só entendera que a pneumonia ainda não havia sido debelada. O que queria dizer que ele teria de ficar com aquele cateter  no braço, sendo medicado e esperando uma hora que ela entrasse naquele quarto para lhe dar alta.

Nem meia hora depois, uma outra médica, tão simpática quanto a anterior, e com o distanciamento característicos desses profissionais, entrou e se apresentou.

“Boa tarde, eu sou Amélia, infectologista”. – Ela disse, estendendo a mão direita sem luvas de borracha. –  “Seus exames ficaram prontos e não são nada bons”.

O rosto da doutora Amélia não transparecia nenhuma emoção. O jeito de falar era absolutamente profissional ou natural. O que não era bom, ele pensou. Dava a impressão, que não tinha qualquer valor de bom ou ruim para ela. Estava apenas cumprindo uma missão para a qual fora designada por alguma escala de serviço. Era ela a pessoa que, por estar trabalhando naquela hora, havia recebido a tarefa de informar o paciente do apartamento 705 qual era seu estado de saúde naquele momento.

“Seu teste Elisa deu reagente”. – Prosseguiu. – “Isso significa que você é portador do vírus HIV e está com Aids”.

Sua expressão ao dizer isso não mostrou qualquer mudança. Era completamente gelada, sem emoção, sem um piscar de olhos. Havia cumprido ser dever. A informação estava dada. Assim, sem mais nem menos, sem rodeios. A pausa que se seguiu, provavelmente, era apenas para observar o rosto de quem ouvira a notícia. Pela fronte, talvez, surgiu um ponto de interrogação, como se dissesse: “Pode espernear, cair no berreiro, ter uma parada cardíaca. Estamos de prontidão e preparados. O desfibrilador está só esperando lá fora para entrar”.

“Foi feito um primeiro teste, que deu positivo”. Ela continuou depois de ter à sua frente a mesmo expressão sem expressão do paciente. – “Vamos fazer outro teste e, se der positivo, precisamos fazer o Western-Blot”.

Lá estava de novo aquela expressão, ou seria um nome, como Elisa? Era a segunda vez em menos de uma hora que ele ouvia aquilo e, desta vez, alguém iria, talvez, dar uma  explicação sobre o significado daquilo.

“Este primeiro teste pode não ser conclusivo. Depois do segundo, será feito o Western-Blot, que é um exame mais complexo e detalhado, o que não deixa qualquer dúvida quanto ao diagnóstico”.

Ela cumpria seu trabalho muito bem. Apesar de não dar detalhes sobre como os exames eram feitos, quem os havia criado ou mesmo o quanto eram confiáveis. Afinal, quem estava falando desses testes era alguém que os conhecia. E falava exatamente para quem não tinha idéia do que se tratava. Somente uma das siglas era conhecida e tinha um significado tenebroso. Aids, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, trocando em miúdos, ela só tinha anunciado a morte eminente de alguém que não tinha mais nenhuma defesa. Indefeso em qualquer nível. Qual a importância se o nível do tal CD4 está baixo se não existe nada que pode mudar aquele quadro de infeção?

A sentença de morte havia sido dada e, como um juiz experiente, que sabe da culpabilidade do réu, mesmo depois de uma defesa brilhante do advogado de defesa, a doutora Amélia pronunciou cada palavra sem qualquer aparente pesar. Era apenas sua função.

“Não é possível eu estar com Aids”. – Foi a primeira coisa que ele disse depois de só ouvir, refutando da mesma forma inexpressiva que fora dada a notícia. – “Não faço sexo de risco há mais de seis anos…”

“Doutora Amélia, nós usamos camisinha há seis anos, seu diagnóstico parece ser definitivo”. – De repente, ele se deu conta de que não estava sozinho com a médica infectologista. Claro, Marcelo estava com ele o tempo todo, desde a hora que fora internado, havia quatro dias. – “Se ele está com Aids, a probabilidade de eu também estar infectado é enorme”. – Finalmente alguma emoção tomava conta daquele apartamento de hospital.

A voz de Marcelo não escondia uma terrível apreensão. O sol que estava a pino do outro lado daquela janela fora coberto por uma nuvem negra ameaçadora, uma tempestade de proporções sobrenaturais se formava sobre o rosto perfeito de quem não conseguia disfarçar o pavor.

