* Por Daniel Manzoni de Almeida *

“(…) Pavão misterioso
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque

De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar (…)”

​​[Ednardo, 1974. “Pavão mysteriozo”]

I

Eu nasci no mês de fevereiro. O carnaval sempre esteve presente na minha vida. As comemorações do meu aniversário sempre foram marcadas pelo carnaval, ora era antes, ora era depois do feriado e muitas vezes no próprio feriado de carnaval. Eu sempre gostei dessa ideia, desse clima do mês de fevereiro, sempre me deu a ideia de um mês de alegria. Eu gosto de falar que meu aniversário é carnaval e isso me deu motivos inúmeros para pensar em fantasias. Como meus aniversários eram no mês das festividades da festa pagã, eu tinha desculpas para me fantasiar. O carnaval me dava a possibilidade de me suspender. Talvez essa seja a maior dificuldade para quem é brasileiro explicar o que é o carnaval para quem não é do Brasil: o carnaval é a suspensão — controlada, permitida e tolerada por alguns dias — da normalidade vigente. É a capacidade temporária de suspender qualquer conceito estabelecido de gêneros, de sexualidades e de convenções sociais e eu me aproveitava descaradamente disso. Quando pequeno e adolescente não era algo consciente e não tinha qualquer noção disso. Já quando adulto era um momento bem consciente. Talvez essa inconsciência errante tenha sido a grande graça da minha infância: saber da subversão sem saber que ela existia. Instintiva! Isso me dava uma imunidade e me permitia escapar de algumas coisas.

Eu adorava ver as passistas das escolas de samba fantasiadas com as penas das aves que eu tanto admirava. Um dia, lá pelos 8–9 anos, eu queria fazer uma fantasia como aquelas que eu via na televisão para o meu carnaval, o “carnaval do meu quarto”. Sim, meu quarto no feriadão do carnaval virava um grande sambódromo imaginário. Eu tinha um pequeno rádio com toca-fitas, eu colocava uma fita da música de carnaval do Salgueiro em 1993, “Explode coração”, que eu havia gravado diretamente da rádio — aquela gravação amadora que no meio da música surgia a propaganda da rádio. Eu peguei as penas de pavão que minha mãe tinha num vaso da sala de estar — comum na década de 80 e 90 — coloquei uma toalha na cabeça, peguei na gaveta da cômoda de roupas a sunga de banho de piscina com desenhos do Batman, coloquei as penas entre os vãos das dobras da toalha na cabeça e sai desfilando pelo quarto. Ali tinha uma multidão imaginária que vibrava junto comigo e com a música da escola de samba: eu era um divo! Meu sambódromo imaginário virou fumaça na imaginação quando a porta do quarto se abriu de repente e bem na hora que eu sambava e me “apresentava” para a minha plateia. Era minha tia materna, “o que é isso, menino?” E gargalhou gostoso com aquela risada de pigarro de cigarro. “Vem ver o rei da bateria, corre!”, disse ela no corredor se matando de rir. Eu tive sorte de ter visto meu sambódromo se esfumaçar com uma gargalhada empática de alguém que me amava e entendia minha imaginação. Eu acredito, talvez, que muitos não tenham tido a mesma sorte e se depararam com a opressão encarnada…

II

Carnaval de 2023. Desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Ele, um rapaz de corpo escultural, veio dançando à frente da bateria de uma das maiores escolas de samba da capital fluminense. Em dias anteriores, houve uma cerimônia no barracão da escola com direito a cobertura de grandes portais da mídia. Com um discurso militante, evocando interseccionalidade, se mostrou empoderado com sua origem, seu lugar social na comunidade, seu gênero masculino sensual e sua sexualidade declarada. A mídia vibrou. Essa combinação de fatores foi importante, junto a um samba no pé primoroso, ao posto de rei de bateria. O rei de bateria em questão não era Daniel Manzioni, mas um outro rapaz, um jovem de pernas grossas e torneadas à base de musculação de academia, que havia sido coroado à frente da bateria. Mas ali tinha um pedaço do Daniel de alguma forma.

