* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Nos últimos anos eu tenho me dedicado a ler os escritos das pessoas LGBTQIAPN+ brasileiras. Eu tenho dado preferência às obras que são publicadas por editoras pequenas economicamente e que têm acolhido grande parte desses escritos. Além do trabalho das leituras, tenho também me dedicado a escrever sobre essa produção literária, além de divulgar e conversar publicamente com as pessoas escritoras em  lives nas redes sociais sobre suas obras. Em 2022, foram 12 ensaios que publiquei a partir das leituras dos livros dos amigos, amigas e amigues. Há ainda outras leituras que fiz e para as quais realizei anotações que precisam ser transformadas em ensaios.

À primeira vista, de um olhar de fora e ingênuo, pode-se pensar que esse meu movimento seja impulsionado por um sentimento altruísta, mas não o é. Recentemente, eu escrevi um ensaio autoetnográfico sobre esse meu engajamento que chamei de “ser Dorothy” em referência a personagem de “O mágico de Oz” [1939] de Lyman Frank Baum [1856-1919] que está em vias de publicação. O que quis dizer, resumidamente, utilizando a imagem da menina perdida em um mundo que não é o seu – a Dorothy – é a tentativa de que para alcançar meu objetivo, de ser escritor, eu não consigo fazer uma caminhada sozinho. Pelo caminho de tijolos dourados de Doroty, certamente, eu vou encontrando alguém que quer um cérebro para pensar, outro que quer um coração para ter a capacidade de amar mais e outro que ainda precisa de mais coragem. Para que todos nós possamos alcançar nossos objetivos, chegar no Mágico de Oz capaz de realizar nossos desejos, precisamos andar juntos. Essa é a “moral” da metáfora que resgato.

Na escrita de literatura não é diferente. Por mais que seja um trabalho individual de construção da fantasia, paira no ar, automaticamente, no social um imaginário que compartilhamos coletivamente ao publicar nossas obras. Em real, todos nós falamos da mesma matéria de subjetividades, de reivindicações, e de dores. Todos nós escrevemos porque queremos dizer algo sem qualquer sombra de dúvidas. Ninguém se mobiliza a dedicar um tempo, gastar seu precioso dinheiro, abdicar de diversas coisas por nada. Sempre há o desejo profundo de dizer alguma coisa, se expressar. As obras que publicamos dizem de nós. Lê-las passa a ser um acolhimento do que é mais precioso do outro: o amor por si mesmo. Aquilo que grita dentro de si sai pela fantasia da narrativa e impregna as páginas, na espera que de alguém acolha, decifre, entenda, reconheça, ame…  Cada livro é um pedaço de dor ou prazer de alguém. Ler é, então, segurar um bebe recém-nascido e fragilizado. É dizer ao outro que o que ele te disse é importante. É o que tenho feito: se quero que o meu dizer seja importante, eu preciso ver importância no dizer do outro. Essa reciprocidade me alimenta não como altruísmo genuíno, mas é um amor-próprio que vou cultivando a cada vez que vejo importância nos dizeres de outro. Eu vi no acolhimento dessas obras dos pares uma forma de entender o imaginário que me rodeia. Por isso não é uma forma altruísta de trabalhar, mas um exercício “dorotiano” de desenvolver meu amor-próprio para que eu não me fragilize, na fraqueza de desejar um reconhecimento individual e soberano, caindo na armadilha de um autoritarismo de impor que meu dizer é o único cheio de sentidos e significados.

As conversas públicas com as pessoas autoras são sempre bem prazerosas, mas os bastidores são ainda mais interessantes. Em vários momentos das conversas não escapa a temática da frustração das pessoas que escrevem com a ausência de reconhecimento de suas obras pelo público. Que seus livros não são lidos, que seus livros não vendem, que seus livros não circulam, que as editoras não conseguem fazer os livros ter grande evidência, que seus escritos não são valorizados, que não viram sucesso, que não viralizam, que não ganham o prêmio jabuti ou camões, que não viram filmes ou séries de TV, que não estão cheios de seguidores nas redes sociais, que não tem o poder de ter a voz única e absoluta sobre o que é a literatura. Uma pergunta que sempre faço é se ao mesmo tempo que queremos que nossas obras sejam lidas, discutidas e reconhecidas, se fazemos isso com as outras pessoas da nossa comunidade que escrevem, aquela pessoa escritora ao nosso lado que também escreveu querendo dizer algo e quer leitores, se damos atenção aos escritos produzidos em nossa comunidade como gostaríamos que dessem atenção para nossos trabalhos. É uma questão espinhosa. Nos coloca a questão incômoda sobre o que queremos construir, enquanto comunidade literária LGBTQIAPN+ brasileira, como algo individual ou coletiva. Temos que ter apenas uma ou duas vozes sendo reconhecidas por seus escritos literários ou devemos lutar para um espaço coletivo de todas as pessoas terem seu momento de brilho literário?