“Você, como parceiro, deve fazer o teste também para ver se é positivo. Eu recomendo que faça logo”. – Disparou Amélia, diante da reação da pessoa errada para ela, pois a vítima continuava impassível, como se assistisse a um espetáculo sem a devida atenção.

“Eu já fiz o teste anti-HIV e deu negativo”. – Marcelo apressou-se a informar. – “Faz cinco anos que eu fiz o teste e deu negativo, e desde então sempre usamos preservativo.”

Estava na hora de o paciente tomar a palavra. Afinal, era ele a pessoa mais envolvida naquela enxurrada. Além de estar sendo declarado um morto eminente, estava em xeque uma questão moral. Um casamento de 16 anos estava prestes a ser destruído por uma médica que o conhecera havia menos de uma hora. Além de decretar sua morte, colocava em dúvida sua fidelidade. Ou seja, ele contraíra o vírus letal em alguma aventura e não fora com Marcelo. Além de doente, era um canalha que trouxera a peste para dentro de casa.

“Eu nunca fiz o teste, realmente, porque o Marcelo havia feito e deu negativo. E, antes disso, nós transamos durante dez anos sem camisinha. Se eu fosse positivo, o resultado dele também seria positivo, não é?” – Perguntou para tentar entrar naquela cena que se formara à sua frente. Afinal, ele era o personagem principal ou não?

“Realmente, a probabilidade de dar positivo, nesse caso, é muito remota. Por isso que eu disse que são necessários mais testes para comprovar esse primeiro resultado”. – Respondeu Amélia, ainda sem nenhuma expressão.

“Deixa eu pôr a senhora ao par da minha vida sexual: antes do Marcelo, eu tive um caso de cinco anos e ele também havia feito o teste e também era negativo. Não vejo porque eu seria positivo. Mesmo porque meu comportamento era de risco nos anos anteriores a estes relacionamentos, quando ninguém fazia sexo seguro.”

“Não quero ser conclusiva, mas meu dever é informá-lo do seu estado de saúde. Sua pneumonia é resultado de uma infeção, provavelmente, provocada pelo HIV. Outros exames vão ser feitos e poderemos, então, ter a certeza de se você é portador ou não. Vou mandar uma enfermeira para a coleta do sangue e vamos ver se dá mais uma vez positivo. Se der negativo, vamos fazer o Western-Blot e conferir os níveis do CD4.”

Lá estava o CD4 de novo. E assim, com esse último som, ela deixou o quarto e dois homens mudos, sem saber o que falar um ao outro.

Guilherme parecia não ter entendido a mensagem. Pelo seu cérebro passavam centenas de pensamentos sem qualquer ligação. Mas o mais forte deles se referia à médica que acabara de deixar o quarto. “Como ela pode ter tanta certeza de uma coisa, se nem eu mesmo sei o que pode ter acontecido? Fria, absolutamente gelada. Vem aqui e fala esse monte de asneira, sem mais nem menos. Como consegue não passar emoção nenhuma no que ela estava dizendo? Deve ter alguma disciplina na faculdade que ensina esses médicos a serem assim, sem emoção. Afinal, o que eu sou aqui nessa cama?”

Nada fazia muito sentido, enquanto ele olhava para uma reprodução do Abapuru de Tarsila do Amaral em frente à cama. Nem a presença de Marcelo, sentado no sofá, ao lado, o tirava daquela sensação de impotência diante de enfermeiras, médicos e religiosos, que passavam diariamente por ali. Ninguém tinha noção do que passava por sua cabeça naqueles poucos minutos. Não era pânico nem medo. Era indignação. Tudo estava sendo feito sem o seu consentimento. Nunca qualquer uma daquelas pessoas lhe perguntara se já fizera o teste ou não. Se tinha um comportamento de risco ou não. Tudo era dito como uma sentença sem que ele pudesse dar qualquer opinião. Da mesma forma que lhe espetavam agulhas várias vezes por dia, colocavam aquele termômetro sob seu braço e mediam a pressão, uma pessoa chegou e pronunciou a sentença: “Seus dias estão contados, você tem Aids.”

“Faz sentido o que ela disse”. – Marcelo quebrou o silêncio.

