* Por Lorraine Ramos *

“Eu sinto inveja dessas águas anuladas/ tão plácidas, idênticas ao próprio contorno/ enquanto eu mesma nem sei onde começo,/ quando acabo”

Esses versos iniciam o detalhamento que sintetiza a poética do espírito de Alma Corsária (Editora 34), sexto livro da escritora Claudia Roquette-Pinto. Reflexionando o significado, os detalhes portam um grau considerável de potência da qual a descrição é o ponto enfatizado, tal qual o ponto nodal de uma pintura ou imagem, mas nesse caso anunciado por um poeta, reproduzindo seu objeto o mais fiel à realidade. Robert W Bly, escritor norte-americano, parte dos contornos com os quais vai expondo, minuciosamente, o corpo, os objetos ou os animais e a natureza. Por coincidência, esses são os eixos nos quais Claudia trabalha nessa sexta obra de poesia.

O percurso do livro começa e termina sob a circunscrição do mundo natural, orgânico. Na poesia de Sebastião Uchoa Leite, por exemplo, a conversação entre o eu lírico e as funções da natureza reportam um olhar cuidadoso em Dez sonetos sem matéria, publicado em 1960. A figura desse self selvagem, desolado, perdido, mas ainda insistente, se inaugura tanto na poética de Sebastião quanto na de Roquette, usufruindo de elementos questionadores, filosóficos, a partir de uma linguagem irônica – fruto frisado pelo modernismo – e com tonalidades coloquiais.

Recorrente na literatura, quase um elo inseparável, o animal e tudo que o rodeia também é presente na obra Jardim Zoológico, do escritor Wilson Bueno. Escrita de fabulação, o livro aborda retomadas de características de outros escritos, inserindo-se em uma quase intertextualidade, para, no arremate, conferir uma travessia dos seres ali apresentados pelo recurso da descrição.

A escolha por principiar a obra com o descritivismo é colocada como importância para situar a lírica das ondas criadas por Roquette-Pinto – não somente pelas imagens intimistas e atmosféricas (o mar, os bichos e o corpo), mas também pelo fato da poeta instaurar esse signo na valorização do pensamento subjetivo, língua com rigor de sentido.

Além da preocupação da receita da objetividade do que cerca sua poética, há em Alma Corsária uma preocupação inerente ao fazer artístico do poeta. Nela, a persona lírica encarna-se no discurso enunciador do trabalho do artista como ser que se atenta ao tempo decorrido, mas também o próprio devir. O futuro. Nele, o texto se desdobra em “Escrever do lugar do desespero (nem adianta esperar lucidez)/ Zero de estilo / nem um mísero poema / e toda ideia de que algo valha a pena / ruiu faz tempo”, como se o poeta estivesse empregando um olhar que possa valer como adquirir algo, mas ainda em dúvida acerca de seus resultados.

No excerto “Tenho medo do meu corpo./ Sinto que ele é parco/ pouco./ a um só tempo ermo e oco,/ e logo se abre em fulgores,/ espasmos que desconheço./ O corpo com que amanheço/ não chega a ser o mesmo/ com que arco, / quando a tarde desce,/ peso-morto que me incandesce,/ absorto” Claudia enfatiza a capacidade de atuação do eu lírico sobre a própria existência, aqui sendo retratada na anatomia, mas mais do que isso, representação de iluminação e distanciamento de seu objeto, inserindo o sujeito da poíesis no palco das enunciações.

Na continuidade do texto, intitulado “Canção do exílio”, o olhar regido pela transformação de sua realidade é posto mais uma vez como forma de agir e contemplar o dentro e fora, em uma auto-observação semântica: “Nem é ele o barco enfermo/ em que regresso,/ pouco a pouco,/ do degredo do sono/ na madrugada espessa./ Se me envolve ou me atravessa,/ se nele me hospedo/ ou o esqueço,/ tenho medo do meu corpo.”.

As imagens contínuas, uma espécie de realização de um duplo, uma dicção ocular fortalecida por um corpo que amanhece, mas não é o mesmo, se imprime tanto no sujeito da ação quanto no objeto a ser analisado. É estar nessa transição, nessa alteração de posições a se envolver e a se hospedar, que a narradora pontua duplamente o medo que lhe é direcionado.

Investigando as próprias memórias da escrita, o sexto livro de Claudia Roquette-Pinto leva o leitor a adentrar nos próprios processos das sensações da narradora, quanto em seus próprios, dado as pungentes ações do cotidiano, cristalizados tal qual uma fotografia em suas miudezas.

Alma Corsária é um modo de enxergar como em miragem: uma mesma onda, mas multiplicada pelas fragmentações do tempo, convidando o observador a interpretar a (i)mutável força desse elemento da natureza, tão próximo em nós, porém de certa forma distanciado, pedindo para ser redescoberto por nossas sensíveis visões.

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Lorraine Ramos é escritora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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