* Por Luciano André *

Sentado aqui eu vejo a rua. Mas é a rua lá da frente, no outro quarteirão. Eu não vejo a frente do prédio, então, não sei direito o que se passa. Mas escuto o barulho todo. Eu olho pro Buda, em cima do móvel, embaixo da janela. O Buda que se vai, junto com os discos dos Beatles, do Bob Dylan, da Bossa Nova e toda aquela porcariada kitsch que você odeia, mas que eu fazia questão de tocar bem alto quando você estava em casa (só para te irritar, admito). O Buda já foi. O Buda que eu comprei. Você, obviamente, não queria. Ao contrário, o abajur (não, não vou chamar isso de luminária) de brechó, seu, que você tanto quis, é todo de ferro fundido. O Buda é de madeira. O Buda já foi. Acabou de ir. O abajur não. O abajur esta lá. Uma torre! Escultura fiel da solidez de todas as nossas desavenças. Todas aquelas em que você sempre se manteve firme. Uma luminária metida a moderna. Um abajur iluminando as nossas trevas, HAHA. É uma luminária, Luciano. Art Déco. Abajur, Abajur, Abajur… Esse não vai! Os livros também já foram. Só os bons, porque eu me cerquei deles, depois que você saiu. Só dos bons. Os ruins eu encaixotei. Eu tirei da estante, encaixotei e empilhei perto da porta da frente, junto com as suas roupas. Porque assim fica mais fácil. Se bem que nunca foi fácil. Nunca foi simples, como a gente pensou que sempre ia ser. Porque a gente não era simples. Nem difícil. A gente só era chato, ingênuo, um tanto idealista. A gente nem era nós dois, mais. A gente era um só e, ainda assim, a gente discordava. Demais. A gente discordava até dos Beatles. Eu queria por pra tocar, agora. Uma elegia. A nossa elegia. Eleanor Rigby recolhendo arroz no chão da igreja. “Olhe para todas essas pessoas solitárias” a gente dizia, abraçados, perambulando pelas ruas, sem grana, sóbrios, mal vestidos e com fome. Com fome da gente mesmo. Olhando um pro outro e fazendo planos. Não queremos ter filhos, queremos cachorro, vamos viajar, não vamos gastar com iPods e iMacs, não vamos ser consumistas, nem comunistas. Artistas. Eu vou escrever um livro, vamos produzir um disco com os nossos amigos, uma peça, um manifesto, uma escultura de lama e lixo. Vamos pintar quadros em chapas de papelão e chamar de nova vanguarda, dar entrevista, contestar e contextualizar. Vamos morar no Copan, Vamos ser o casal que ama o conceito. Que vive com conceito. Vamos conquistar o mundo ao redor da nossa própria órbita. Vamos ser referência. Então, tudo mudou e a gente não sai mais do lugar. Eu queria colocar o disco. O toca-discos foi o primeiro. Depois foi o Buda. Depois foi a estante, os discos e os livros. Mas só os bons. Os ruins, eu empilhei lá do lado da porta. Eu deitei na cama, com uma garrafa de vodka. Não, não tinha vodka em casa, eu comprei no bar da frente. Sim, eu menti, quando eu te liguei. Eu saí uma vez. Uma vez só pra comprar essa vodka. Depois eu deitei na cama. Aqui eu fiquei, parado, igual a gente. Só que não tem mais a gente. Eu te liguei. Volta, eu disse. Não sei. Não foi uma resposta. Foi uma meia resposta. Tenho que pensar. Muita coisa na cabeça. A Pós, o trabalho, os projetos. A Marta tá me ligando de novo. Volta. Você disse não sei. Tenho que atender. Deixa a Marta, Bárbara. Não sei. Vem. Não sei. Eu deitei aqui, com a vodka e os livros que eu não consigo ler. O disco tinha tocado todo o lado A. O curto-circuito deve ter sido em um dos apartamentos de cima. Engraçado que, nos filmes, é sempre nos apartamentos de baixo. Mas eu não sei de onde veio. A janela ficou aberta. As cortinas voaram com um bafo quente. Volta. Vai ser diferente. Vem lá pelas 10. Você disse não sei. Eu deitei aqui, olhando pela janela. É o segundo andar. Consigo escutar as pessoas na rua. Consigo escutar sua voz, me gritando. Luciano você tá aí? Luciano, eu te amo…  11:45. Arranquei a folha, vou amassar e jogar pela janela. Estico o pescoço pra fora e te vejo. Atrasada de novo! O fogo chegou primeiro. O fogo chegou e apagou essa nossa última esperança. Mas o abajur ficou inteiro. Passa uma tinta e pede pro zelador trocar o fio que vai funcionar. Bom, talvez.

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Luciano André é redator publicitário