* Por Marcos Vinícius Almeida *

Torcedor do Liverpool (e da Juventus da Mooca), André de Leones publica agora seu sexto romance, Eufrates. Nascido em Goiânia, mas criado na pequena Silvânia, o escritor vive a mais de uma década na capital paulista. Além de ficção, escreve resenhas e críticas para jornais, como O Estado de S. Paulo, e mantém ativo seu blog, onde trata principalmente de cinema, literatura (e Liverpool). Nessa breve entrevista, o escritor comenta o bom momento da sua carreira e suas preferências estéticas.

 Esse parece ser um ano promissor para sua obra, a despeito das notícias apocalípticas que apontam um mercado editorial à beira do colapso. No mesmo momento em que o filme Dias vazios, adaptação do seu romance Hoje está um dia morto (Prêmio Sesc de Literatura, 2005) acaba de chegar aos cinemas, Eufrates, seu sexto romance, vai sair pelo tradicional selo José Olympio. Como você enxerga esse momento da sua carreira, onde o livro de estreia acaba, de forma ou de outra, atravessando o novo? Passa um filme na sua cabeça? Não obstante a situação calamitosa da economia do país e, por decorrência, do mercado editorial, estou muito feliz com o momento atual da minha carreira. Dias vazios é uma bela adaptação do meu romance de estreia, e o que mais curto nela é justamente a liberdade com que o diretor Robney Bruno Almeida abordou o material original. O filme chegará ao circuito comercial em 2019 e vem fazendo bonito em festivais. E Eufrates é um projeto especial porque atravessa boa parte da minha carreira, na medida em que o romance foi construído a partir de narrativas, fragmentos e “restos” nos quais trabalhei no decorrer dos últimos doze anos. Logo, até por Eufrates ser o que é, passa, sim, um filme na minha cabeça. Quando me debrucei sobre o livro, especialmente nas derradeiras revisões e durante o trabalho de edição (e aqui agradeço à minha editora Luiza Miranda, que me ajudou a “encontrar” o melhor romance possível em meio àquele emaranhado de possibilidades), foi como me debruçar sobre tudo aquilo que escrevi até ali, pois havia um pouco de tudo, desde o tom desbragado de Hoje está um dia morto até a aspereza de Abaixo do paraíso, passando pela forma como estruturei Como desaparecer completamente e Terra de casas vazias.

Em um texto no seu blog, você apresenta Eufrates como um romance marcado por três deformações: “deformação afetiva, deformação familiar, deformação política”. Em relação ao seu trabalho anterior, Abaixo do paraíso (Rocco, 2016), que foi muito bem recebido pela crítica, algumas resenhas ressaltaram esse encontro entre o drama íntimo das personagens e o drama político do país. É uma questão literária que te interessa? Vamos encontrar algo disso em Eufrates? É uma questão que me interessa, até por ser inescapável (e não só pelas atuais circunstâncias da nossa vida política e institucional), mas em Eufrates ela não é abordada tão diretamente quanto em Abaixo do paraíso. Neste, havia um envolvimento direto do protagonista com as engrenagens imundas dessa nossa velha República. Em Eufrates, os personagens conversam a respeito de algumas coisas (por exemplo: as eleições de 2002 ou as manifestações de 2013), mas não se colocam no olho do furacão. Logo, em se tratando desse aspecto, o que me interessou abordar no novo romance é de outra ordem: dada a nossa miséria ideológica, dada a depauperação político-partidária, é possível se envolver com a vida propriamente política do Brasil? E mais: ainda existe uma vida propriamente política no Brasil? Adianto desde já que não trago respostas, mas essas e outras questões são colocadas (muitas vezes implicitamente) no decorrer da narrativa.

Em várias oportunidades, seja em entrevistas, nos textos do seu blog, ou nas críticas no Estadão, você costuma dizer que não gosta de livros onde “tudo está encaixado”, onde cada ação ou fala da personagem parece responder as ordens de um sentido maior – e pleno – do romance. Esse seu incômodo literário é, no fim das contas, inspirado no fato de que na vida tudo é absurdo e nada se encaixa completamente? Sim, tem a ver com isso. Espelhar a disfuncionalidade do mundo na/pela disfuncionalidade narrativa. Gosto de diálogos soltos, finais inconclusos, passagens que se desgrudam (jamais por completo, claro) do eixo central do romance, como se sugerissem outras possibilidades ou algum desvio inesperado. Não é por acaso que meus personagens gostam de flanar por aí; a gente nunca sabe o que a próxima esquina vai trazer, e o melhor é se manter aberto ao que quer que seja. E eu gosto de flanar pelas cabeças dos meus personagens, também, dar corda para suas digressões e lembranças, permitir que elas instaurem um ritmo próprio, em que coisas mínimas, prosaicas, são ao menos referidas, quando não presentificadas, trazidas à superfície do romance, mesmo que momentaneamente. Também aprecio estruturas que não sejam retilíneas, pontuadas por determinadas repetições, e aqui são as situações que muitas vezes se espelham: cada um é cada um, mas há uma unidade subjacente, circunstâncias similares, vivências que dialogam (ou podem dialogar) umas com as outras.

Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro? Tenho vários projetos em mente. Meus cadernos estão sempre à mão, e anoto ideias, coisas que pretendo fazer. Há planos para dois outros romances envolvendo os personagens de Abaixo do paraíso, um “prequel” (protagonizado pela mãe de Cristiano e situado no final da década de 1970) e uma sequência. São coisas que anotei ainda na época em que trabalhava no romance (2014, por aí) e que não cheguei a desenvolver muito. Também me interessa retomar o personagem Moshe (de Eufrates), e para esse projeto tenho um plano bem mais detalhado, com várias passagens rascunhadas. Mas ainda não embarquei de fato em nenhum desses projetos. Pego um caderno de vez em quando e anoto algumas coisas que me ocorrem. O intervalo entre um livro e outro varia um bocado. Em se tratando dos livros mais recentes, terminei Terra de casas vazias em julho de 2012 e comecei a trabalhar em Abaixo do paraíso em janeiro de 2013; e terminei Abaixo em janeiro de 2015 e comecei a “montar” Eufrates em meados de 2016. Ou seja, varia de seis meses a um ano, um ano e pouco, mas estou sempre anotando coisas no decorrer desses intervalos. Não viajo sem meus cadernos.

 O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever? Eu diria para ler, e ler bastante. Acho que é o mais importante. Eu não saberia dizer a razão pela qual comecei a escrever. Gostava muito de ler, sempre gostei, e quando dei por mim rascunhava as minhas próprias histórias.

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Leia abaixo trecho de Eufrates:

Antes que a coisa desandasse, antes que a gritaria tomasse a sala, quando os dois casais papeavam na cozinha, Iara depois se lembraria de observar como, não muito depois de se apresentarem e iniciarem a conversa, Moshe e Jonas já pareciam completamente à vontade um com o outro, ensejando um modo bastante particular de trocar ideias, fazer piadas, rir do que quer que fosse, feito dois tenistas se aquecendo antes de um jogo, trocando golpes a meia altura, backhands e forehands, colocando a força necessária apenas para que a bola passasse por sobre a rede e chegasse ao outro lado da quadra, sem que nenhum dos dois jamais iniciasse a disputa propriamente dita, agredisse o adversário, tentasse tirá-lo da quadra e buscasse o ponto, até porque não havia pontos em disputa. Aquilo era um eterno aquecimento entre dois jogadores que apreciavam única e exclusivamente a troca amistosa de bolas, ignorando todo o resto ao redor. E, cinco anos depois, na noite em que informou Moshe de sua decisão de ir embora, de deixá-lo, de se separar, antes de procurá-lo para falar com ele a respeito disso, Iara passou um bom tempo trancada no banheiro, pensando em qual seria a melhor maneira de dizer o que precisava dizer, temerosa de que ele reagisse mal, não queria uma briga, não queria agredi-lo ou ser agredida, não queria xingamentos, não queria socos e pontapés nos móveis e nas paredes, objetos voando daqui para lá, espatifando-se, não queria vê-lo furioso. Odiava a maneira como ele falava quando enraivecido, um ódio que parecia dirigido a ela mas, Iara sabia muito bem, era profunda e primordialmente dirigido a si mesmo. Ali no banheiro, enquanto respirava fundo, enquanto escolhia as palavras que usaria, ela se lembrou daquela noite, do aniversário de Ana, da festa interrompida pela overdose. Pensou na rapidez com que Jonas e Moshe se entenderam. Achava ótimo que ele tivesse um amigo tão próximo, uma vez que parecia não cogitar uma aproximação real do pai e, a rigor, não houvesse mais ninguém com quem convivesse e se sentisse à vontade. Por mais que estivesse pronta para ir embora, para deixá-lo, por mais que os últimos dois anos de relacionamento tivessem sido gradativamente horríveis, preocupava-se com ele, torcia para que ficasse bem, até porque (também pensava, também se lembrava de que) Moshe fora essencial para que ela ficasse bem após a morte de Marcelo, para que ela se recuperasse da perda, tornando-se por um tempo a família que lhe fora arrancada, tornando-se a figura imprescindível que estava presente quando mais precisou, que se dispôs a acolhê-la, que cuidou dela e tudo o mais. Por piores que as coisas tivessem ficado, por pior que ele tivesse se tornado, sobretudo para si mesmo, sempre e sobretudo para si mesmo, há dívidas impossíveis de serem pagas, e Iara jamais esqueceria o quão generoso, o quão importante, o quão bom Moshe fora para com ela. Que tudo tenha saído dos eixos de um jeito tão escroto são outros quinhentos, pensava, apoiada na pia com as duas mãos, a respiração entrecortada, e não havia mais nada que pudesse fazer para ajudá-lo, até porque passava da hora de procurar uma maneira de ajudar a si mesma.

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Eufrates, de André de Leones (José Olympio, 392 págs.)

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Marcos Vinícius Almeida é escritor e jornalista. Cresceu em Minas, mas vive em São Paulo. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é autor do volume de contos Paisagem interior (Editora Penalux, 2017). É curador editorial da revista Gueto.

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