E ntro para tomar um chopp no final de expediente. É quinta-feira de primavera, faz frio para a época do ano e o bar está vazio. Com o ambiente repleto de mesas à espera de clientes, um estranho entra e senta-se ao meu lado. Um incômodo preenche o meio metro que nos separa.

– Boa tarde – digo para quebrar o gelo.

– Boas.

Não compreendo sua reação. Fala seca, segura, firme, dá-me a resposta precisa: o silêncio. Compreendo, embora contrariado. Como um desconhecido invade meu espaço? Desde pequeno sou afeito ao preenchimento equilibrado dos ambientes. Simetria. Fere minha ânsia estética haver duas pessoas sentadas próximas enquanto outras mesas denunciam, com seus fantasmas, algo fora do normal.

Os segundos parecem eternos. E o incômodo transforma-se em raiva. Aquele indivíduo acabou de entrar na minha vida sem pedir licença. Sua falta de civilidade, ademais, é infame. É incapaz de dar continuidade a uma conversa.

Atribuo, em pensamento, desgraças futuras ao homem. Um sujeito sem noção de espaço, seco no trato, um desocupado e ainda por cima seguro. Isso fere todos os princípios de bom senso, denota falta de subjetividade. É um burro. Os burros são seguros, pois não tem noção das imperfeições.

Tá aí uma conclusão que me fortalece. Um homem burro. Sinto-me superior, refaço-me na cadeira e retomo a dignidade. Ele, se quiser, que venha a mim, que responderei de forma cordial, como fazem os grã-finos. Sim, como os grã-finos, que usam muito bem a educação civilizatória para humilhar quem lhes dirige a palavra. Mas, mesmo com minha postura altiva e declarada superioridade, o homem não se altera. De nada adianta minha autoconfiança. Ele não a reconhece.

Vem-me, então, a fúria. Penso em solicitar ao garçom mudá-lo de mesa. Não. Jamais me rebaixaria a esse nível. Ele que o faça, se estiver incomodado. Eu cheguei primeiro, tenho a prerrogativa da escolha. Disso, ao menos, não abro mão.

Todavia, contrariado, cogito me retirar. Preservaria minha dignidade. O silêncio causador deste imbróglio mental me seria útil neste momento e o estranho não saberia o motivo da minha retirada, portanto, não devendo eu me preocupar. Ao ponto de me levantar, inclino a cabeça para o lado e observo-o. Ele, imóvel.

Altero meus planos, fico um pouco mais. Parece-me calmo, o sujeito. De uma calma até reconfortante. Penso em minha condição humana e me acomete, repentinamente, uma vergonha descomunal. Sinto-me refém de pensamentos autorreflexivos que apontam a um sujeito cru, descrente, afeito a modos de comportamento fúteis e descabidos que fazem deste corpo algo desnecessário à evolução da espécie.

O homem ao meu lado, neste momento, me é insuportável. Não sua aparência ou personalidade, que desconheço. Aliás, desconheço sua vida. E eu aqui o amaldiçoando com minhas bobagens delirantes de estúpido representante mediano da dinastia sapiens, eu, um ser ridiculamente preso em meus próprios pensamentos que não admite a presença do semelhante. Limitado por uma parca capacidade reflexiva, da qual me orgulho tanto. Reafirmando minha pretensa sabedoria ao observar os espelhos acinzentados do entardecer, os quais não mostram senão minha ignorância. Eu sou um vampiro.

Eu. Um vampiro que não se reconhece no reflexo do olhar alheio. Cada vez mais fechado num cotidiano obtuso. Sugado por uma estrutura social que me aprisiona em seu conforto, aproveito-me dela. Tenho tudo ao meu alcance e ainda assim me distancio dos meus objetivos, já varridos pelo esquecimento. Fiz questão de esquecê-los à medida que conquistava meu espaço, ou melhor, minha clausura. Idealizei minha moradia e construí, tijolo por tijolo, os alicerces da mesquinharia. A busca por cimento passou a ser a razão da minha caminhada. Resta apenas a mágoa amarga da ausência de lembrança e a ferida no peito, que acusa, cronicamente e em batidas secas, um sangramento oculto, gota a gota, que me levará à morte num leito de UTI, pouco antes de conquistar minha aposentadoria.

Um lampejo de vida acende o ódio que sinto de mim mesmo. Segue-se o alívio esperançoso, fruto agridoce da autocomiseração. De soslaio, espio novamente o sujeito. E se o for um benfeitor? Tem um sorriso esboçado no rosto. Leve, agradável, que me apraz. Quero reconfortar-me em sua paz, a mesma paz quase excomungada há instantes. Torço para que ele não se vá. “Fique aqui mais um pouco”, imploro em pensamentos. “Dê-me ao menos a oportunidade de me desculpar”.  Quero conversar, mas tenho vergonha. Pediria desculpas? Mas desculpas pelo que, se não o ofendi? Tá certo, pensei bobagens, mas agora até o admiro. Já sei, vou oferecer-lhe um chopp. Em sinal de paz.

Absorto, entregue ao devaneio, tomo um susto.

– Garçom – Chama o homem. – Mais um chopp. E outro para o amigo aqui ao lado.

Inclino a cabeça, agradeço e levanto o copo cheio a propor um brinde. Com um aceno discreto, o homem repete meu gesto e torna novamente o olhar para frente, em silêncio. Uma atitude cordial, sem dúvida. Estranha, mas elegante e bastante civilizada.

Penso se o sujeito tem intenções que desconheço, suposição que logo se esvai. Meu olhar oblíquo nota sua postura ereta, imóvel, reflexiva até, e revela um bem-estar conquistado a duras penas. Indago-me se o homem não precisa, apenas, de companhia. Da sua vida não sei nada, mas, neste momento, sinto-me seu melhor amigo.

Recordo-me da infância, quando brincávamos com outras crianças sem dizer uma palavra, por horas, atrapalhados pelo chamado das mães ao banho e jantar, ao que retrucávamos com veemência.

Uma mesa de bar é lugar para amigos. Amigos que se formam nas mesas de bar. Aqui, neste local, agrada-nos oferecer um chopp ao colega, como quando oferecíamos o carrinho de mão ao amigo no parque. Nestes parques de diversões modernos, talvez haja espaço para redimirmos nossas diferenças e olharmos o outro com benevolência. Este homem certamente percebeu isso antes de mim. Agradeço-lhe, em silêncio, pelo ensinamento.

O admirável amigo, à medida que anoitece e passam-se os chopps pelas mesas, parece mais à vontade. Deve ter tido um dia ruim e veio a mim procurar solidariedade. Agora, o bar está cheio e as vozes se avolumam. O barulho nos inquieta a ambos e nos contorcemos nas cadeiras.

Interrompida nossa brincadeira, o estranho se levanta da mesa e diz, educadamente.

– Boa noite amigo. Obrigado pela companhia.

– Tenha uma boa noite. Até qualquer dia – Retribuo.

Fico mais uns minutos sorvendo a breve amizade de um final de tarde. É tempo de tomar mais um chopp e refletir sobre a doce condição humana. Peço a conta ao garçom, pago, deixo uma generosa gorjeta, levanto-me, ajeito o paletó e vou embora.

*

Ricardo Assumpção Fernandes é escritor, publicitário, vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance Através (Folhas de Relva Edições).

 

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