* Por Adriano Espíndola Santos *

Numa noite, como qualquer outra que não valia a pena, Jesuína prestou-se a colocar a cadeira de balanço na frente de casa, para curtir umas horas de distração. Passava, bem dizer, o dia enfurnada, batalhando para a limpeza da casa – que não receberia visitas. Ela sonhava com os áureos dias em que a residência era frequentada pelos amigos de seu pai e de sua mãe. Antes de quedar só, a morada era sustentada por risos e burburinhos palacianos. Bem, pudera, seu pai, homem influente, político, era afeito a todo tipo de maquinação. Trocava informações com seus confrades para, inclusive, alocar mentiras de onde se viam verdades. Era, como dizia, “do tudo ou nada”. Jesuína, vendo hoje se espalharem fake news, ria-se das brincadeiras do pai, o qual, muito antes de se tornarem modinha, tinha nas mentiras seu trunfo maior. Lembrou-se do dia em que o pai desqualificou o pároco da igrejinha do bairro porque, segundo ele, o padre malversava as doações. Resultado: o arcebispo de Fortaleza mandou enfiarem o sacerdote nos confins do mapa, para os lados da Amazônia, para “aprender o valor do dinheiro”. A verdade é que a decisão se deu a reboque, e o padre se sentiu tão humilhado que resolveu tirar a própria vida. Meses depois, descobriu-se que era tudo um ledo engano; que o arcebispo já não gostava do pároco por sua postura intransigente e que teria aproveitado a ocasião para despachá-lo. Arquivaram-se os papéis que diziam respeito ao ato, até mesmo os da polícia. O novo padre rezava conforme o pai de Jesuína. Passou não sei quantos anos prestando contas ao arcebispo e ao opressivo político. A mãe de Jesuína estimulava o disse me disse, a contenda gratuita. Certa feita, quando comprou uma televisão, algo raro e de muito valor na época, chamou as vizinhas e os filhos para uma confraternização. Do meio para o fim, deixou a turma chupando dedo, porque disse, com certo gozo interior, que soubera, há pouco, que muita gente olhando a televisão provocaria o desmantelo do objeto; como iria assistir às suas novelas? Todos retornaram para casa chutando cacos pela rua, mas a mulher poderosa gargalhava, fogosa, denunciando que teria feito aquilo para matar o povinho de vontade, chamando-os, por fim, de pobretões desqualificados. Jesuína acostumara-se aos fatos tragicômicos, às investidas rasteiras de sua família, quando foi, ela também, abalada por um evento, no ano de 1980, no qual morreram os pais e um motorista. Iam, os quatro, para a cidade de Baturite, local em que o pai tinha uma fazenda. Era costume fazerem o trajeto em época de férias escolares da filha. Desta feita, o motorista desviou o percurso normal, alegando que reduziriam a distância. Num primeiro momento, tornara-se interessante acompanhar a luta da natureza pela sobrevivência, a vastidão de terra seca e as carcaças de animais mortos. Jesuína lembra que pediu ao pai para tirar algumas fotos do cenário, mas ele afirmou, com a voz firme, que não teriam tempo; estava escurecendo. “Dirigir à noite é um perigo!”. Mesmo assim, por insistência, pararam coisa de quinze minutos; o bastante para fechar o tempo. Continuaram, com as reprimendas do pai nervoso, acusando o chofer de maluquice e displicência. “Onde já se viu andar por essas terras à noite, numa estrada vicinal?! Se acontecer alguma coisa, seu vagabundo, eu te mato!”. Deixa estar que bastou o velho declarar isso para o carro rodopiar no ar. Foram três ou quatro voltas. O carro virou um maracujá. Horas depois, Jesuína acordou e conheceu o inferno na terra; todos mortos. Ela voltou a Fortaleza depois de um dia, alimentando-se, nesse ínterim, de plantas diversas e água barrenta. Teve dores intestinais absurdas. Ficou um mês internada num hospital que, por sinal, era administrado pelo pai. Foi coberta de zelo e ternura, pelo fado desgraçado que padecia. Era, a partir de então, “A menina órfã do deputado Ananias”. A tia foi quem lhe cuidou e lhe deu de tudo – mas, certo, nada supria a desesperança. Daí, não quis mais saber o que viria da vida; quis se matar; existia, segundo um médico da família, como uma planta, com depressão fortíssima. O pior era que a tia teria decidido morar na casa dos pais de Jesuína, porque, assim, “diminuía a saudade”. Teve boa vontade; contudo, escolheu, inadvertida, a posição mais cruel. Jesuína mora há setenta e sete anos no mesmo lugar, como uma árvore morta, enraizada. E rói as memórias, comparando-as com as desventuras dos vizinhos, que continuam pobres e desqualificados.

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Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

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