III

“Eu ficava sambando sozinho no meu quarto para meu pai não ver. Eu desenvolvi meu samba no pé dentro do meu quarto”, disse Daniel. Um ano depois do primeiro encontro com o rei de bateria, havia chegado mais um carnaval. 2013 foi um ano complicado no Brasil com o levante das manifestações de junho-julho. Uma reivindicação pelo aumento do valor de vinte centavos da passagem do transporte público desencadeou manifestações pelo país inteiro fazendo ressurgir, dos bueiros inclusive, desejos fascistas de grupos da população cujas consequências anos depois seriam a golpe do impeachment da presidenta Dilma e a eleição de Jair Bolsonaro pela extrema direita. No meio disso tudo não tardaram a aparecer pautas contra as liberdades individuais, questões de gêneros e sexualidades. O país mergulhava em uma crise desesperadora. O ano de 2014 traria componentes que elevariam ainda mais as tensões: a copa do mundo em casa e as eleições presidenciais. A copa do mundo foi o desastre traumático do 7×1 para a Alemanha que nunca mais permitiu a recuperação da seleção brasileira e da torcida. As eleições tiveram como resultado a reeleição apertada da presidenta Dilma e logo em seguida o início da gritaria, liderada pelo segundo lugar — o candidato Aécio Neves — o pedido de recontagem dos votos e suspeita sobre o pleito. Nessa altura dos acontecimentos a divisão das discussões, ideias e opiniões estava completamente cindida. Todo mundo encontrava um inimigo ao lado, o ódio às pautas de direitos humanos e progressistas das liberdades individuais seria a norma da vez e essa seria a configuração que se instalaria no tecido social da sociedade brasileira e que dura até os dias de hoje.

O carnaval daquele ano já havia sido morno de uma forma geral, porém Daniel estava feliz pois havia conseguido alguma repercussão do seu trabalho na mídia. “Saiu até matéria em portais de primeira e não apenas na mídia marrom”, comemorou Daniel. No carnaval daquele ano veio com uma fantasia de pássaro representando todas as aves brasileiras. Havia dado algumas entrevistas que foram publicadas em portais importantes que ajudaram a impulsionar seu trabalho. Em uma delas declarou que não sofria preconceitos por ser rei de bateria e que revelava que um dos seus diferenciais era o fato de um símbolo “ser para as mulheres” ao lado da sua rainha à frente da bateria. Naquela época, seu pai ainda era vivo e a questão da sexualidade não era cogitada. “Naquela época, eu não queria que a minha sexualidade viesse primeiro que o meu samba. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Hoje é uma bagunça. Todo mundo quer falar da sua sexualidade”, me confessou em 2023.

Poucos meses antes disso tudo havia o carnaval. Daniel e eu havíamos passado os últimos tempos sobre a intenção que eu tinha de escrever sobre sua carreira e trajetória. “Esse ano vai acontecer muita coisa boa. Minha fantasia está maravilhosa e eu terei mais destaque na escola, na mídia”, me relatava ele. Eu estava em Chicago nos EUA, com temperaturas negativas e um vento congelante na ocasião e fiz questão de acompanhar os preparativos, via WhatsApp, e os desfiles das escolas via televisão. Para a mídia, Daniel declarava, “Não me intimido com as rainhas famosas”, sobre o questionamento que lhe era feito sobre estar em um posto que tradicionalmente era para as mulheres e mulheres símbolos sexuais famosos. Daniel estava seguro do papel que estava fazendo naquele momento. Para mim, ele fez mistério da sua fantasia até o último minuto. Nos falamos até ele sair do hotel ao lado do sambódromo para desfilar na avenida. “Você verá a fantasia pela televisão”, brincava ele comigo quando eu insistia para ele me mandar uma foto. Eu fiquei colado na frente da televisão para ver o desfile. Eu estava tomado por uma certa emoção e ansiedade para ver o desfile naquela noite. Era um misto de curiosidade para sanar o mistério da fantasia dele e ver a performance e a repercussão que poderia acontecer. Porém, a sorte da escola de samba de São Paulo naquele momento não soprou a favor do brilhantismo que sempre tivera. Houve um problema no desfile da escola, uma questão de tempo de desfile algo como o quesito de harmonia e evolução que fez com que a escola acelerasse na avenida e muita coisa foi perdida e acabou não sendo transmitida. O foco da transmissão televisiva e dos comentaristas era o desespero da escola em terminar o desfile no tempo determinado e correr para a apoteose. Uma correria se instalou na passarela naquele nos minutos finais do desfile já avançando um tempo extra não permitido e que poderia significar penalidades para a escola. O único momento em que consegui ver o Daniel foi em um rápido flash quando ele passou na frente das câmeras de transmissão, às pressas saindo para dispersão na apoteose, segurando a cabeça da fantasia que já se desmontava, na correria e empurra-empurra para finalizar o desfile e evitar que a escola não perdesse ainda mais pontos. “Eu estou triste com tudo isso”, me disse ele só uns quatro dias depois quando conseguimos conversar sobre.