Se a opção for pelo individual estaremos lutando pela luz por alguma das letras LGBTQIAPN+ e deixando a outra de fora da sopa de letras. Eu entendo de onde vem a dor da frustração ao se dizer injustiçado por não ter o reconhecimento necessário do público. Por outro lado, eu entendo a dor que isso pode gerar na consequência de ressonância entre nós ao considerarmos que a injustiça – que acredito que possa realmente atingir – pode ser um recado, inconsciente, de que a literatura do outro colega não é suficiente, é pobre, sem qualidade ou digna de reconhecimento. Essa tomada de posição, sem reflexão da nossa parte, é mola fácil para o impulso neoliberal que nos incita a divisão e ao não pensamento coletivo na imagem opaca meritocracia que divulgamos, mas sempre presente com cores bem mais fortes que a do arco-íris na nossa comunidade LGBTQIAPN+. O mercado editorial escolhe, intencionalmente, um ou outra pessoa e seus escritos para dizer que está sendo diverso e inclusivo. Isso constrói uma ideia estética para a sociedade de como deve ser a literatura LGBTQIAPN+. Dentro da comunidade isso cai como uma bomba e espalha divisão entre nós. Julgamentos e sentimentos de ressentimento que impedem o senso de construção coletiva para desenvolver um projeto literário da nossa comunidade de resposta às ideologias dominantes e aproveitadoras do mercado editorial neoliberal. O desejo individual de reconhecimento por uma genialidade literária que nos contamina é tudo que a política falaciosa meritocrática neoliberal quer de nós para dividir, impedindo a nossa organização para continuar oprimindo e dominando nossos corpos e mentes.

Proponho uma abertura de discussão a partir de alguns pontos. Vamos?

Primeiro, talvez, pensarmos não como uma injustiça individual ao não reconhecimento de um único talento genial, mas da ausência de políticas públicas que possam contemplar a nossa comunidade, da ausência de incentivo financeiro para as pequenas editoras no cenário econômico, da ausência de apoio e políticas de circulação das nossas obras em diversos setores da sociedade, da ausência completa de publicidade dos nossos escritos. Ou seja, da ausência completa do incentivo dos talentos e da genialidade coletiva. A culpa não é nossa, mas de um Estado – transversalmente LGBTQIAPN+ fóbico dos setores de grupos políticos direita à esquerda – de políticas literárias para nossa comunidade.

Segundo, ainda ouso olhar por outro lado. Eu chamo esse texto de “amor próprio” e não é à toa. Retomo: quem escreve quer dizer alguma coisa; a função é simples: quer comunicar alguma coisa ao mundo. Tomo por mim, não há tentativa maior de me provocar dor do que me impedir de dizer alguma coisa. Eu tenho pavor da censura. E há várias camadas de censura. Sempre achamos que ela é aquela da proibição direta e autoritária de impedir de dizer. A censura é difusa e serpenteia de várias maneiras. A mim já se manifestou de várias formas. Em exemplo, em momentos do meu passado de completa falta de amor próprio, ouvi que eu falava demais do que eu escrevia, que fazia muita propaganda dos meus escritos nas redes sociais e isso passava uma imagem egocentrada. Quem eu pensava que era para pedir para as pessoas lerem o que eu escrevia? Por que achava que o que eu escrevia era importante para enviar para as pessoas e dizer nas redes? Eu fiquei perturbado e foi uma questão que me seguiu por algum tempo entre achar que havia razão e que ao mesmo tempo não havia. O processo de escrever a tese de doutorado me ajudou a superar essa querela interior e descobrir que para viver no mundo como queria eu precisava ter voz. Eu não podia ser a metáfora da pequena sereia que para viver no mundo desejado faz um acordo com a bruxa do mar para ter pernas doando sua voz. Muda no mundo que queria viver de nada adiantaria. A identidade dela era sua voz, sem ela não seria nada apesar de ter as tão desejadas pernas. Da mesma forma, eu me reconhecia escritor e não podia deixar de escrever porque estava intimidado em não mostrar minhas palavras. Eu quero falar o que me abafa. A conclusão, hoje, é de que não havia razão lógica alguma para esse ataque. Era a censura se manifestando diante de mim se dizendo de amor e querendo ceifar o meu amor-próprio: meu desejo de dizer algo no mundo democrático em que todas as pessoas podem dizer. A questão, enfim, é que escrever é colocar palavras no papel daquilo que nos abafa. É buscar escuta que é negada. Escrever é cristalizar materialmente em um objeto físico – o papel – essa reivindicação.

Terceiro, enfim,  o mês do orgulho LGBTQIAPN+ de 2023 encerrou, mas a política das nossas existências não se finda com a virada do mês. Nossa política é a do micro cotidiano. Escrever é dizer, sim, algo importante ao mundo! Nós temos muitas coisas importantes para dizer das nossas dores, das nossas subjetividades, das nossas existências, dos nossos olhares sobre o mundo. Minha terceira proposta para meus pares é: continuem escrevendo! Escrevam mesmo diante de todas as adversidades, da ausência de leitores, da ausência de incentivos, da ausência de dinheiro, da ausência de edição, da ausência apenas. O ato de dizer algo ao mundo é amor próprio. Escrever é deixar registrado no mundo o que se pensou, o que cada um de nós pensou, denunciou. Em algum momento no tempo e no espaço aquilo que escrevemos atingirá um outro. Todos os escritos dos pares que leio me atingem e me ajudam a construir minhas fantasias, meus imaginários. Sem perceber estamos construindo um coletivo. O que nos falta é nos reconhecer como um coletivo para reivindicarmos políticas literárias para que todas as pessoas LGBTQIANP+ possam ser ouvidas nos seus dizeres. Tenho certeza que nossa autoestima coletiva seria ainda melhor se reconhecermos o corpo de uma genialidade no coletivo e não desejo por uma individual. Temos muito o que dizer ainda das nossas epistemologias que não devem ficar no armário.

Amor próprio é continuar escrevendo…

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Daniel Manzoni-de-Almeida  é escritor e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França. Contato: danielmanzoni@gmail.com

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Na imagem ilustrativa, o gaúcho Caio Fernando Abreu, que abriu muitos caminhos para a literatura queer nacional. 

 

 

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