Um conto breve faz um sonho longo

Nunca se sabe o que uma viagem pode trazer ao íntimo do coração. Como se o tempo de repente dum outro modo fluísse, ou mesmo a qualidade da sua hora mudasse, e uma coisa perdida aparecesse, uma dúvida se quebra, um amor acaba, e outro que nunca se tinha imaginado, de repente, nasce. Objectos que sempre tivemos por separados atam as pontas, imagens que bóiam nas nossas vidas sem ligação juntam-se e criam uma nova sequência com sentido. Outras vezes a clarividência da distância torna-se tão luminosa que se vê o fim do fim, e deseja-se regressar, ainda que não seja a lugar nenhum. Foi por altura duma deslocação que por acaso se havia transformado em viagem. Então, subitamente, aquela cidade estendida e empinada à beira do Lago Ontário, para onde o destino de ocasião me havia levado, ainda tinha palhetas de gelo, e trouxe-me de volta, provinda de muito longe, a Instrumentalina.

Quem diria? Escondida no saco das reservas proibidas, havia anos e anos que não a soltava do seu local de abrigo, ainda que por vezes o seu selim, a sua roda pedaleira, ou a imagem caprina do seu retorcido guiador me aparecessem como coisas desgarradas. Era inevitável. Quem uma vez percorreu os caminhos do paraíso, sentado num transporte de delícia, jamais pode esquecer a imagem do objecto condutor. Mas pode não querer avistá-lo no seu todo. Pode não desejar sofrer pelo que está perdido ou é o simulacro duma imagem que foi mas o tempo já fez vã. Ora a Instrumentalina se me tinha levado até ao campo das margaridas, no dia em que meu tio Fernando me havia chamado Greta Garbo, ela mesma me tinha traído e amarrotado, e criado o meu primeiro desgosto. No entanto, passados tantos anos, reunida, como se pudesse ter-se mantido unificada pelo tempo, visitava-me rodando sobre o gelo como antigamente acontecia nos campos de calor e de poeira.

O bar do Royal York Hotel, alimentado às sextas-feiras por bêbados distintos caindo sobre as mesas muito antes da meia-noite, revestido de papel escuro como musgo, lembrava o fundo dum tanque vazado e aquecido, mas não era suficientemente opaco para não deixar que a Instrumentalina deslizasse sobre a estrada dum outro território. Tinha-me sentado a uma das suas mesas. A porta de vidro permitia que dali, de onde me encontrava, pudesse ver quem saía e quem entrava, sobretudo quem deixava o chapéu e a gabardina no bengaleiro. A bicicleta longínqua aparecia de perfil, mostrava o brilho dos seus raios girando ao sol, e uma outra luminosidade da Terra aparecia. Havia sido quando? O meu tio tinha-me feito adeus, e depois o comboio antigo, como um canhão de Austerlitz, atroara na madrugada e levara-o cada vez mais de perfil, de braço levantado, para trás das árvores, por entre as quais a fila de carruagens se sumia.

Meu Deus! Essa tinha sido uma manhã estranha. Nunca havia falado nela a ninguém, não porque a desejasse morta, mas porque ela me levava para uma região difícil de explicar. Tanto o meu tio como a Instrumentalina e eu tínhamo-nos encontrado na margem dum outro tempo, embora naquele instante, em frente da porta do bar do Royal York, de repente, a nossa actualidade, como um rápido, se unificasse com o rodar do Mundo. Lembrava-me — indiferente então à mudança que corria nos países e nas terras, e à abertura das estradas que haveriam de mudar a cor das vidas, a grafonola da nossa casa constituía o invento mais recente. Três fogões a petróleo enchendo a sopa de veneno eram a grande conquista das mulheres, e na nossa cozinha, elas curvavam-se para eles, asfixiadas por cintos que as apertavam como cilhas. Suas ancas debruçadas conferiam-lhes a forma das aranhas. Eram quatro férteis mulheres sozinhas, entre as quais a minha mãe, e trabalhavam desde o romper do Sol com a força das formigas. Sentado à porta, no cadeirão, imóvel, debaixo da parreira, ficava o meu avô. E correndo como uma matilha indomável, sem dono, sem obstáculos, existíamos nós, as crianças, irmãs e primas entre si. Ninguém mais. Mas ao cair da tarde, voando, chegava finalmente o nosso tio com a Instrumentalina.

*

O trecho da novela A instrumentalina (Peirópolis, 48 págs.), da portuguesa Lídia Jorge acaba de ser lançado no Brasil, com ilustrações de Anna Cunha. O livro trata da delicada relação entre um tio e sua sobrinha, a partir de um encontro ocorrido à beira do Lago Ontário, nos Estados Unidos

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