“Como faz sentido? Não pode ser, se eu tivesse HIV, você também seria positivo, o que não é”. – Foi a única justificativa que Guilherme encontrou naquele instante.

“Ela disse que ainda precisa fazer outros exames para confirmar o diagnóstico”. – Marcelo continuou, com aparente calma. – “Você tem uma infeção que pode ter sido provocada pelo HIV. Eles estão estudando seu caso.”

O que não fazia sentido para Guilherme era aquela calma de seu companheiro diante daqueles últimos dez ou quinze minutos. Não era Marcelo que se mantinha impassível perante acontecimentos inesperados e, naquele caso, trágicos. Aquela reação soava estranha e falsa. No olhar do companheiro não havia desespero, mas desconfiança.

“Ainda bem que eu decidi, apesar de você ser contrário, que usássemos camisinha”. – Marcelo deixava transparecer, naquela frase, o que lhe passava pelo pensamento. Tudo estava acontecendo naquele quarto de hospital, daquela forma, naquele instante, como uma denúncia. Guilherme o havia traído. Em algum momento, que ele não saberia dizer quando, mas havia acontecido. E o pior, trouxe com ele o que poderia haver de pior, a morte.

Guilherme ouviu, mas não quis entender de chofre. Preferiu passar por cima do comentário. Aquela não era a hora de iniciar uma discussão. Não sentia forças suficientes para argumentar, para se defender de uma acusação velada. Preferiu deixar para depois, quando aquela mesma médica entrasse mais uma vez no quarto para informar que tudo não havia passado de um engano. Um outro teste daria negativo e ele não teria com o que se preocupar. Quem sabe até ela pedisse desculpas.

Ele sabia que não tinha feito nada que pudesse lhe mandar para o cadafalso. A não ser aquele sonho com Adalberto e Marquinhos. Será que tinha sido um aviso? Por que ele sonhara com aqueles amigos que há muito haviam morrido devido à peste?

O dia era longo naquele quarto. Nem dormir ele conseguia. A cada hora, uma enfermeira entrava para checar a bolsa de soro e medicamentos. Medir sua temperatura e checar sua pressão. De hora em hora. E não havia nem febre nem alteração de pressão. Para Guilherme tudo estava normal. Ele se sentia bem. Não sentia nenhuma alteração em seu corpo. A não se quando lhe falavam que ele estava muito pálido. Mas isso não tinha nenhuma importância para ele. Afinal, fazia anos que ele não se deitava em alguma praia e se deixava queimar pelo sol de verão. “Nunca mais tive tempo de ir à praia”, pensou. E conseguiu dormir.

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notas: 

1 CD4 – As células T (ou linfócitos-T) são células brancas que têm um importante papel no sistema imunológico. Há dois tipos de células T: umas têm moléculas chamadas CD4 na sua superfície; estas células “helper” (auxiliadoras) comandam a resposta corporal a certos microorganismos como por exemplo os vírus; as outras células T, que têm uma molécula chamada CD8 na sua superfície, destruem as células que estão infectadas e produzem substâncias antivírais. O HIV é capaz de atacar por si só a molécula CD4, fazendo com que o vírus entre e infecte as células.

2 O teste mais utilizado nas investigações diagnósticas, para detecção de anticorpos anti-HIV no organismo, é o Elisa. Ele procura no sangue do indivíduo os anticorpos que, naturalmente, o corpo desenvolve em resposta à infecção pelo HIV. O resultado desse teste é rápido, mas, ocasionalmente, pode surgir um falso positivo (resultado positivo para o HIV, em uma pessoa não contaminada pelo vírus). Por isso, caso o resultado seja positivo, aconselha-se repetir o Elisa e, em seguida, fazer o teste de Western Blot para que não restem quaisquer dúvidas.

3 O Western-Blot é um teste confirmatório. Assim, só é realizado quando a amostra de sangue do paciente apresentar resultado positivo no teste Elisa. Para sua realização, utiliza-se uma tira de nitrocelulose que contém algumas proteínas do HIV fixadas. O soro ou plasma do paciente é então adicionado, ficando em contato com a tira de nitrocelulose. Após uma seqüência de etapas, em que são adicionados diferentes tipos de reagentes, o resultado é fornecido por meio de leitura visual, que é feita pelo profissional responsável. 

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