“É muita grana e tempo investidos em fantasias todos os anos e o retorno da mídia é nada. O que a gente quer é o reconhecimento mínimo”, me confessou Daniel nas nossas conversas por vídeo em 2023, “É muito difícil gerar mídia espontânea. Mídia marrom tem sempre. Querem saber sobre vida pessoal e etc. Eu quero falar do meu samba!”, concluiu.

A dança como forma de existência é um dos pilares da vida de Daniel. Ele é movimento continuo. Desde garoto sempre dançou como forma de estar presente no mundo. Ao longo da sua carreira, foram várias formas de dançar e mostrar como a dança e a atividade física eram elementos importantes no mundo. “Eu não queria ser médico veterinário. Quando comecei a fazer as aulas de dança, as pessoas começaram a me notar, a gostar de mim e eu queria me profissionalizar. Eu fui fazer graduação de Educação Física e me formei”, relatou Daniel, “Eu queria ganhar meu dinheiro com minha dança, meu movimento”. E ele conseguiu. Teve uma academia de ginástica no bairro da Praça da Árvore que fechou em meados de 2016. “Eu era um menino tímido, solitário, depressivo que ficava trancado dentro do quarto em um período muito difícil da minha adolescência. Eu tinha medo de decepcionar meu pai e aos poucos fui para dança de salão para ir me soltando, as pessoas começaram a gostar de me ver. Foi esse olhar das pessoas, de gostar de me ver dançando, que me foi libertador”, finalizou Daniel com uma nostalgia no olhar. “O momento mais emocionante foi quando meu pai me viu dançando e isso foi o mais importante de tudo. Eu queria mostrar para ele que dança não tinha gênero e sexualidade. Eu acho que meu pai me viu como um ser humano, sem sexo, que dança naquela ocasião. Isso me libertou”. De certa forma nesse momento, Daniel havia saído definitivamente do “seu quarto imaginário” simbólico. Nisso “sair do quarto” era o mesmo que o “sair do armário”. A dimensão psicológica era a mesma. Daniel saia do quarto-casulo pelo olhar de orgulho do pai. Ele precisava disso desde a infância e teve a sorte que muitos de nós não tivemos e deveríamos ter. O pai do Daniel faleceu alguns anos depois do nosso primeiro encontro.

Daniel passou por momentos difíceis, encerrou as atividades da academia que tinha, voltou a morar na casa da família, mudou-se para o interior de São Paulo e viu a percepção sobre seu papel na escola de samba e no carnaval mudarem para uma ótica ainda menos reconhecida. “Hoje eu não tenho problema de falar da minha sexualidade. Eu acho que é até importante para os próximos reis de bateria, essa meninada que está chegando, que estão vindo no caminho que eu abri”, disse Daniel quando nos conectamos novamente para essa série.

