N ão havia espanto no olhar de João. Jeitão adquirido na lida; cabra forjado no grosso das brenhas, sem tempo nem espaço para a dúvida, ou para rechaçar os assombres da vida. Mas esse dia foi diferente.

Andava pela estrada do mato seco, na altura do grande cajueiro, quando, logo à frente, percebeu a presença de um bicho, acocorado, a uns quinze metros de distância. De costas, como se se apoiasse nas patas dianteiras, baixava e levantava a cabeça, em solavancos, puxando com muita força um troço duro que resistia à sua investida; tanta força, que até sacudia e revolvia areias, cascos secos e pedregulhos. Voavam e se chocavam contra a sua carcaça corpulenta. Ele, impassível.

Era alto, do tamanho, mais ou menos, de dois cachorros canindé, amontoados. O sangue de João ardeu como há tempos não ardia; e as veias saltaram, com o difícil tráfego da energia. A pressão. A agitação não cabia no diminuto corpo, prestes a sangrar, a sair o sumo da dor pelos poros do incauto cristão. Não podia dar sinal. Mas o sangue, de fato; o sangue era de outro, e deslizava pelo chão batido; o sangue grosso, não absorvido pela terra seca. Empoçava. Coagulou.

Então, era uma suposição aleatória, pois que a mente tentava esvanecer, divagar. Porém, nada – nada – se comparava àquela monstruosidade ali, no oco sertão. E veio a memória popular, passada por gerações, que falava de um bicho que carregava no corpo a maldição. Podia ser gente, podia ser ET, podia ser tanta coisa; ou podia ser ilusão, bestagem, visagem. Causava o horror, desprezava a ordem e os costumes. Com isso, ninguém se atrevia a sair depois das cinco da tarde. O modus operandi da besta: colocar a vítima de ponta-cabeça, nos galhos das árvores, para deitar todo o sangue no chão. Tinha o gosto por carne seca. O sangue era refugo.

Essa história, por exemplo, contava o velho Camundo, do ocorrido em meados dos anos oitenta: andava fino pelas matas, ponta de pé, olhando para todos os lados, com medo da resenha que corria, de um monstro à solta, quando avistou de longe um bicho vexado e, mais à frente, carregado numa árvore, um corpo dilacerado. Pegou o rumo de casa, aturdido, e não deu tempo de ver a cor do cristão estirado; se era gente mesmo, se precisava de socorro. Egoísta, cobarde? Não se sabe. Quis livrar a pele. Quis viver e cuidar da família.

Com o choque, amargou três meses e quinze dias sem dar um pio. O velho, o prosador-mor das redondezas, emudeceu. A família não entendia o destroço que se formava; o silêncio ensurdecedor que jazia nele. Ninguém dava conta de nada. E João, alado, flutuava; sentia dor pelo pai, sentia arrepiar os ossos, pois que só tinha, praticamente, ossos. Calhado o prazo, como uma data marcada para a libertação, seu Camundo voltou a falar e, aí, só aí, contou o motivo da afobação.

Agora, o pesadelo voltava, bumerangue, nos peitos de João. Poderia, enfim, reparar o perdido. E o bicho desconfiado não o olhava, para não deixar marcas, impressões ambíguas. Talvez, medo também. Congelados, cada um no seu instante, no tempo certo de pensar, João vislumbrou uma saída. Para arrematar e vingar o pai, João esbugalhou os olhos, fez careta e levantou os braços; pôs-se grande. O bicho acabrunhado fez sugestão de partir; mas, vendo que não tinha jeito, tomou o homem pelos braços imensos e o arremessou para perto da vítima – uma alternativa, já que o alucinado não se sumia. Quedou do lado de um porco cevado, rasgado de ponta a ponta, de onde se podia ver as entranhas, os restos de vísceras soltas, carcomidas.

A arapuca do tinhoso era para amedrontar João, delongar a história mal contada e, por fim, deixá-lo em paz. O primordial, supõe-se: perpetuar o medo no povo. Que paixão tem uma comunidade de interior sem um causo da perna-cabeluda, de caipora e de lobisomem? Pois é isso mesmo o que as pessoas pensam, inconscientes; um motivo para preparar uma fogueira e reunir o grupo, para se despregar do ordinário do dia.

João esteva mesmo disposto a resolver, de uma vez por todas. O buliçoso se colocou grande de novo, atrevido que só ele, e se aprumou rumo ao vale-tudo, no corpo a corpo. Na mão, empunhava uma estaca e uma cruz, deixada aos seus cuidados por seu Camundo. Ao tocá-lo, o assombro, sumiu o bicho e se arranjou, rápido, um pequeno homem, do tamanho de um cachorro canindé, magro. Era, possivelmente, um primo distante, chamado Cipriano, o elo perdido, agora restaurado da história, que, nas prosas da família, fora sugado pelo ataque constante à mãe terra.

Antes de pegar o beco, aperreado das ideias, João resolveu deixar o fulano no chão e voltar mais tarde para dele cuidar. Tinha de contar o inusitado encontro e pedir ajuda. Regressaram uns três ou quatro, desacreditados: o lugar mais limpo. “Escafedeu-se?!”, João gritou.

João ganhou a alcunha de João Doido. Não se pode chegar assim e tirar a crença erigida nas tradições ancestrais do sertão. Dizem, hoje, que pirou que nem o pai, sem ver nem para quê. O ciclo se repetiu. Tinha de se repetir. Pelo menos, durante um bom tempo não se ouviu falar de lobisomem, chupa-cabra e afins.

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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.