IV

Um silêncio havia pairado por um instante na nossa conversa por vídeo conferência. “Eu estou elaborando como vou responder”, disse Daniel sorrindo quando perguntei como ele se sentia sobre sua carreira. “Eu não quero responder qualquer coisa, eu ainda estou no carnaval, eu ainda vivo dele mesmo que só por carinho…”, ficou mais um instante pensativo, até que atirou, “Eu criei esse posto. Se há outros que estão aí sendo coroados em São Paulo e no Rio de Janeiro como reis de bateria é porque eu fui o primeiro e eu não vou deixar me apagar dessa história”. Eu pedi para ele falar mais sobre, fiquei interessado nas ações que ele poderia estar fazendo para se manter nesse posto. “As coisas no carnaval mudaram muito. Hoje só serve se você fizer fechação, dar close, ser militante. Eu não vou fazer isso. Eu sou um dançarino, eu criei meu samba no pé. Eu sinto que nos últimos anos há toda uma intenção de me esconder, não me deixarem aparecer…”, ele fez uma pausa que durou alguns minutos. Uma pausa importante que veio com coragem, “… Teve um ano, nestes últimos, que foi engraçado”, disse Daniel esboçando uma gargalhada gostosa, divertida e acompanhada com o que viria narrar, “Eu vinha na frente da bateria com a minha rainha, sambando lindamente, com uma fantasia lindíssima, aquela energia, o público cantando junto comigo. Estava lindo. Nós estávamos atrás de um carro alegórico que tinha duas alegorias de uns violões enormes que me tapava , me escondiam. Eu estava puto porque essas alegorias me tapavam. Ninguém da mídia conseguia me ver. Quando o pessoal da mídia chegou perto, foram me jogando mais para perto desse carro, para me esconder, claro. Pois dei um jeito, me joguei no chão, ajoelhei, sambei para aparecer e chamar bastante atenção. E não é que deu certo! Largaram a atenção da minha rainha e vieram para cima de mim. Não deu outra. Só vi o cara da produtora apontando para mim e gritando: ‘Pra cabine! Pra cabine!’. Fui direto para a cabine da rede globo dar entrevista! Causei um mal estar geral com o pessoal. Eu não tinha pagado assessoria de imprensa, nada e consegui chamar atenção sozinho, consegui a entrevista sozinho, mídia espontânea. A galera gasta uma grana imensa com assessoria de imprensa e eu fui lá, fui parar na cabine da cobertura da rede globo”, finalizou gargalhando, “Eu não sei porque a galera gasta tanto dinheiro com isso hoje. O carnaval não é mais uma vitrine como nos anos 80, 90, porque não rende mais imprensa, não tem mais playboy, não tem mais G-Magazine. Na nossa época o carnaval era a grande vitrine das divas. Muitas têm nome até hoje ligadas ao carnaval. Antigamente rendia isso, mas hoje em dia não rende mais nada”, continuou Daniel, “E por que estar lá, então, na passarela do samba?”, perguntei instantaneamente, “Ego, nada além disso”, respondeu ele na lata.

V

Essa história está para ser contada desde 2013. Na ocasião eu tinha uma carreira bem iniciante de escritor e não sabia o que fazer com essa história. Em meados de 2017, quando o Daniel já havia se mudado da região da Praça da Árvore e foi morar na casa dos pais em um outro bairro de classe média da cidade de São Paulo, fui visitá-lo para uma entrevista e pensar em uma maneira de contar essa história. Na ocasião eu pensei em escrever em formato de uma peça de teatro. Discutimos bastante como poderia ser a narrativa, que ela contaria desde a infância tímida entrando em uma adolescência desenvolvendo seu samba dentro do quarto até a coroação como rei de bateria. “Mas quando a peça poderia ser encenada?”, lembro dessa pergunta dele repetidas vezes, “Talvez demore para ser encenada”, refletia. Vai que isso demora para alguém querer encenar e eu já estar velho…”, disse ele. Quando retornei para casa, recebi uma mensagem do Daniel, “Talvez no final da peça quando encenarem eu entre no final dançando, me apresentando, sambando…”.

“Eu estou encerrando minha participação na avenida agora quando completar 50 anos”, disse Daniel na nossa conversa em 2023, “Eu acho que já não sou mais importante para as escolas, para o carnaval. Eu quero fazer minha aposentadoria, vou para o carro da velha guarda da escola, desfilo com a camisa da escola e pronto. Todo ano é uma correria e um gasto enorme com fantasia…”

“Você se sente velho?”, perguntei.

“Eu não! Mas os outros me veem como”, respondeu rapidamente com humor, “Como não ficar desanimado quando você sente isso? Ninguém fala direto, na sua cara, mas eu sinto ao meu redor… o carnaval pode ser tão cruel ao mesmo tempo que alegre”.